sexta-feira, 16 de junho de 2017

Philip K. Dick: "Null-O" ou a redução eliminativa da realidade



"Lemuel indicou o apartamento com um movimento de sua mão.'Todos esses aparentes objetos - cada um tem um nome. Livro, cadeira, sofá, tapete, lâmpada, cortinas, janela, porta, parede, e assim por diante. Mas essa divisão entre objetos é puramente artificial. Baseado em sistema de pensamento antiquado. Na realidade, não há objetos. O universo é, de fato, uma unidade. Temos sido ensinados a pensar em termos de objetos. Essa coisa, aquela coisa. Quando Null-O é percebido, essa divisão puramente verbal cessa. Sua utilidade foi há muito ultrapassada.'" (tradução minha)

PHILIP K. DICK, Null-O, p.138, in The Collected Stories of Philip K. Dick, vol. 3

Null-O é um conto de ficção científica publicado por Philip K. Dick em 1958 sobre seres humanos completamente desprovidos de empatia que crêem que a realidade é absolutamente destituída de qualidades que distinguiriam os objetos entre si. Isto é, nenhum objeto é real, mas somente resultado da aplicação de categorias de pensamento humanas e subjetivas que não possuem nenhuma correspondência com a verdade última.

Dado que o mundo não é constituído de objetos, tudo não é mais do que uma unidade indistinta e todas as diferenças que atribuímos às coisas não passam de flatus vocis, diferenciações meramente verbais. A doutrina Null-O é, poder-se-ia afirmar, uma espécie de nominalismo inverso. Enquanto os nominalistas medievais afirmavam que somente os indivíduos são reais, sendo todos universais termos vazios, os adeptos de Null-O consideram real somente uma unidade universal que nega todo e qualquer objeto singular.

Diante de tal verdade, os Null-O consideram insuficiente uma redução eliminativa da realidade somente teórica. Ou seja, não basta saber o que a realidade é uma unidade destituída de quaisquer diferenciações, é preciso transformá-la efetivamente no que ela é. Talvez o melhor termo seja revelá-la do modo como ela realmente é.

Todavia, a questão é saber como é possível reduzir todas as diferenciações e qualidades que apresentam-se empiricamente a nossos sentidos a uma unidade última e indiferenciada. O único meio é a destruição de todo e qualquer objeto. E é exatamente isso que os Null-O pretendem fazer com o uso de bombas cada vez mais poderosas.

Destituídos de empatia, eles não sentem nenhuma compaixão pelos seres humanos normais, seres desprezíveis comandados pelas emoções e apegados a um sistema de pensamento que cria a ilusão da diferenças entre as coisas e, portanto, as bases lógicas para qualquer valoração. Infiltrando-se aos poucos nos governos mundiais durante décadas e manipulando secretamente os recursos de seus países, os Null-O alcançaram o poder mundial e, por conseguinte, as condições necessárias para a realização de seu projeto.

No conto de Philip Dick, os Null-O conseguem destruir parte considerável da Terra e pretendem destruir a galáxia e, por fim, por mais improvável que pareça, o universo. Mas eles acabam derrotados por um grupo de humanos normais rebelados contra os planos reducionistas dos cientistas Null-O. 

Evidentemente, a trama reflete o temor de uma destruição em escala mundial por meio das bombas atômicas durante a Guerra Fria. Outros temas interessantes são veiculados, como a relação entre as partes e o todo, a empatia como característica humana fundamental e a natureza da realidade, este último sendo a obsessão de Dick por toda a sua vida.

O Null-O afirma que o mundo sensível, com suas diferenciações e qualidades, não corresponde à realidade, mas é somente o produto acidental da projeção de categorias subjetivas a uma unidade indiferenciada última. Na definição de um de seus adeptos, o universo não é mais do que "um vasto e indiferenciado domínio de pura energia". Em suma, a única realidade é aquilo do qual tudo é constituído e toda diferenciação é ilusória.

Tales de Mileto, na Ásia Menor do século VI A.C. já afirmava que tudo era água. E o caminho da ciência ali inaugurada passa pela tentativa de unificação dos fenômenos. Sem dúvida, a ciência busca a unidade na pluralidade, a regra geral que explica o comportamento dos entes singulares que a nós apresentam-se pelos sentidos. E uma das questões clássicas da filosofia sempre foi o problema do uno e do múltiplo. "A unidade provêm da multiplicidade ou a multiplicidade da unidade?", eis uma das perguntas fundamentais da investigação filosófica.

Afirmar a multiplicidade absoluta sem unidade é negar as óbvias semelhanças entre os entes e, portanto, seu caráter de unidade. E afirmar a unidade absoluta é o erro oposto, isto é, negar as diferenças óbvias entre as coisas que nos chegam pelos sentidos em nome de um monismo radical (uma só realidade) que torna tudo ilusório.

A doutrina de que tudo é água não necessariamente conduz à negação de toda diferença, assim como afirmar que uma cadeira, uma mesa e um armário são todos de madeira não é negar que cadeiras, mesas e armários são qualitativamente diferentes, isto é, cada um deles é um tipo de objeto com características e funções próprias irredutíveis a seu constituinte material. A cadeira não é explicada, enquanto cadeira, pela madeira da qual é feita. Embora a madeira seja parte necessária do que é esta cadeira.

Os Null-O são presas de um reducionismo eliminativo radical. A cadeira nada mais é do que a madeira. Sua posição teórica é uma escolha ontológica acerca do que é fundamental na realidade. Só há uma substância na realidade e ela é indiferenciada e sem qualidades. Qualquer coisa que pareça um ente diferenciado é uma ilusão.

Os atomistas gregos diziam que só há átomos e vazio, todo o resto perceptível pelos sentidos não sendo mais do que configurações passageiras desses átomos eternos. A questão que se apresentava a esses pensadores era saber como nossos sentidos captam objetos com qualidades e diferenciações se, no fundo, a realidade é formada por entes sem qualidades, dotados somente de forma geométrica. De modo análogo, como é possível que uma realidade indistinta dê origem a um mundo dotado de distinções e de diferenças?

A afirmação de que toda diferenciação é ilusória atinge também aos adeptos do Null-O, já que eles mesmos não são mais do que aquela unidade indiferenciada. O que vale para seus corpos, vale também para seus atos, suas escolhas, seus pensamentos e assim por diante. Mas essas sutilezas filosóficas não os impedirão de buscar o retorno à indistinção universal. Ao fazê-lo, conspiram contra si mesmos. O fim do universo é também o seu suicídio.

Sua doutrina demonstra um anseio pela unidade que manifesta-se como indiferença pela multiplicidade. Se os Null-O fossem capazes de sentimento, poder-se-ia dizer que sua doutrina manifesta ódio pelo múltiplo. E se o mundo é uma unidade subjacente que sustenta diferenciações internas, o Null-O prega a destruição do mundo.

Múltiplo como apresenta-se, o mundo não é bom, dizem os Null-O. É ilusório, fruto da alucinação coletiva de seres miseráveis e primitivos. Há que se livrar dessas ilusões e desses apegos meramente humanos. Ainda que para isso seja necessária a obliteração de tudo. Como muitas doutrinas do século XX, o Null-O é uma doutrina de realização da teoria por meio da violência e da destruição. A acosmia é melhor do que o cosmos.

E o que concede autoridade aos Null-O é que eles sabem. A seus próprios olhos, são uma elite intelectual. Portanto, não podem submeter-se aos primitivismos dos seres humanos comuns que apegam-se emocionalmente a coisas. Os Null-O são lógicos, científicos e racionais. O "conhecimento" é autoridade e licença para a realização desimpedida de seus objetivos.

O conto de Philip K. Dick parece afirmar o vínculo entre a percepção da realidade das diferenças e a afirmação de seu valor intrínseco. Desprovidos de emoções e de sentimentos, os Null-O só podem encarar a realidade como um todo indiferenciado no qual nenhum ente possui valor em si mesmo. Na verdade, eles são cegos para um aspecto essencial da realidade e tomam sua cegueira não como uma patologia, mas como evidência de sua superioridade intelectual.

O Null-O é como um cego que quisesse libertar das suas ilusões os cativos na caverna do mito platônico. Sua consciência está patologicamente fechada para um domínio inteiro da realidade e como essa mesma realidade não obedece aos ditames de sua percepção peculiar, ela deve ser reformada, reduzida e resumida àquilo com que o Null-O  consegue lidar. O resultado é a nulidade absoluta.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Príamo, Aquiles e a ordem dos deuses


Aquiles arrastando o corpo de Heitor


Após saber da morte de Pátroclo pelas mãos de Heitor, Aquiles desfaz-se em pranto e decide finalmente voltar à guerra. Põe fim à sua cólera, aceita os presentes oferecidos por Agamemnon, reconcilia-se com o filho de Atreu e prepara-se para os combates caros a Ares.

Entrementes, Heitor rejeita o sábio conselho de Polidamante de recuar suas tropas para dentro dos fortes muros de Tróia para dali dar combate aos aqueus. Com o apoio do resto das tropas troianas (Homero afirma que Atena cegara o entendimento de todos), o príncipe escolhe combater em campo aberto. Esse será seu maior erro durante a campanha contra os dânaos e custará sua vida.

No Olimpo, Zeus libera os deuses para que participem da guerra como desejarem. Os combates reiniciam e Poseidon salva Enéas da morte pelas mãos homicidas de Aquiles. Apolo, por sua vez, também salva Heitor do rei dos mirmidões, pois a hora do filho de Príamo ainda não havia chegado.

O exército de Tróia recua ante a fúria destruidora de Aquiles. Inúmeros heróis troianos perdem a vida quando, tentando escapar, mergulham no rio Escamandro e são ali emboscados por Aquiles, que os mata a fio de espada. No mesmo rio, o filho de Peleu e de Tétis captura doze príncipes troianos para os sacrificar nos funerais em honra de Pátroclo.

Escamandro revolta-se com tamanha carnificina e ataca Aquiles, prendendo-o em seus turbilhões. Graças à intervenção de Hefestos, Aquiles livra-se de Escamandro e parte em perseguição de Heitor. Este, porém, é protegido por Apolo que, tomando-lhe a aparência, corre em direção contrária a de Heitor, enganando a Aquiles e permitindo que o príncipe troiano chegue aos portões de Ílion a salvo.

Por fim, Aquiles reconhece o engôdo de Apolo e parte na direção de Heitor. Os dois heróis enfrentam-se. Zeus, junto com os outros deuses, decreta a morte de Heitor. Atena, tomando a forma de Deífobo, irmão de Heitor, instiga-o a lutar de frente com Aquiles, depois de o príncipe troiano correr três vezes em volta de sua cidade a fugir do matador aqueu.

Heitor arremessa sua lança contra Aquiles, sem atingí-lo. Ao pedir a seu irmão, Deífobo, outra lança, Heitor percebe que não há ninguém ali. Compreende, então, que fôra vítima de um ardil dos deuses e que sua sorte estava decidida. Aquiles enterra sua lança na garganta de Heitor e o príncipe morre. Não satisfeito em matá-lo, Aquiles amarra os pés do cadáver em seu carro e dá três voltas em torno de Tróia. 


                                Heitor

                                Aquiles arrastando o corpo de Heitor

A morte e a humilhação de Heitor são observadas com horror por Príamo, seu pai e rei de Tróia, Hécuba, sua mãe, Andrômaca, sua esposa e Helena, a causa de todos os males daquela guerra. A cidade está condenada, pois seu defensor está morto.

Aquiles retorna ao acampamento dos aqueus para dar curso ao funeral e às lamentações por Pátroclo. Este é depositado sobre um leito e dá-se início aos ritos fúnebres (prothesis). Cavalos dão três voltas em torno do corpo do guerreiro dânao. Ovelhas, cabras e bois são sacrificados e consumidos em um banquete em sua honra.

                                  Prothesis

À noite, na tenda de Aquiles, aparece-lhe o espectro de Pátroclo (eidolon) que o insta a sepultá-lo o quanto antes, pois, sem isso, não pode ingressar definitivamente no Hades, atravessando o Acheronte. Pátroclo pede-lhe também que seus ossos sejam enterrados juntos aos de Aquiles, depois do cumprimento do destino do guerreiro aqueu profetizado por Tétis.

Aquiles tenta abraçá-lo, mas nada consegue tocar, pois o espectro como o fumo dispersa-se. No dia seguinte, uma grande pira é montada e acesa. O corpo de Pátroclo para lá é carregado em cortejo (ekphora), escoltado pelos guerreiros aqueus e com a cabeça sustentada por Aquiles. O corpo é depositado na pira funerária.

Ovelhas, bois, cavalos, cães e os doze troianos capturados por Aquiles no rio Escamandro são ali sacrificados. Os ossos são depositados em uma urna de ouro e guardados na tenda de Aquiles. O túmulo é construído em torno da pira, a espera também dos ossos do próprio Aquiles. Jogos em homenagem ao defunto iniciam-se e Aquiles vilipendia o corpo de Heitor arrastando-o ainda três vezes em torno do túmulo de seu amigo Pátroclo.

O vilipêndio desagrada aos deuses olímpicos que decretam que tal abuso deve cessar. Zeus envia Tétis a Aquiles para que esta exija do filho o fim daquela humilhação. Ao mesmo tempo, Íris é enviada a Príamo, rei de Tróia, para inspirá-lo a dirigir-se em segredo à tenda de Aquiles e pedir-lhe em resgate o corpo de seu filho, Heitor.



                                Príamo implora a Aquiles o resgate do corpo de Heitor

Príamo, após ser visitado por Íris, toma o caminho que leva às naus aquéias. Acompanha-o um servo e carrega consigo em uma carroça grande quantidade de presentes para oferecer a Aquiles em resgate pelo corpo de seu filho. Zeus envia Hermes para escoltá-lo. Este toma a forma de um escudeiro de Aquiles e apresenta-se a Príamo a fim de conduzí-lo em segurança.

Ao chegar à tenda de aquiles, Hermes revela-se a Príamo e parte para o Olimpo em seguida. O rei troiano desce do carro e entra na tenda do terrível guerreiro aqueu. Este encontrava-se no fim de uma refeição com dois companheiros, Automedonte e Álcimo.

Graças às ordens dos deuses, dá-se a cena mais comovedora da Ilíada. O velho rei lança-se aos joelhos de Aquiles, abraçando-os e beija as mãos do assassino de seu filho. Implora-lhe que, em atenção a seu pai, Peleu, também velho, conceda-lhe o corpo de Heitor para que seja dignamente sepultado. Ambos choram. Aquiles toma as mãos do idoso e o conduz à ceia.

Inspirado pela mensagem divina trazida pela mãe, Aquiles aceita os presentes de Príamo. Ordena às servas que lavem e unjam com óleo o corpo de Heitor e, por fim, envolvam-no em um lençol. Aquiles convida Príamo a cear e depois manda prepararem-lhe leito para a noite. O rei, ainda no meio da noite, incógnito, parte conduzindo seu filho no carro em direção à Tróia.

Durante nove dias, os troianos celebram os funerais de seu defensor. No décimo, o corpo de Heitor é queimado na pira funerária, seus restos depositados em uma urna e esta é abrigada em um túmulo para ela construído.