sábado, 26 de novembro de 2016

Eric Voegelin, política e a atitude gnóstica



"Todos os movimentos gnósticos estão envolvidos no projeto de abolir a constituição do ser, com sua origem no ser divino e transcendente, e substituí-la por uma ordem do ser imanente ao mundo, a perfeição da qual encontra-se ao alcance da ação humana. Trata-se de alterar de tal maneira a estrutura do mundo (percebida como inadequada), de modo que um novo e satisfatório mundo surja"

ERIC VOEGELIN, Science, Politics and Gnosticism, p.75

Em suas palestras públicas reunidas em livro sob o título Science, Politics and Gnosticism, o filósofo político alemão Eric Voegelin busca compreender pensadores e movimentos políticos da modernidade a partir da identificação de seus elementos essencialmente gnósticos. Apesar de ser originalmente um movimento religioso historicamente identificável da antiguidade tardia, o gnosticismo é também uma atitude diante do mundo que nasce como resposta a determinadas experiências reais.

O gnóstico, segundo Voegelin, vê o mundo não como um cosmo, um todo ordenado e bom, como o viam os helenos da era clássica e nem como a criação naturalmente boa de um Deus onipotente, como para os judeus e os cristãos. O mundo do gnóstico é mau, é fruto não da luz, mas da escuridão. É uma prisão a que os homens estão tristemente sujeitos e da qual urge escapar.

O homem é um exilado neste mundo, um ente expulso de uma realidade luminosa anterior e lançado nesta realidade obscurecida. Se o homem deve libertar-se e retornar à sua condição feliz anterior à queda na prisão, então deve haver meios de libertação. Estes são dados pelo "deus escondido" através de seus mensageiros que ensinam aos homens como abandonar o cárcere criado pelo pelo Deus deste mundo (Jahweh, Zeus ou algum outro deus antigo).

"Dentro da profusão das experiências e das expressões simbólicas gnósticas, um aspecto pode ser isolado como o elemento central nessa variada e extensa criação de sentido: a experiência do mundo como um lugar estrangeiro no qual o homem foi alienado e do qual ele deve encontrar seu caminho de volta ao outro mundo de sua origem. 'Quem me lançou no sofrimento deste mundo?', pergunta a 'Grande Vida' dos textos gnósticos, a qual é também 'primeira, vida estrangeira dos mundos da luz'. É estrangeira a este mundo e este mundo é estrangeiro à ela." (p.8)

Todavia, no próprio homem reside a chave da libertação, pois ele mesmo é constituído por um elemento deste mundo, a psyche, e um elemento divino, pneuma. Todo o esforço gnóstico constitui-se em desfazer os laços da psyche a fim de libertar o pneuma. Os gnósticos são os πνευματικοὶ, os pneumáticos.

As formas de libertação variam de seita a seita e vão desde exercícios ascéticos estritos, práticas mágicas e êxtases místicos, até à libertinagem e ao indiferentismo absoluto. Em todas essas práticas, o objetivo permanece o mesmo: a destruição do mundo antigo e a consequente libertação através do conhecimento, gnosis, uma vez que este mundo de trevas foi gerado por causa da ignorância, agnoia.

Apesar de reconhecer que seja compreensível tentar fugir de um estado opressivo, confuso e apavorante, Voegelin adverte que "a auto-salvação através do conhecimento possui sua própria mágica, e essa mágica não é inofensiva. A estrutura da ordem do Ser não vai mudar porque alguém a considera defectiva e quer fugir dela. A tentativa de destruição do mundo não destruirá o mundo, mas aumentará a desordem na sociedade." (p.10)

Voegelin considera que o gnosticismo é anterior ao próprio Cristianismo e que tenha sobrevivido através de movimentos religiosos da Idade Média e da Renascença e que tenha, enfim, alcançado a modernidade por meio de pensadores, correntes filosóficas e movimentos de massa. Entretanto, não pretende definir o gnosticismo ou investigar sua gênese histórica. Seu objetivo é apontar um conjunto de características que manifestam a atitude gnóstica diante do mundo.

A primeira característica do gnóstico é a insatisfação com o mundo. Obviamente, isso não é em si mesmo um problema, pois todos estamos insatisfeitos com um aspecto ou outro da realidade em que vivemos.

A segunda característica já é mais problemática. O gnóstico considera que a ordem do mundo é má, é defectiva, e que é por isso que há sofrimento humano. Não passa pela mentalidade gnóstica a possibilidade de que a ordem do Ser seja perfeita e boa e que o homem seja inadequado e seja responsável pelo próprio sofrimento. Se o homem sofre, diz o gnóstico, é porque o mundo é mau.

Em terceiro lugar vem a crença na libertação deste mundo e em quarto a certeza de que tal libertação acontecerá na mudança da ordem do Ser em um processo histórico. A quinta característica é a crença de que a  mudança está ao alcance do homem,

Finalmente, em sexto lugar, se há libertação e esta encontra-se ao alcance dos esforços humanos, o gnóstico dedicar-se-á a encontrar a chave para essa mudança. Seu objetivo é descobrir a fórmula de alteração da ordem do Ser, da sua salvação e a do mundo. Por conseguinte, seu papel será o de profeta que proclama a salvação da humanidade.

A atitude gnóstica acima caracterizada pode ser encontrada, segundo Voegelin, em pensadores modernos (gnósticos especulativos, como os denomina) como Hobbes, More, Hegel, Nietzsche, Marx e Heidegger e em movimentos de massa como o fascismo, o nazismo e o comunismo. E como deve haver possibilidade de alteração da ordem do Ser, o gnóstico especulativo fica obrigado a eliminar de sua imagem teórica do mundo toda e qualquer estrutura fixa da realidade que pareça impedir a almejada transformação radical.

A realidade não muda por causa dos desejos e das vontades humanas, decerto. O pensador gnóstico tampouco pode eliminar aspectos constitutivos do mundo. Se, todavia, há tais aspectos, então sua ambição de alteração alquímica do mundo está fadada ao fracasso. A solução gnóstica não é a conformação à realidade e sim a sua alteração teórica. Isto é, a imagem do mundo é reconcebida por meio da eliminação daquilo que em sua estrutura real é inexorável e imutável.

A imagem do mundo é falsificada a fim de não contrariar as esperanças gnósticas. Essa situação faz com que o pensador gnóstico crie um modelo falso do mundo omitindo fatores da realidade de cuja existência ele sabe perfeitamente. Voegelin considera que essa atitude revela uma pneumopatologia, uma patologia do espírito que caracteriza-se pelo ódio à realidade como ela constitui-se e pela consequente omissão teórica deliberada de aspectos fundamentais da estrutura dessa mesma realidade.

A Utopia de Thomas More seria um exemplo desse fenômeno, de acordo com Voegelin. Ao conceber a sociedade perfeita, More afirma que nela não haveria propriedade privada. Contudo, ele sabe perfeitamente bem que um tal estado de coisas jamais se dará simplesmente porque o homem possui a luxúria da posse. Apesar disso, ele diz que poderia haver uma sociedade perfeita se não houvesse essa luxúria. Mas, se ele mesmo admite que há esse empecilho incontornável, não parece haver razão para propor esse tipo de modelo perfeito de sociedade na história.

Na filosofia da História de Hegel, Voegelin encontra o mesmo padrão. Toda aquela construção teórica sustenta-se na medida em que se elimina o mistério da própria História concebendo-a como um todo capaz de ser apreendido cognitivamente. Acontece que o todo da História não é abarcável pelo pensamento e, portanto, não é objeto de conhecimento humano. Um aspecto essencial da estrutura da realidade é eliminado da imagem do mundo do gnóstico especulativo para que a sua esperança na transformação radical seja mantida.

E, para que essa imagem permaneça firme, instaura-se uma "proibição do questionamento". O pensador gnóstico, sabendo da fragilidade de sua construção teórica e da irrealidade de sua imagem amputada da ordem do Ser, proíbe explicitamente que perguntas fundamentais sejam feitas pelo leitor. Marx, assevera Voegelin, afirma que o homem é produzido pelo trabalho humano e qualquer pergunta fundamental sobre a origem do homem que ponha em questão essa tese é por ele condenada de antemão como fruto da mera abstração.

O fenômeno da proibição do pensamento não se restringe ao campo das discussões teóricas. Ele tem consequências funestas e sinistras quando torna-se socialmente efetivo. Voegelin cita as declarações de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, acerca de sua participação no Holocausto. Quando perguntado por qual razão não se negara a participar das atrocidades contra os judeus, Höss respondeu que jamais ocorreu-lhe questionar-se sobre suas ordens. Tal atitude era praticamente impossível.
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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Aristóteles, política e Esparta




"Nos governos da Lacedemônia e de Creta e, de fato, em todos os governos, dois pontos devem ser considerados. Primeiro, se qualquer lei particular pode ser considerada boa ou má, quando comparada com o estado perfeito. Segundo, se a lei é ou não consistente com a idéia e o caráter os quais o legislador apresentou a seus cidadãos."

ARISTÓTELES, Política, Livro II, 9

Aristóteles passa a analisar o governo de Esparta na seção 9 do segundo livro de sua Política e afirma, logo de início, que duas coisas devem ser avaliadas em um governo: se suas leis são boas ou más em comparação com o estado ideal e se essas leis coadunam-se ou não com as intenções expressas do legislador. Uma coisa é, portanto, saber se uma lei é justa ou injusta a partir da comparação com aquilo que seria uma cidade bem ordenada e outra saber se as leis escolhidas pelo legislador são ou não adequadas aos objetivos propostos.

Não há dúvida que o ócio deve ser assegurado aos cidadãos, comenta o filósofo macedônio. Nesse caso, o meio de assegurar esse ócio é a existência de escravos. As formas, contudo, de tratamento dos escravos variam e são mais ou menos eficientes. Tratá-los bem demais, torná-los-á insolentes e tratá-los severamente em excesso, torná-los-á inclinados à conspiração e à revolta.

O comentário de Aristóteles deve-se ao modo como os espartanos tratavam sua população subjugada, os helotes. Em geral, os helotes eram messênios, um povo do Peloponeso submetido à Esparta ainda nos éculo VII A.C. e que revoltou-se contra seus mestres mais de uma vez. O estado permanente de treino militar do cidadão espartano devia-se, entre outras coisas, ao estado permanente de tensão com os helotes. Para que se tenha uma idéia, todo ano era renovada e solenemente proclamada pelos éforos a declaração de guerra dos espartanos aos helotes.

Aristóteles considera que os problemas dos espartanos com as revoltas dos helotes advinham do tratamento excessivamente duro conferido a estes últimos. Considera também que o mesmo não acontecia com Creta, de situação similar, porque seus inimigos das cidades vizinhas não faziam alianças com os escravos de Creta em suas lutas contra a cidade, já que eles mesmos tinham como escravos populações submetidas. Isto é, a relativa estabilidade cretense devia-se simplesmente ao medo dos vizinhos de criar um clima de revolta dos escravos contra seus senhores.

Outro defeito da constituição espartana estava no tratamento dado às mulheres. Segundo o estagirita, o legislador espartano, Licurgo, preocupou-se em fornecer esmerada educação militar aos homens, mas negligenciou a educação feminina. Como resultado, sua intenção de criar um estado de temperança foi frustrado, pois as mulheres, deixadas sem uma educação apropriada, tornaram-se intemperantes e luxuriosas.

A consequência é que a riqueza passou a ser altamente valorizada, pois os homens eram dominados pelas mulheres, como é comum em raças guerreiras, as quais são muito inclinadas ao prazer sexual, seja com mulheres ou com homens. Parece, então, que o poeta estava certo ao unir Ares, o deus da guerra, à Afrodite, deusa do amor. E isso revelou-se verdadeiro mesmo no apogeu de Esparta, quando boa parte das atividades estavam nas mãos das mulheres.

A origem dessas leis Aristóteles traça nos primeiros tempos de Esparta quando os espartanos retornaram das guerras contra Argos, Arcádia e Messênia. Cansados por conta dessas guerras e treinados na disciplina militar, entregaram às disposições do legislador Licurgo. Contudo, quando este tentou dar leis às mulheres, os espartanos resistiram. Esse defeito original na constituição espartana, considera Aristóteles, criou os problemas acima mencionados e propiciou a avareza.

Licurgo proibiu a venda e a compra de herança, mas não proibiu a doação e havia espartanos que possuíam grandes propriedades enquanto outros possuíam propriedades muito pequenas. Como o número das herdeiras era grande e grandes também os dotes, o resultado foi a concentração feminina das propriedades. E a consequência, a diminuição dos cidadãos espartanos masculinos, o que expõe a cidade à conquista estrangeira.

Aristóteles critica também a instituição dos Éforos. Estes eram um grupo de cinco magistrados eleitos anualmente por sorteio entre os cidadãos cuja função era fiscalizar o cumprimento das leis e, até mesmo, julgar os dois reis de Esparta. Além dos éforos havia a Damos, a assembléia que votava as propostas apresentadas pela Gerousia, o conselho dos anciãoscomposta pelos dois reis e mais trinta cidadãos acima dos sessenta anos, eleitos por voto e com cargo vitalício.

Os éforos eram eleitos por sorteio entre todos os cidadãos, ricos ou pobres. Aristóteles considera que esse modo de escolha era prejudicial ao estado, já que homens pobres estariam mais inclinados à propina. Por outro lado, o poder conferido a eles era tão grande que mesmo os reis sentiam-se na obrigação de bajulá-los, pois, eventualmente, poderiam muito bem ser julgados pelos éforos. Daí que, na prática, a instituição dos éforos degradou a aristocracia espartana tornando-a efetivamente uma democracia.

O problema não é exatamente, diz Aristóteles, a eleição dos éforos entre todos os cidadãos, mas sim a forma adotada para isso. Eles tinham em suas mãos grandes decisões, as mais importantes da cidade, e não poderiam decidir somente usando o próprio julgamento, dado que eram homens comuns, mas sim de acordo com leis escritas. Além disso, sua posição conferia-lhes muitas licenças, enquanto os outros cidadãos viviam em uma disciplina muito rigorosa, o que conduz geralmente à fuga na direção dos prazeres sensuais.

A Gerousia também apresenta problemas. De fato, um conselho de anciãos, de homens experientes  e bem treinados nas virtudes viris é coisa boa. Se seu mandato deve ser vitalício já é matéria de debate, uma vez que os homens envelhecem na mente e no corpo. O modo de  sua eleição é infantil, assegura o macedônio, pois cidadãos em postos tão altos e com tão grande responsabilidade não deveriam ser obrigados a angariar votos. Os melhores deveriam ser simplesmente apontados, quer Aristóteles.

O legislador deve ter tido intenção de reconhecer a qualidade da ambição na instituição da eleição por votos na Gerousia. Pois somente os ambiciosos quereriam uma posição no conselho de anciãos. Contudo, a ambição e a avareza, mais do quaisquer outras paixões, são os motivos do crime. E os membros da Gerousia eram conhecidos por sua inclinação à propina e à corrupção.

A questão se reis são ou não uma vantagem, Aristóteles promete, tratará em capítulos posteriores. Por hora, o filósofo afirma que, pelo menos, os reis devem ser escolhidos por sua conduta e vida pessoal e não como eram escolhidos. Havia uma dupla monarquia em Esparta, dois reis de duas famílias aristocráticas rivais que reinavam em conjunto e que, na qualidade de herdeiros do trono, eram dispensados da agogé, o rígido treinamento militar a que todos os cidadãos espartanos estavam sujeitos a partir dos sete anos de idade.

A instituição dos banquetes comuns também criava problemas. Todo cidadão espartano adulto deveria tomar parte desses (frugais) banquetes comuns assim como sustentá-los. Não conseguir sustentar esses banquetes significava perda da cidadania. Como nem todos conseguiam manter os banquetes, os pobres eram alijados dos direitos de cidadania.

Aristóteles considera justa a crítica de Platão ao estado espartano em Leis. O legislador concentrou-se em somente uma virtude, a do soldado, a qual concede vitória na guerra. Ora, a guerra não é constante. Como não sabiam nada sobre as artes da paz, caíram tão logo foram obrigados a lidar com meios pacíficos. 

E, aponta o filósofo macedônio, outro grande erro foi cometido pelo legislador espartano. Embora acreditassem que os bens que os homens almejam devam ser adquiridos por meio da virtude e não por meio do vício, os espartanos erraram ao acreditar que tais bens fossem mais preciosos do que a virtude com a qual eles as adquiriam. Na verdade, a virtude é mais preciosa do que os bens que ela adquire.

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domingo, 13 de novembro de 2016

Popper, epistemologia, política e o sacrifício da consciência intelectual



"Eu estava chocado em ter de admitir a mim mesmo que não somente eu aceitara uma teoria complexa um tanto acriticamente, mas também que eu já havia notado um pouco do que estava errado tanto na teoria quanto na prática do comunismo. Mas eu havia reprimido isso, parcialmente por lealdade a meus amigos, parcialmente por lealdade à 'causa' e parcialmente porque há um mecanismo de envolver a si mesmo mais e mais profundamente: uma vez que alguém tenha sacrificado a consciência intelectual a respeito de um ponto menor, não desejará render-se muito facilmente. Desejará justificar o auto-sacrifício convencendo a si mesmo da bondade fundamental da causa, a qual é vista como algo que supera qualquer pequeno compromisso moral ou intelectual que porventura seja exigido. Com todo esse sacrifício intelectual ou moral, fica-se mais profundamente envolvido. Torna-se apto a sustentar os investimentos morais e intelectuais na causa com novos investimentos."

KARL POPPER, Unended Quest: An Intellectual Autobiography, p.33 

No texto Conjectures and Refutations, incluído em coletânea homônima de 1963, Karl Popper revela que a questão central de sua obra epistemológica - o critério de demarcação entre ciência empírica e pseudo-ciência empírica - nasceu no ano de 1919, quando ele ainda era um adolescente na Viena pós-primeira guerra.

Na época, diz Popper, havia intensa atividade política e grande confusão na capital austríaca. Diversas idéias e teorias reivindicavam o caráter de ciência, entre elas o marxismo, a psicanálise de Freud, a psicologia individual de Alfred Adler e a teoria da relatividade de Einstein. Esta última teve confirmada uma de suas predições importantes ainda naquele ano. 

Popper sentia que havia algo errado no marxismo, na psicanálise e na psicologia adleriana quando comparados aos sucessos preditivos da relatividade, embora todas essas teorias fossem consideradas, de modo geral, científicas. Os seus defensores gabavam-se do enorme poder de explicação e de confirmação dessas teorias. 

A resposta a essa situação é conhecida. Embora todas, aparentemente, fossem teorias confirmadas por evidências empíricas, somente a teoria de Einstein fazia predições realmente arriscadas, isto é, colocava-se sob teste empírico através de predições de eventos cuja existência só poderia ser descoberta por meio da própria teoria. As outras não faziam mais do que interpretar a realidade, qualquer que ela fosse, em termos de suas categorias teóricas, transformando assim em confirmação qualquer possível refutação da teoria.

Todavia, em sua autobiografia intelectual, Unended Quest, o filósofo austríaco revela uma experiência de ordem ético-política determinante para a formação de seu caráter, de seu pensamento epistemológico e de suas opções políticas posteriores. Esse episódio lança luz sobre as motivações éticas do racionalismo crítico e do liberalismo popperianos.  

Ainda em 1919, Popper relata, o recente fim da Primeira Guerra lançou a Áustria - em especial, Viena -, em um redemoinho de agitação e de incertezas de diversas ordens. Havia fome, desesperança, escassez e muito discurso político. No meio dessa imensa instabilidade, havia três grandes partidos: o social-democrata, o nacionalista germânico e o social-cristão. Os dois últimos, anti-socialistas.

Correndo por fora, havia um pequeno partido comunista, de tendência marxista. Poucos que fossem, os comunistas conseguiam adeptos graças ao discurso pacifista, pois a Rússia bolchevique cumpriu a promessa feita de sair da guerra por meio do pacto Brest-Litovsk. Popper, impressionado com esse discurso, ingressa nas fileiras comunistas.

Durante um protesto de jovens socialistas (Popper entre eles), um grupo destacou-se e tentou resgatar alguns companheiros comunistas da prisão na central de polícia de Viena. Diversos jovens socialistas e trabalhadores comunistas foram mortos. Chocado, o ainda adolescente Popper sentiu-se pessoalmente responsável pelo ocorrido, já que, enquanto marxista, acreditava que a luta de classes deveria ser intensificada, com o o objetivo de acelerar a revolução.

Foi ali que Popper, como ele mesmo relata, passou a questionar-se se, de fato, sabia se o marxismo era científico. Questionava-se se poderia assumir a responsabilidade de encorajar outros jovens a arriscar suas vidas em prol daquela profecia. Em especial, a tese segundo a qual a revolução exige algumas vítimas pareceu-lhe revoltante. 

Em uma palestra em 1992 intitulada The Collapse of Communism, Popper fornece ainda mais detalhes desse episódio traumático. Ele afirma que, mesmo antes do dia fatídico do protesto, já havia identificado traços preocupantes nas lideranças do partido. Entre outras coisas, a avidez em alimentar o ódio assassino contra as "classes inimigas", a admissão tácita de que a morte de camaradas era um preço justo a pagar pela revolução, o uso de mentiras e de afirmações contraditórias, tais como defender o terror revolucionário vermelho em um dia e dizer o oposto no dia seguinte.

Popper revela que aceitara todas essas teses, diretrizes e comportamentos, com grande custo moral, até o protesto de Junho de 1919. A descrição do episódio é praticamente a mesma de sua autobiografia. A única diferença notável é um acréscimo sobre a reação dos líderes à morte dos jovens. 

"Mas, quando retornei ao QG do Partido, encontrei uma atitude muito diferente: a revolução exigia tais sacrifícios. Eles eram inevitáveis. E significavam progresso, pois deixariam os trabalhadores furiosos com a polícia e cônscios da classe inimiga." (Popper, The Collapse of Communism, in All Life is Problem Solving, p. 134)

Retornando ao texto da autobiografia, o episódio de 1919 levara Popper a questionar-se se, afinal de contas, ele havia realmente dedicado-se a estudar a cientificidade do marxismo. E se realmente ele achava correto arriscar a sua vida e, principalmente, a de outros jovens, encorajando-os a arriscar suas vidas por uma tese que ele nem mesmo conhecia suficientemente.

E a resposta alcançada ao fim desse exame de consciência a um tempo epistêmico e ético, para sua tristeza, foi negativa. Ele havia se deixado seduzir por uma teoria perigosa acerca da qual não saberia dizer se era verdadeira ou falsa. Havia arriscado a sua vida e encorajado outros a fazer o mesmo por uma tese mal examinada. E pior, havia permanecido fiel a ela mesmo quando notara um bocado de suas falhas e do comportamento imoral de seus defensores.

Acreditara cegamente em um credo e arrogara-se um tipo de conhecimento que exigia como dever arriscar a vida de outros em nome de um futuro hipotético. Nesse momento, tornara-se anti-marxista, embora ainda fossem necessários alguns anos de estudo para que pudesse formular claramente suas objeções ao marxismo.

Popper identificará, anos depois, o que considerará o centro do marxismo, a saber, a profecia histórica combinada com um apelo implícito a uma regra moral: "ajude a trazer à realidade o inevitável". Mas postergará a publicação de suas críticas até 1935, por causa do receio de que elas pudessem ajudar de alguma forma no fortalecimento dos nacionalismos e dos fascismos em voga.

A rejeição do marxismo não significou, por vários anos, uma rejeição do socialismo. Esta só se deu quando percebeu que socialismo e liberdade eram incompatíveis, que a união de ambos não era mais que uma bela ilusão. Mais do que isso, Popper afirma que percebeu que a liberdade é mais importante que a igualdade, que a busca pela realização da igualdade ameaça a liberdade e que não há sequer igualdade entre aqueles que não são mais livres.

O encontro com o marxismo, Popper assevera, foi um dos mais importantes eventos de seu desenvolvimento intelectual. Ensinou a ele a modéstia intelectual, a necessidade da crítica racional, os perigos do dogmatismo e tornou-o um falibilista.

Essa experiência traumática de 1919 e o contato com a teoria da relatividade por meio de uma palestra ministrada por Einstein em Viena, convenceram-no de que era a atitude crítica - a disposição de submeter ao teste as próprias teorias - que caracterizava a legítima ciência empírica e não o dogmatismo de Marx, Freud e Adler. Estes não faziam mais do que interpretar todas as possíveis refutações em termos de suas teorias com o fim de colecionar verificações de suas teses.
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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Popper, lógica e a impossibilidade de previsão do curso futuro da História



"O centro do argumento é a consideração de que há certas coisas sobre nós mesmos as quais não podemos prever por métodos científicos. Mais especialmente, não podemos prever, cientificamente, resultados que obteremos no curso do crescimento de nosso próprio conhecimento. Outros, mais sábios que nós, podem ser capazes de prever o crescimento de nosso conhecimento, da mesma forma como nós, em certas circunstâncias, podemos prever o crescimento do conhecimento de uma criança. Mas eles também não serão capazes de prever o de antecipar hoje o que eles mesmos saberão somente amanhã." (itálico no original)

KARL POPPER, The Open Universe: An Argument for Indeterminism from the Postscript to The Logic of Scientific Discovery, p. 62

No prefácio de sua obra The Poverty of Historicism, Karl Popper apresenta, sucintamente, na forma de cinco teses, seu argumento contra o historicismo. Como já visto em posts anteriores (*), o filósofo austríaco define o historicismo como a tese segundo a qual há uma direção na História e que essa direção é discernível cientificamente, de modo que é possível prever o curso futuro dessa mesma História e basear nesse conhecimento todas as medidas racionais de ação política e social.

Popper afirma que uma formulação mais completa desse argumento já havia sido dada em um postscript ao Logic of the Scientific Discovery. Curiosamente, o argumento é ali apresentado com somente três teses, embora haja uma discussão maior na justificação de cada uma delas. No postscript o argumento é exposto da seguinte forma:

"1) Se é possível demonstrar que a auto-predição é impossível, seja qual for a complexidade do preditor, então o mesmo deve sustentar-se para qualquer 'sociedade' de preditores interagentes. Consequentemente, nenhuma 'sociedade' de preditores interagentes pode prever seus próprios estados futuros de conhecimento.

2) O curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento humano (a verdade dessa premissa deve ser admitida mesmo por aqueles que, como os marxistas, vêem em nossas idéias, incluindo as científicas, meramente produtos acidentais de desenvolvimentos materiais de um tipo ou de outro).

3) Não podemos, por conseguinte, prever o curso futuro da história humana. Não, em nenhuma medida, aqueles aspectos que são fortemente influenciados pelo crescimento de nosso conhecimento." (p.63)

O mesmo argumento é apresentado da seguinte forma no prefácio de The Poverty of Historicism

"1) O curso da história humana depende, em grande parte, do crescimento do conhecimento humano (A verdade dessa premissa deve ser admitida mesmo por aqueles que, como os marxistas, vêem em nossas idéias, inclusive as científicas, meramente produtos acidentais de desenvolvimentos materiais de um tipo ou de outro.

2) Não podemos, por conseguinte, prever, por métodos racionais ou científicos, o crescimento futuro de nosso conhecimento científico (esta asserção pode ser logicamente provada por considerações que serão esboçadas abaixo).

3) Logo, não podemos prever o curso futuro da história humana.

4) Isso significa que devemos rejeitar a possibilidade de uma história teorética. Isto é, uma ciência social histórica que corresponderia à física teorética. Não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico que sirva como base para predição histórica.

5) O objetivo fundamental das teorias historicistas é, portanto, equivocado. E o historicismo colapsa."

Popper, em seguida, afirma que o resultado dessa argumentação não significa uma negação da possibilidade de qualquer tipo de predição em ciências sociais, como, aliás, ficará explícito nos capítulos que constituem The Poverty of Historicism. Somente são atingidas pelo argumento popperiano as doutrinas sociológicas que têm o historicismo por base, isto é, aquelas que baseiam suas predições na suposição de uma direção histórica discernível cientificamente. Por outro lado, as pretensões epistêmicas do espectro de teorias sociais e econômicas que apenas predizem que certos resultados particulares seguir-se-ão de certas condições particulares permanecem inteiramente válidas.

A cogência da argumentação repousa sobre a premissa (2), como Popper mesmo admite. Segundo ele, não parece razoável considerar possível que um cientista possa, por meio de métodos científicos, prever quais serão as suas próximas descobertas. Não há como antecipar hoje aquilo que será conhecido somente amanhã. O máximo que uma teoria científica faz é prever certos eventos no futuro com base naquilo que ela afirma sobre a realidade.

A teoria prevê um estado de coisas possível no futuro que pode ou não vir a confirmar-se. Ela não pode prever o que será descoberto, mas somente a possibilidade de um evento determinado de cujo realidade ela não sabe de antemão. A ciência não pode prever quais serão os conhecimentos que ela descobrirá no futuro. Em outros termos, o estado atual de conhecimento científico não informa o estado de conhecimento futuro da ciência. Tais estados são logicamente independentes.

Popper afirma que o mesmo resultado vale tanto para indivíduos em uma sociedade quanto para uma hipotética máquina científica de predições. Nenhuma máquina de predições poderia prever o seu estado futuro de conhecimento tanto quanto nenhuma sociedade poderia prever seu estado futuro de conhecimento.

As teses acima apresentadas, segundo Popper, seriam suficientes para refutar as pretensões epistêmicas do historicismo e, consequentemente, de todas as teorias sociais, econômicas e políticas que tenham por base a tese da preditibilidade do curso futuro da História.

Contudo, no postscript do The Logic of Scientific Discovery, Popper explica melhor o que significaria poder prever cientificamente as descobertas futuras da ciência. Significaria, por exemplo, que a ciência poderia prever quais teorias ainda não aceitas ou desconhecidas hoje seriam aceitas no futuro.

Tal possibilidade, diz Popper, possui duas questões internas. Uma refere-se à capacidade de prever a aceitação futura de teorias não aceitas hoje e a outra refere-se à capacidade de prever o conteúdo de teorias futuras hoje desconhecidas. Esta segunda questão parece a Popper de somenos importância, pois se pudéssemos prever o conteúdo de teorias futuras, então essas teorias não seriam, por definição, futuras e sim atuais. 

Resta a outra questão, a saber, a predição da aceitação futura de teorias ainda não aceitas no presente. Se prever o conteúdo de teorias futuras é já concebê-las no presente, algo diferente é prever a aceitação futura de teorias que já existem, mas não foram ainda aceitas.

Ora, se uma teoria só pode ser aceita por causa da confirmação de suas predições, então uma teoria não é aceita hoje justamente porque carece de evidências a seu favor. Sendo assim, afirmar a possibilidade de prever a aceitação futura de uma teoria ainda não aceita equivale a poder prever hoje o resultado de predições ainda não realizadas.

Contudo, isso significa que a predição que prevê o resultado das predições de uma teoria ainda não aceita confirma não a teoria ainda não aceita e sim a teoria que prevê o resultado das predições da teoria ainda não aceita. Por exemplo, se tenho uma teoria T1 ainda não aceita por falta de evidências e prevejo a aceitação futura de T1 por meio de T0 que prevê os resultados positivos das predições de T1, então essa predição confirma T0 e não T1.

Só podem confirmar uma teoria as predições positivas que foram derivadas do corpo da própria teoria em teste. Em outros termos, aquilo que confirma uma nova teoria são as predições positivas feitas com auxílio da nova teoria e não predições feitas com auxílio de teorias que já possuímos.

Ou ainda, prever com uma teoria já existente os resultados das predições de uma teoria nova ainda não aceita é tornar a teoria nova irrelevante. Não faz sentido ter uma teoria nova cuja confirmação depende de predições cujos resultados já foram preditos por uma anterior.

Isso refuta o historicismo porque demonstra ser impossível prever os novos conhecimentos que ainda não foram descobertos. Em suma, a tese historicista é errônea por razões lógicas, pois se ela afirma que é possível prever o curso futuro da História e se, como afirma Popper, é logicamente impossível prever novos conhecimentos antes de eles serem descobertos e seu impacto sobre o curso da história humana, então esse curso está em aberto e é imprevisível.

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(*) http://oleniski.blogspot.com.br/2016/10/popper-ciencia-historicismo-historia.html
     http://oleniski.blogspot.com.br/2016/02/popper-historicismo-totalismo-e-utopia.html

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eric Voegelin e o fundamento da ciência política



"O evento decisivo no estabelecimento da politike episteme foi a percepção especificamente filosófica de que os níveis do Ser discerníveis dentro do mundo são ultrapassados por uma fonte transcendente do Ser e de sua ordem. E essa intuição estava, ela mesma, enraizada nos movimentos reais da alma espiritual humana na direção do ser divino experienciado como transcendente."

ERIC VOEGELIN, Science, Politics & Gnosticism, p. 13


Em 1958, na universidade de München, o filósófo político alemão Eric Voegelin ministrou uma lecture onde analisava a influência do gnosticismo antigo nas formas e filosofias políticas de seu tempo. A palestra pública dava-se por ocasião de seu retorno à Alemanha após o exílio nos Estados Unidos devido à perseguição nazista durante a segunda guerra.

A análise de Voegelin tomava como base sua concepção da ciência política segundo a qual esta procede de uma intuição da ordem transcendente do Ser que serve como medida e como crítica das diversas opiniões sobre a organização política da sociedade. Segundo o filósofo, essa concepção tem sua origem em Platão e em Aristóteles.

A ciência política - politike episteme - nasce no século IV A.C. a partir da questão se seria possível encontrar a ordem correta da alma humana e da sociedade, de modo que essa ordem pudesse servir de modelo, ideal ou paradigma para os cidadãos da polis grega. Decerto havia muitas opiniões - doxai - sobre como os homens deveriam comportar-se e organizar-se socialmente. Alguma delas, contudo, poderia exigir para si o caráter de objetividade científica?

Ora, diz Voegelin, essa base clássica da ciência política permanece válida até hoje. O objeto de seus estudos, contudo, não é nada esotérico e compõe-se daquelas perguntas que o filósofo compartilha com o homem comum: "O que é a virtude?", "Como ser feliz?", "Como deve a sociedade organizar-se?", "O que é a justiça?", entre outras questões. Todas elas nascem das condições objetivas da existência do homem em sociedade. E o filósofo, arremata Voegelin, é um homem tanto quanto todo homem.

Assim sendo, resta saber o que distingue os questionamentos e as asserções do filósofo sobre essas matérias daqueles questionamentos e asserções dos homens comuns que sustentam suas opiniões no debate público. A distinção se dá na pretensão qualitativa do filósofo. Suas asserções pretendem ser não meramente opiniões em conflito com outras opiniões e sim asserções que as ultrapassam em validade por serem fruto da utilização de instrumentos de análise científica.

O filósofo, então, inaugura ou novo conflito: não mais um mero conflito entre opiniões (doxai), mas um conflito entre opiniões e ciência (episteme). Obviamente, a análise científica não é limitada à análise lógico-formal que só pode determinar contradições internas das opiniões, contradições entre suas consequências e inferências inválidas. A análise científica julga a verdade daquilo que é dito e só pode fazê-lo na pressuposição de que a ordem real do Ser pode ser captada objetivamente.

A ciência orienta-se portanto, para a ordem do Ser, para a ordem objetiva da realidade. E essa orientação, assevera Voegelin, já está presente nos esforços teóricos de Platão e de Aristóteles. A ciência só pode operar na pressuposição de que a ordem da realidade pode ser captada para além das opiniões cambiantes.

Obviamente, a mera pressuposição de que a ontologia da realidade é acessível ao conhecimento humano não é suficiente para fundamentar a atividade científica. Para Voegelin, a especulação científica platônico-aristotélica não iniciou-se com uma mera pressuposição acerca da capacidade humana de captação da ordem objetiva do Ser e sim de uma experiência efetiva dessa captação.

Dito de outra forma, a própria concepção de uma análise científica só é possível graças à experiência da captação da ordem objetiva da realidade. Portanto, a ciência não nasce da pressuposição da cognoscibilidade objetiva da ordem do Ser, mas sim é um produto da experiência efetiva dessa cognoscibilidade.

Essa "abertura de alma", como o expressa Henri Bergson, é a condição de possibilidade da ciência, pois é somente a intuição da ordem do Ser como um todo que pode servir como régua e parâmetro de julgamento das opiniões correntes sobre a ordem da sociedade e a ordem da alma humana. É somente por essa captação da ordem da realidade que pode Sócrates opor-se às opiniões sobre a ordem da sociedade difundidas em seu tempo. Ele possui a medida objetiva que julga as opiniões subjetivas.

Não se trata somente de um debate teórico, contudo. As opiniões (doxai) que são confrontadas pela medida da ordem do Ser possuída pelo filósofo não são meramente falsas. Elas indicam uma desordem espiritual nas almas daqueles que as defendem. Por essa razão, a análise científica empreendida pelo filósofo será também uma terapia da ordem.

"A sociedade resiste à ação terapêutica da ciência", afirma Voegelin. Isso acontece porque não somente o valor teórico das opiniões confrontadas com a medida da ordem do Ser é posto em questão, mas também as atitudes humanas que as expressam. O que se segue é uma resistência à verdade, uma luta contra a verdade que pode chegar ao ponto de uma proibição do questionamento filosófico.

Voegelin afirma que essa proibição à indagação filosófica jamais aconteceu no mundo helênico, a despeito dos incômodos que ela houvesse criado. Sem dúvida, sempre houve resistências à análise por parte daqueles que defendiam opiniões baseadas meramente na tradição ou na emoção ou que eram ingenuamente confiantes em sua própria correção e que, por conseguinte, enervavam-se contra a análise de suas concepções.

É na modernidade que Voegelin identifica o surgimento do fenômeno da proibição da análise, desconhecido na antiguidade. Isto é, surgem pessoas que sabem que (e por qual razão) suas premissas não podem resistir ao escrutínio crítico da análise cientifica e que, por essa razão, fazem da proibição dessa mesma análise parte integrante de seus dogmas. Tal proibição encontra Voegelin nas obras de Hegel, Marx, Comte, entre outros pensadores.

Não obstante, assim como no seu nascimento na Grécia do século IV A.C., os objetos, os métodos e a precondição da ciência política permanecem os mesmos. As perguntas são as perguntas do homem comum vivendo em sociedade, o método é o da análise científica e a precondição é a abertura à ordem do Ser que pode medir e julgar o conjunto das opiniões veiculadas no debate acerca da ordem da sociedade. 

Isso não significa que as respostas dadas por Platão e por Aristóteles nos albores da ciência política sejam inteiramente válidas hoje, quando as condições da vida humana mudaram drasticamente. O que não mudou, segundo Voegelin, foi a situação básica da ciência política, como apresentada por ele.

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