domingo, 21 de fevereiro de 2016

Popper, historicismo, totalismo e utopia




"O que entendo por historicismo será explicado em detalhe no presente estudo. Que seja suficiente aqui dizer que entendo por esse termo uma teoria, referindo-se a todas as ciências sociais, que faz da predição histórica seu principal objetivo e que ensina que semelhante objetivo pode ser atingido se são descobertos os 'ritmos' ou os "padrões", as 'leis' ou as 'tendências', que subjazem à evolução da história."

KARL POPPER, The Poverty of Historicism, Prefácio


The Poverty of Historicism (1944) é uma substanciosa crítica de Karl Popper ao que ele denominava historicismo, tese segundo a qual a história humana é regida por uma lei férrea e imutável de evolução que pode ser cientificamente apreendida, de tal mo que seria possível prever as etapas futuras dessa mesma evolução.

O livro é bastante detalhado, apresentando inicialmente, nos dois primeiros capítulos, as tendências pronaturalistas (afirmação da semelhança fundamental entre as ciências naturais e as ciências humanas) e antinaturalistas (negação dessa semelhança fundamental) presentes no historicismo.

Os dois últimos capítulos são dedicados à crítica dessas teses. O ponto mais interessante do livro é, sem dúvida, a crítica das tendências totalistas e utópicas do historicismo. Popper argumenta que a pretensão de um conhecimento total das relações sociais (totalismo) e a pretensão de reconstrução de cada aspecto dessas relações dentro da sociedade (utopismo) são objetivos não somente equivocados, já que toda ciência é sempre um recorte da realidade, mas uma impossibilidade lógica, pois não há como alguém (ou um grupo) possuir conhecimento de todos os aspectos da realidade.

Dizer que as sociedades e grupos humanos são "todos" e como tais devem ser entendidos não é, para Popper, a mesma coisa que dizer que é possível conhecer ou controlar todos os aspectos desses todos.

O "todo" pode ter duas acepções:

a) O todo considerado como a totalidade das propriedades ou dos aspectos de uma coisa;
b) Certas propriedades ou aspectos da coisa que a fazem aparecer como uma estrutura organizada e não como um mero amontoado.

Se é possível conhecer cientificamente os todos no sentido (b), não é possível conhecer os todos cientificamente no sentido (a). Conhecer as leis pelas quais um todo é um todo e não um amontoado é conhecer um regra geral, uma abstração que explica a natureza de todo do objeto, mas que não fornece conhecimento de toda e qualquer relação ou aspecto dentro desse todo.

A parte que se ambiciona estudar cientificamente em um objeto pode ser tomada como um todo a fim de que se possa abstrair a regra geral que explica esse todo. Disso não se segue, em absoluto, que seja possível entender cientificamente todo e qualquer aspecto ou relação dentro desse todo. O conhecimento científico é sempre seletivo, nunca totalista.

Em suma, os utopistas historicistas desconhecem o velho adágio escolástico segundo o qual todo conhecimento é totum sed non totaliter, isto é, o conhecimento de algo é o conhecimento de um todo tomado em sua generalidade e não da totalidade dos aspectos do objeto. É possível entender a regra que faz com que um time seja um time, mas isso não significa que se possa estudar cientificamente todos os aspectos e relações possíveis dentro desse todo.

Pouco adiantaria, como Popper assevera, argumentar que esse conhecimento totalista seria alcançado aos poucos, por meio de uma "integração" ou "síntese" gradual de todas as relações sociais estudadas em um todo, pois sempre será possível apontar um ou mais aspectos negligenciados na pesquisa. Não obstante, o fato de que uma idéia é falsa ou impossível de ser realizada concretamente não significa que ela não tenha efeitos concretos ou que a sua realização não seja tentada na realidade.

A engenharia social utópico-totalista pretende a remodelar a sociedade global segundo uma "maquete" determinada. Em termo práticos, contudo, esse método é irrealizável, assevera Popper. Quanto mais importantes forem as mudanças, maiores serão as repercussões involuntárias e inesperadas. Como ninguém tem controle de todos os processos, sempre haverá resultados imprevistos (e frequentemente desagradáveis) de medidas ou reformas tomadas, ainda mais se estas refletirem tentativas de mudanças globais.

O engenheiro social utópico-totalista será confrontado por situações imprevistas e será, por conseguinte, obrigado a tomar medidas improvisadas e pontuais. E como resultados imprevistos pululam, exigindo novas medidas pontuais e improvisadas, o resultado será uma "planificação não-planificada".

Por outro lado, a existência da incerteza do elemento pessoal (o fato de que os homens reagem diferentemente aos planejamentos) obrigam o engenheiro social utópico-totalista a controlar o elemento pessoal por meios institucionais. Em outros termos, é necessário controlar os impulsos humanos para que o plano de reforma totalista e utópico dê certo.

Essa necessidade, argumenta Popper, substitui a exigência original de construção da nova sociedade pela exigência de transformar o homem para fazê-lo adaptar-se à nova realidade. Ao invés de dar ao homem uma nova sociedade, um novo homem terá que ser criado para encaixar-se nessa sociedade. E isso suprime toda a possibilidade de crítica dos resultados dessa nova sociedade, pois o homem que não adapta-se a ela não será alguém com uma crítica racional de seus resultados concretos, mas somente alguém que ainda não é bom para ela.

Sendo necessário empreender a reconstrução da sociedade a partir das suas mais mínimas relações, como pensa o utopista, será necessário apelar para uma instância que possa realizar o controle daqueles recalcitrantes que não aceitam as reformas. Segue-se do fato de que a reconstrução levará tempo que a repressão deverá ser tão longa quanto o pretendido processo de reconstrução da sociedade. Resumindo, não há espaço para a crítica.

Há ainda, segundo o filósofo austríaco, uma causa mais fundamental para que não haja combinação possível entre o totalismo e o método científico. O engenheiro social utópico-totalista negligencia o fato de que, embora seja relativamente fácil centralizar o poder, é impossível centralizar o saber que está distribuídos pelas mentes individuais e que seria necessário para o sucesso do empreendimento planificador.

Como o controle total do saber distribuído nas mentes individuais é impossível de ser alcançado, a saída é a simplificação e eliminação das diferenças pessoais por meio da educação e da propaganda. O resultado, entretanto, é justamente a destruição do saber genuíno, do pensamento livre e da crítica racional.

A pretensa reconstrução social total, contudo, só tem sentido a partir da idéia de que se conhece o curso final da História e que, por isso, todo o trabalho feito para favorecer e/ou facilitar o fim inexorável da história humana é, na verdade, a mais perfeita expressão da racionalidade, do ativismo e da moralidade. É o que Popper denomina futurismo ético. Tudo o que é feito de acordo com as tendências que conduzem ao fim último é, por conseguinte, moral.

A pergunta é se realmente há tal lei de evolução histórica (ou biológica). Popper responde resolutamente: não. Isso por uma razão lógica simples. O processo, se há, da evolução humana no mundo não é uma lei universal justamente porque é um processo histórico singular. Isto é, a história humana é o desenrolar singular de um tipo de ser vivo, o homem, nesta terra. Só seria possível averiguar uma lei de evolução humana se fôssemos confrontados com outras instâncias dessa evolução em outros lugares.

Em outros termos, a ciência lida com leis universais. E para saber se uma hipótese ou "lei" é universal ou não, é necessário que ela seja verificada em mais de um caso. A pretendida evolução humana é uma asserção histórica singular. Portanto, não pode ser erigida como lei universal. Nem seria possível prever o futuro desenvolvimento de uma única instância. Por exemplo, como saber que a borboleta será o fim do desenvolvimento futuro da lagarta observando o comportamento de uma única lagarta?

Ora, do fato de que a história humana é singular não se segue, contudo, que não se possa determinar alguma tendência geral, uma direção que ela siga. Sim, Popper admite que uma coisa não se segue da outra. Mas o caso é que uma tendência geral, por saliente que seja, também não é uma lei natural.

Uma tendência geral é uma ocorrência histórica singular e, como tal, não tem a força preditiva de uma lei natural universal. Predições fundam-se em leis universais, mas não em tendências. As tendências, por longevas que sejam, podem muito bem desaparecer rapidamente por causas diversas, justamente porque são asserções históricas singulares.

Quando o cientista tenta explicar um fato singular qualquer, ele faz uso não somente de leis universais, mas também de condições iniciais. Por exemplo, se o cientista deseja saber as causas do rompimento de um fio determinado Y, de tipo X, ele explicará esse fato singular fazendo uso de:

1) Uma lei universal: "fios de tipo X, quando submetidos a uma tensão maior que tal e qual valor, arrebentam-se.";
2) Condição inicial: "este fio Y, de tipo X, foi submetido a uma tensão maior que tal e qual valor"

O rompimento do fio é explicado como uma dedução da lei universal e da condição inicial. Uma tendência geral, sendo um fato singular, não pode fazer o papel de uma lei universal em uma explicação. Ao contrário, por ser um fato singular, ela mesma deve ser explicada pela dedução de uma lei universal e de condições iniciais. Tendências, por conseguinte, permanecem enquanto permanecerem as condições iniciais.

O erro historicista central, afirma Popper, é justamente a confusão entre lei universal e tendência geral. Ao identificar a segunda à primeira, o historicista crê estar diante de uma lei natural quando percebe alguma tendência geral. Ou seja, o que seriam meras tendências que dependem de condições iniciais, o historicista toma como legítimas leis universais que, em conjunto com as condições iniciais, explicam fatos singulares.

Popper fornece um exemplo para ilustrar sua crítica. Segundo Marx, há uma tendência geral de acumulação dos meios de produção. Essa tendência, contudo, por forte que seja, não pode persistir se houver um rápido decréscimo de população, o que pode acontecer graças a fatores extra-econômicos como fatores biológicos. Há condições múltiplas necessárias para a permanência dessas tendências e o historicista não pode imaginá-las porque já tomou certas tendências como leis universais imutáveis.

Outro ponto da questão da lei universal de evolução é o problema dos termos teóricos utilizados pelos historicistas. Popper argumenta que todo o vocabulário de "movimento" social, "tendência", "vetor" "trajetória", "direção", etc., foi retirado da Física como um conjunto de metáforas meramente convenientes e não como conceitos científicos rigorosos.

No frigir dos ovos, contudo, não há nada parecido com um "movimento da história humana" no sentido do deslocamento de um corpo físico relativamente a um espaço estacionário. Não há movimento da sociedade em um sentido semelhante ou análogo ao movimento dos corpos físicos e, por conseguinte, não pode haver nenhuma lei desse gênero como as há na Física.

Naturalmente, Popper adverte, essas críticas não atingem a cientificidade que as ciências humanas compartilham com as ciências naturais. E essa cientificidade está justamente no processo de conjecturas e de refutações, a tese central da epistemologia popperiana. Científica é a teoria da qual se possa derivar logicamente predições empíricas testáveis intersubjetivamente.

Ora, se não há lei universal da evolução humana, não há utopia e, por conseguinte, não há experimentos sociais globais. Só são possíveis experimentos localizados e determinados. Consequentemente, tudo o que as ações políticas e sociais podem fazer, por exemplo, é pôr em prática uma engenharia social pontual, isto é, propor medidas localizadas como solução para problemas determinados que serão controladas por seus resultados.

The Poverty of Historicism é uma das obras principais de Popper onde as relações entre epistemologia, crítica social e política são claramente expostas. O utopismo e o historicismo não são para Popper somente ideologias políticas, são teses epistemológicas errôneas com consequências desastrosas para a sociedade e para a liberdade.

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http://oleniski.blogspot.com.br/2016/01/popper-utopia-e-violencia.html


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

"Trono Manchado de Sangue": ambição, usurpação e o triunfo do mal



"Mas esta é a vossa hora e o poder das trevas." (Lucas 22:53)

O casal homem-mulher é símbolo do homem tomado como unidade substancial, como inteireza que unifica e dá sentido às potências distintas, mas não separadas, da alma. A mulher representa a parte nutritivo-apetitiva e o homem representa a parte intelectiva. A ordenação homem-mulher reflete a ordenação sadia das potências humanas: o intelecto governando a escolha dos bens apetecíveis.

No Éden, Adão é tentado não pela serpente, mas por Eva. Esta, ao receber a fruta da serpente, representa simbolicamente o apetite humano que se inclina àquilo que considera um bem. A fruta é símbolo de um bem correspondente àquela porção mais básica e menos humana da alma. Não à toa é uma serpente a tentadora. É o animal, o apetite, que dita a dinâmica dos atos. A mulher, a parte apetitiva, abaixa-se ao nível do animal ao conceber em si o desejo por bens tão pedestres.

Contudo, em si mesmos, os bens mais pedestres não são maus. Tornam-se maus quando usurpam o lugar dos superiores. É o que acontece quando Eva apresenta a fruta a Adão. O princípio intelectivo não mantém a ordenação sadia das potências, mas abaixa-se para provar o bem imediato e pedestre, esquecendo o summum bonum.

A proibição divina manifesta a hierarquia das coisas. A árvore no centro do mundo ascende simbolicamente como uma escada aos céus. Ao escolher seus frutos e não seu Criador, o homem escolhe os bens pedestres ao invés do único bem verdadeiro.  Por isso o homem passa a conhecer o bem e o mal. Não porque um dependa do outro, mas porque o mal só aparece no recuo do bem. O homem perfeitamente ordenado não conhece o mal pois tudo nele é bom. O mal só se apresenta como ausência da perfeição. O mal é perda.

O equilíbrio perdido é dificilmente recuperável e o destino dos homens é viver fora do Éden, fora da perfeição harmoniosa de sua natureza, contudo sempre anelando pelo dia do retorno. Cada homem, então, é um Éden desfeito, tendo em si um Adão e uma Eva desterrados, ansiosos pela conjugação perfeita de suas potências.

O horizonte simbólico de Kumonosu-jo (Trono Manchado de Sangue), filme clássico do grande diretor japonês Akira Kurosawa, é também formado pelo casal - Washizu (Macbeth) e Lady Asaji (Lady Macbeth) - , pelo desejo proibido, pela usurpação e pela desgraça que dele se segue. Baseado em Macbeth, de William Shakespeare, a trama sombria do filme segue as linhas gerais da peça trágica do bardo inglês.

Taketoki Washizu (interpretado pelo fantástico Toshiro Mifune) é um nobre guerreiro corajoso e leal que conduz os exércitos de seu senhor Kuniharu Tsuzuki (rei Duncan) à vitória sobre seus inimigos, revertendo uma derrota quase certa. Ao final da batalha, ele parte com seu fiel amigo Yoshiteru Miki para apresentar-se a seu senhor.

No caminho, ambos são surpreendidos por uma tempestade e, perdidos, acabam por encontrar uma choupana onde uma velha fiandeira os recebe com saudações as mais surpreendentes. A Washizu ela diz que ele será o senhor do castelo do Norte e, por fim, senhor do Castelo da Teia de Aranha, onde agora reina seu senhor, Tsuzuki. A Miki a anciã declara que ele será senhor do primeiro castelo e que seu filho será senhor do Castelo da Teia de Aranha. 

Ao ser ameaçada por Washizu, a velha desaparece tal qual um espírito.  Os guerreiros retomam seu caminho pensativos e, chegados ao castelo de seu senhor, por ele são calorosamente recebidos. Como recompensa, Tsuzuki nomeia Washizu senhor do castelo do norte e Miki senhor do primeiro castelo. Ambos dão-se conta que a velha misteriosa havia dito a verdade.

A velha fiandeira que prediz o futuro traz em si algo das três Moirae - Lachesis, Athropos e Clotho -, deusas que fiavam, mediam e cortavam o fio da vida humana na mitologia grega. Elas sabem o destino dos homens, por isso podem proclamá-lo. Na fala da velha, ver-se-á ao final, há a ambiguidade tradicional das profecias: o que é predito realiza-se de uma forma inesperada, frustrando as expectativas e as interpretações daqueles sobre os quais elas versam.

O que a velha espectral profetiza põe em movimento a roda dos acontecimentos funestos apresentados na trama. É ela, no entanto, a causa das desgraças de Washizu? Este não estaria condenado a buscar a realização daquela profecia simplesmente pelo fato de a haver dela tomado conhecimento?

Washizu já tivera antes em seu íntimo o desejo de tornar-se rei, sem dúvida. Não poderia ser diferente em se tratando de um guerreiro nobre. Mesmo assim, do desejo ao crime há um grande abismo. Ainda mais se o caminho que leva ao trono implica na quebra de leis sagradas como as da lealdade e da hospitalidade.

Humanamente, nada o obriga a cometer tão horrendo crime. Ele foi plenamente honrado por Tsuzuki com bens largamente condizentes com sua bravura na guerra. Nada lhe foi tirado. Não há uma Bríseis e nenhum Agamemnon para a fúria de Aquiles. Nenhum motivo justificaria um assassínio covarde como o que Washizu irá cometer.

A velha etérea dá voz ao desejo íntimo do coração de Washizu. Ela, de certa forma, age como a serpente a formular claramente o que o casal edênico já desejava. Toda tentação é tentação porque corresponde a alguma disposição apetitiva já presente no tentado. Washizu quer ser o senhor do Castelo da Teia de Aranha.

Mas nada disso implica que Tsuzuki deva ser assassinato. Esse é o ponto crucial da tragédia. É aqui que Washizu mostra seu verdadeiro caráter. Sua reação a dois componentes novos na situação determina os rumos da trama e o destino de sua alma.

Em primeiro lugar, uma oportunidade apresenta-se como que fortuitamente. Tsuzuki, em viagem, irá hospedar-se no castelo de Washizu. O guerreiro compreende facilmente que pode chegar ao trono simplesmente matando seu senhor durante a noite. Ele tem consciência clara da gravidade de tal ato. Hesita.

Então entra o segundo componente, as palavras de sua esposa, Lady Asaji. A mulher cobra-lhe a atitude de "verdadeiro homem", insinua que ele é covarde, apresenta-lhe todo o esquema do assassinato, humilha-o com seu desprezo, instila a desconfiança contra Tsuzuki em seu íntimo, alimenta a sua ambição.

Washizu, fraco, cede. Lady Asaji já usurpara o seu lugar e Washizu capitulara ante as palavras da esposa. O crime se dá como o planejado. Asaji embebeda as sentinelas e Washizu penetra livremente nos aposentos de Tsuzuki e o mata. O alarme é soado por Asaji e Washizu, fingindo comoção diante dos outros hóspedes, mata as sentinelas adormecidas antes que pudessem dizer qualquer coisa.

A trama da usurpação do trono por Washizu reflete exteriormente a usurpação do mal sobre a virtude no interior das almas de Washizu e de Lady Asaji.  Se tomados como uma unidade, o guerreiro e sua esposa simbolizam o homem cuja ordenação das potências da alma desfez-se. Tragado pelo desejo, pela ambição, todas as regras mais fundamentais são quebradas pelo homem desordenado.

O castelo é a árvore do bem e do mal. É o eixo do mundo. A usurpação é exatamente a tentativa de conquistar o bem supremo identificando-o com os bens pedestres. Washizu toma o trono que não lhe pertence e assim instala simbolicamente no centro do mundo seus próprios desejos. É ele agora que define o bem e o mal. Washizu não se submete à hierarquia das coisas, mas, ao contrário, revolta-se contra ela e a subverte.

Visto por esse prisma, Washizu não é menos que demoníaco. Que é o demônio senão um anjo que desviou seu rosto da contemplação divina para a contemplação de seus próprios desejos? Tsuzuki, seu senhor, representa a virtude e o direito. Ele é justo e recompensa generosamente aqueles que lhe são leais. Washizu provou dessa generosidade. Porém, isso não é suficiente. Ele quer o lugar de Tsuzuki, mesmo não possuindo a envergadura moral para sentar-se no trono. "Better to reign in Hell, than to serve in Heaven", diz o Lúcifer de Milton.

Washizu reina e o horror instala-se. A profecia sobre o filho de Miki tornar-se um dia rei atormenta-o e Washizu ordena secretamente a morte de seu antigo amigo, sem contudo conseguir assassinar o filho. Este foge para junto do filho de Tsuzuki e seus homens no exílio.

O mal que Washizu realizou começa a exigir vingança. O fantasma de Miki atormenta-o durante um banquete. A consciência dá sinais de impor-se pelo remorso. A tragédia abate-se sobre ele: Lady Asaji engravida logo em seguida, mas a criança nasce morta. Não haverá herdeiro do Grande Senhor Washizu.

Unidos em torno do filho de Tsuzuki, seus inimigos iniciam uma guerra de reconquista e tomam os castelos de Washizu, restando-lhe somente o Castelo da Teia de Aranha. Onde buscar auxílio senão nas forças que profetizaram sua chegada ao poder? Washizu consulta a velha etérea e esta promete-lhe que nada deverá temer enquanto a floresta da Teia de Aranha não atacar o castelo de Washizu.

Os inimigos de Washizu acampam na floresta para atacar sua fortaleza. Ele nada teme. Confiante que está na profecia, revela-a a seus homens reunidos para o combate. Não obstante, sinais de desgraça acontecem. Pássaros entram na fortaleza em debandada. Lady Asaji sucumbe ao remorso e à dor pela perda de seu filho e enlouquece. O desfecho está próximo.

Por fim, ao alvorecer, uma sentinela apavorada lhe diz que a floresta avança contra a fortaleza. Washizu, desesperado, contempla pela torre o movimento das árvores. Seus inimigos cortaram-nas e usaram-nas como cobertura para seu avanço. Mais uma vez o sentido da profecia era ambíguo e obscuro. A profecia cumpriu-se exatamente como fora profetizada. Washizu ouviu o que queria ouvir.

Os soldados de Washizu, sabendo da profecia de sua derrocada, alvejam seu senhor com inúmeras flechas e o matam. O ciclo da violência e do crime encerra-se. Washizu, o assassino de seu senhor, é morto por seus homens. O destino do ambicioso e criminoso é a morte pelas mãos das próprias forças que ele conjurara.