sexta-feira, 17 de março de 2017

Notas curtas sobre as relações entre ciência e filosofia




Na primeira metade do século XVIII, um certo E. S. De Gamaches, físico e matemático francês, escreveu uma obra de astronomia na qual comparava os princípios científicos de René Descartes, o patrono das ciências francesas, com aqueles de Sir Isaac Newton, a glória máxima da Royal Society

O objetivo do obscuro autor era - como seria previsível - demonstrar a superioridade do racionalista francês sobre o empirista britânico. Esse poderia ser somente mais um capítulo da longa rivalidade que opõe franceses e ingleses, mas há nele algo que supera em muito as querelas e disputas entre nações. Na verdade, na discussão empreendida por De Gamaches, está em jogo algo crucial para a própria história da ciência.

Em termos gerais, De Gamaches criticava Newton fundamentalmente por seu método. Segundo o polemista, o gênio britânico havia se limitado em suas obras científicas a geometrizar os fenômenos físicos sem jamais propor explicações para os mesmos. “Um fenômeno analisado geometricamente se torna para ele um fenômeno explicado”, afirma De Gamaches. 

No fundo, para o francês, Newton era bastante seletivo na escolha de seus problemas de estudo, só tratando daquilo que podia ter uma descrição geométrico-matemática. O veredito de De Gamaches é contundente e grave:Newton era ótimo geômetra, mas péssimo físico.

O que há de tão importante na diatribe de um obscuro físico francês que, apegado ao mestre Descartes, distribuía perdigotos contra o gênio de Isaac Newton numa época em que as ideias deste tornavam-se hegemônicas e relegavam o cartesianismo ao esquecimento mesmo em terras gaulesas? A importância da discussão reside naquilo que é posto em questão implicitamente: “o que é fazer ciência?” Em outros termos, o que significa exatamente dar a explicação de um fenômeno físico? Será dar as suas razões últimas ou somente fornecer uma descrição matemática acurada daquilo que é observado sem se comprometer com questões concernentes à natureza do mundo físico real?

Em suma, nessa pequena polêmica são confrontadas duas visões opostas sobre a própria natureza da ciência. De um lado o cartesiano, para quem a física deve, antes de tudo, dizer o que é o real, e, de outro, está o newtoniano que se limita a geometrizar os fenômenos sem se comprometer com hipóteses sobre a natureza última do real. É bem conhecida a afirmação de Newton no Escólio Geral da segunda edição do Principia (1713) segundo a qual ele não “inventa hipóteses”, referindo-se aí às especulações acerca das possíveis causas de certas propriedades observáveis dos corpos.

Há ainda discussões acadêmicas sobre como interpretar corretamente essa e outras declarações de teor semelhante espalhadas pelas obras do físico britânico, mas formou-se certa tradição na qual elas são interpretadas como declarações de cunho antiespeculativo ou antimetafísico. Newton rejeitaria derivar as suas teorias de considerações filosóficas sobre a natureza própria das coisas, limitando-se a fornecer uma descrição matemática daquilo que pode ser efetivamente observado. Não importa tanto saber se era isso ou não que Newton queria dizer naquelas declarações, mas sim perceber que essa interpretação enuncia uma posição teórica possível com relação à natureza da ciência que foi e é ainda abraçada por muitos filósofos e cientistas. 

Embora Descartes quisesse refundar a ciência de seu tempo sobre novas bases, ele ainda permanecia ligado à ideia antiga de um conhecimento certo e verdadeiro do mundo físico. Toda a sua física se funda na apreensão pelo sujeito pensante de princípios claros e distintos – e, portanto, indubitáveis – a partir dos quais todo o edifício da ciência poderia ser rigorosamente deduzido. 

Em outros termos, a metafísica funda a física e, sem ela, qualquer ciência fica impossibilitada de realizar suas pretensões de conhecimento verdadeiro e certo. Resta evidente que tais princípios primeiros não são retirados da experiência e sim alcançados por meio de longas meditações de cunho exclusivamente filosófico.

Ora, o conflito até aqui apresentado pode ser visto também pelo ângulo das relações possíveis entre filosofia e ciência. Sob esse prisma, os “cartesianos” seriam aqueles para os quais o fundamento último do conhecimento não pode ser alcançado pela experiência, mas somente pelo pensamento que, através da razão, apreende os princípios mais gerais que servirão de base para qualquer estudo do mundo físico. A favor de sua tese, seus partidários poderiam citar o fato de que nenhuma predição pode verificar definitivamente uma teoria, já que teorias falsas podem apresentar predições verdadeiras.

Por outro lado, os “newtonianos” seriam aqueles para quem a ciência deve definir-se por uma separação clara com relação aos princípios especulativo-filosóficos e ater-se somente a uma descrição acurada do comportamento observável dos entes físicos, cujas predições sejam adequadas aos experimentos conduzidos em condições controladas. Em defesa de sua tese, eles poderiam apontar para os sucessos preditivos que a ciência acumula até nossos dias e afirmar que, sob uma perspectiva prática, nada há que se exigir da ciência além do sucesso observacional e experimental.

Acontece que, esquemáticas como são, essas posições tendem a simplificar uma situação real que se apresenta em formas cada vez mais complexas. Dificilmente alguém conseguiria subscrever integralmente a tese dos “cartesianos” justamente pela evidência histórica de que projetos de submissão da ciência à filosofia fatalmente arrastam a primeira para o terreno das disputas intermináveis – e frequentemente inconclusivas – da segunda. Por esse motivo, cientistas-filósofos (como o físico, matemático e historiador da ciência francês Pierre Duhem) defenderam uma separação clara desses dois empreendimentos cognitivos.

Não obstante, a evidência historiográfica também demonstrou conclusivamente a influência mútua entre filosofia e ciência ao longo da história. Não raro a influência externa na ciência incluía elementos não tão filosóficos no sentido estrito do termo, como teses teológicas, esotéricas ou políticas. Como explicar a grande disputa travada no século XVII entre o newtoniano Samuel Clarke e o filósofo racionalista Gottfried W. Leibniz sobre a natureza do espaço absoluto como o sensorium divino em termos meramente científicos?

Para citar exemplos mais recentes, o cosmólogo sulafricano George Ellis, que trabalhou com o britânico Stephen Hawking, tem dedicado diversos artigos científicos a explicitar e discutir os pressupostos filosófico-metodológicos embutidos nas teorias da moderna cosmologia. Da mesma forma, questões filosóficas sérias e prementes foram suscitadas pelas declarações recentes de Stephen Hawking acerca das origens do universo e da existência de Deus. Quantos pressupostos filosóficos e ontológicos estão implicados em um só conceito como o “nada”, empregado por Hawking em palestras sobre a origem do universo? O que isso significa para um físico é o mesmo que significa para um filósofo ou para um teólogo?

A diferença de significados não implica em um relativismo no qual “tudo vale”, mas pode indicar um uso indevido de um termo para fenômenos que não podem ser adequadamente descritos por ele. Conceitos buscam identificar, entre outras coisas, diferenças específicas e irredutíveis dentro dos fenômenos do real. E tais fenômenos podem ser encarados de diversas formas, de acordo com seus múltiplos aspectos. 

Desse modo, o que cada ciência faz é encarar um determinado conjunto de entes do real sob um ângulo particular, concebendo-os de acordo com pressupostos ontológicos e metodológicos que, em geral, só podem ser justificados por meios filosófico-argumentativos, ou seja, meios externos à própria ciência. Nenhuma ciência particular pode justificar a si mesma, já ensinava Aristóteles.

Se a história tem comprovado a influência mútua entre filosofia e ciência, isso não significa que essa relação tenha se dado de forma harmoniosa e sem conflitos. Muito pelo contrário. Incompreensões, resistências, rejeições e menosprezos de ambas as partes foram frequentes nessa história. Ainda há hoje os que decretam a “morte da filosofia” e apontam a ciência como a executora da sentença.

Contudo, não se deve pensar que esses que anunciam a morte da filosofia sejam somente cientistas. Eles são também filósofos. Alguns, inclusive, tentaram - e tentam ainda – transformar a filosofia em ciência, adotando seus métodos e procedimentos. Outros limitam-se ao papel de “cães de guarda” dos cientistas, que latem e ameaçam quem ouse questionar qualquer ponto do credo cientificista. Aparentemente, há filósofos que não suportariam ver a filosofia como ancilla theologiae, mas sentem-se à vontade ao vê-la no papel de ancilla scientiae.

Todavia, o cientificista, aquele que afirma que todo o conhecimento possível advém exclusivamente da ciência, afirma ele mesmo não uma teoria científica, mas uma tese filosófica cujo valor só pode ser avaliado por meios argumentativos. Ao tentar escapar da filosofia, o cientificista se vê obrigado a justificar o exclusivismo cognitivo da ciência apelando exatamente para aquilo que pretendia negar.

Em uma palestra em Cambridge, o filósofo americano William Lane Craig, ao comentar a afirmação de Stephen Hawking de que a filosofia está morta, observou que aqueles que ignoram a filosofia são os mais propensos a cair em suas armadilhas. E ele está correto. A inconsciência dos pressupostos que informam toda e qualquer pesquisa, empírica ou não, frequentemente resulta numa compreensão limitada e limitadora da própria realidade que se pretende explicar. 

Não é raro que o cientista tome os objetos que sua metodologia permite conhecer como os únicos elementos do real, reduzindo assim o todo a uma de suas partes. Ademais, essa tendência se manifesta também no desejo de aplicar os resultados de teorias particulares a campos cada vez mais amplos, ao ponto de se poder afirmar, sem risco de erro, que muitos cientistas buscam alçar suas teorias à condição de metafísica última e fundamental da realidade. 

Como Étienne Gilson assinalou diversas vezes, essa submissão do Ser a uma ciência particular é uma tentação constante na história do Ocidente, apresentando-se no logicismo de Abelardo, no matematismo de Descartes, no fisicismo de Kant, no sociologismo de Comte e, por que não?, no biologismo de certos neodarwinistas. Contra isso, o físico Werner Heisenberg – homem de alta cultura e de questões filosóficas profundas – advertia que tais projetos só poderiam se fundar em conhecimentos científicos definitivos, mas que estes são sempre aplicáveis em domínios limitados da experiência.

Como reação ao cientificismo, diversos filósofos e estudiosos das ciências humanas empenharam-se em questionar os critérios de racionalidade e validação do conhecimento, abraçando o relativismo como o último bastião possível de resistência ao avanço das ciências empíricas. Tudo o que existe são múltiplos discursos possíveis sobre o mundo e o discurso científico é só mais um entre muitos, de modo que há pouca diferença entre o Dr. House e o curandeiro de uma tribo. Não será necessário repetir aqui todos os já tão bem conhecidos problemas lógicos e epistemológicos dessa posição.

Embora equivocada, a reação do relativista manifesta claramente a percepção de que o discurso científico se torna cada vez mais hegemônico na sociedade hodierna. Praticamente não há um dia sem que o homem moderno não seja bombardeado por uma série de “pesquisas científicas” que “provam” que tal alimento faz bem à saúde, que tal outro prejudica seu organismo ou que determinado comportamento é “natural” e que outro não o é. 

O problema aumenta quando se tem em conta o poder que essas orientações têm de moldar o caráter e o pensamento de milhões de homens e mulheres no mundo inteiro. Sutilmente, o cientista vai se tornando não só o arauto da verdade, mas também o conselheiro em assuntos muito distantes de sua especialidade original. A pergunta óbvia é: “por qual razão alguém deveria ouvi-los para além de seu campo limitado de estudo?”.

Não ser um cientificista ou um relativista não resolve o problema das relações da ciência com a filosofia e com outras atividades ou dimensões humanas. Significa somente não abraçar nenhum dos extremos do debate. É mais fácil apontá-los e rejeitá-los do que dizer em qual ponto entre esses limites deve estar a verdade. Não há solução fácil para essa questão.

Embora a questão não seja de fácil solução, um bom ponto de partida é reconhecer as diferenças entre filosofia e ciência e tentar estabelecer um diálogo que não passe pela capitulação de uma das duas. Isso significa, para a filosofia, abdicar do projeto “cartesiano” de determinar a priori quais são os princípios metafísicos a partir dos quais todas as pesquisas científicas devem se dar. 

E, para a ciência, atentar para o fato de que o real jamais pode se esgotar ou se reduzir a qualquer um de seus aspectos e, ao mesmo tempo, admitir que há perguntas legítimas e pertinentes que estão fora daquilo que seus métodos permitem averiguar.

Seria ocioso não admitir que a ciência alcança verdades sobre o real. Não é possível construir naves espaciais, satélites, celulares, aviões e carros sem conhecer algo do mundo. Mas o que ela alcança são os aspectos permitidos por sua metodologia e por seus pressupostos conceituais e ontológicos. Escolhas filosóficas já estão presentes como elementos constitutivos desse processo. Uma maior clareza com relação a esses pontos é imprescindível para uma compreensão mais profunda da própria atividade científica e de seus limites intrínsecos.

Cumpre notar que a filosofia não deve viver “a reboque” da ciência, restringindo-se a pensar e a refletir somente sobre problemas e dados levantados por esta última. Há que se admitir que a filosofia tem suas próprias questões e que, para muitas delas, a ciência tem pouco ou nada a contribuir para sua solução. 

Da mesma forma, o cientista não precisa de um filósofo ao seu lado no laboratório questionando cada passo do processo de pesquisa e pedindo sempre novas razões para suas ações. O melhor encontro entre a filosofia e a ciência ainda se dá na consciência do indivíduo que almeja compreender o mundo em sua integralidade e que, para isso, busca apreender as relações entre os diversos níveis do real e uni-los sob princípios cada vez mais universais.