sábado, 14 de janeiro de 2017

Ilíada V: a grandeza e a desmedida de Diomedes e os limites da realidade

                             Diomedes atacando Enéas, a quem Afrodite amparava

"Quando, porém, pela quarta avançou, qual fosse um demônio,
 com voz terrível lhe diz Febo Apolo, o frecheiro infalível:
 'Entra em ti mesmo, Diomedes; afasta-te; é absurdo pensares
 que é como os deuses; em caso nenhum podem ser comparados
 os moradores do Olimpo com os homens que rojam na Terra.'
 A essas palavras, o forte Diomedes recuou poucos passos, 
 para evitar o rancor do frecheiro infalível. Apolo."

HOMERO, Ilíada, Livro V (tradução de Carlos Alberto Nunes)


Eric Voegelin, no segundo volume de seu Order and History, afirma que um dos temas de Homero é a "patologia do herói", exemplificada principalmente pela cólera (cholos) de Aquiles na Ilíada. O motivo da cólera é anunciado no primeiro livro do épico. Agammemnon, rei de Micenas e chefe da armada dos Aqueus, toma para si a escrava Briseis, a qual pertencia a Aquiles pela divisão do butim de guerra. Aquiles, então, recusa-se a obedecer as ordens de Agammemnon e a tomar parte nos combates aos troianos dali por diante. 

A cólera do herói é, em si mesma, justa, já que Aquiles foi injustiçado por Agamemnon, O que está errado, a desmedida (hubris), é a recusa de Aquiles em aceitar os pedidos e os presentes de reconciliação oferecidos posteriormente por Agamemnon. Como consequência, a hubris de Aquiles lança o exército Aqueu em uma série de infortúnios que quase culminam na desgraça de uma humilhante derrota.

A figura de Diomedes, que avança, instigado por Atena, contra Afrodite (que protegia seu filho Enéas) e a fere com sua lança, também contém os elementos da hubris. Diomedes, um dos grandes guerreiros aqueus, príncipe de Argos, fôra ferido na batalha contra os troianos e seus aliados fora dos portões de Ílion (Tróia). Ele, então, pede a Atena que lhe conceda acertar com sua lança aquele que o havia alvejado na espádua com uma seta.

Atena atende seu pedido e adverte-o, contudo, a não investir contra nenhum dos deuses, a não ser Afrodite, caso ela descesse à batalha. Entusiasmado, Diomedes avança contra os troianos e fere gravemente a Enéas com uma pedra. Este curva-se e fica à mercê do ataque de Diomedes. Ocorre que Enéas era filho de Afrodite e esta, vendo-o prestes a ser morto, desce do Olimpo e intervêm na batalha protegendo seu rebento.

Diomedes não se intimida e investe com sua lança contra Afrodite, ferindo-a na mão. Ele ainda ameaça a deusa indefesa que, assustada, retorna ao lar dos imortais. O feito de Diomedes causa escândalo no Olimpo. À Dione, Afrodite relata que o arrogante Diomedes a ferira quando tentava proteger Enéas, seu dileto filho. Ela diz: 

"Não se restringe aos Troianos e Aquivos a guerra, somente;
 té contra os deuses eternos os Dânaos, agora, se atrevem. 

Os homens chegam ao ponto de atacar os próprios imortais! Eis o escândalo. Segue-se, no Olimpo, um relato das diversas vezes nas quais os deuses sofreram infortúnios por causa dos homens ou foram feridos por eles. Um limite perigoso fora cruzado.

Há, no feito de Diomedes, uma ambiguidade essencial: o ato é, a um só tempo, divino e horroroso. Diomedes investe contra Afrodite instigado por palavras de Atena, é preciso lembrar. Não obstante, essa origem divina do ato arrogante mostra que há algo de admirável nele. Isto é, o desajuste, o exagero, têm algo de belo justamente por sua força, impetuosidade e grandiosidade. Por outro lado, é um ato blasfemo e horroroso de destruição da ordem natural das coisas.

Há uma tensão perigosa nisso tudo. Os grandes homens tendem, por suas ações tremendas, a destruir a ordem reinante, a recusar e a investir contra os próprios fundamentos da realidade. Entretanto, isso é belo, é digno de admiração, é digno de ser contado e recontado pelos aedos. E é horroroso ao mesmo tempo.

No homem há algo que o faz ombrear-se com os deuses e, no limite, até mesmo a desafiá-los insolentemente. É uma centelha divina que o torna grande. A grandeza, no entanto, não pode ultrapassar certos limites, sob pena de tornar-se patologia. Não pode tornar-se um esquecimento da ordenação do mundo. 

Diomedes é lembrado de seu lugar no mundo por Apolo, que tomara Enéas sob a sua proteção. O herói grego ousa investir contra o deus a fim de ferir Enéas. Apolo repreende-o ferozmente de que nenhum mortal pode tentar equiparar-se aos deuses imortais. Trazido à razão, Diomedes recua.

Note-se ainda que Diomedes ataca Afrodite no momento em que ela desce para ajudar o filho Enéas. Ou seja, no momento em que o divino inclina-se amorosamente ao humano. Afrodite é vítima da hubris do herói quando demonstra amor materno, cuidado e proteção. Simbolicamente, o divino é escorraçado exatamente quando desce aos homens e estes, embriagados pela grandeza que os próprios deuses nele inspiraram, avançam desejosos de pôr termo aos imortais.

Mais à frente na narrativa homérica, Diomedes é novamente inspirado por Atena a atacar um dos olímpicos. Ela, que também é deusa da guerra, desce da morada dos imortais e junta-se a Diomedes em sua carruagem para pôr fim à matança instaurada por Ares, que ora lutava a favor dos troianos. Desta feita, a inspiração divina o guia a atacar o deus da guerra com o objetivo de pôr fim ao desequilíbrio. 

Atena toma as rédeas do carro e desvia de Diomedes as lanças que a ele endereça Ares. O carro conduzido pela deusa é símbolo de submissão ao guiamento superior, a ordenação adequada ao homem. Sob a condução de Atena, Diomedes projeta sua lança contra Ares, ferindo-o e obrigando-o a retornar ao Olimpo. A hubris do deus, a desmedida na guerra, é encerrada pela ação do homem guiado pela mão da sabedoria divina.

Nenhum comentário: