terça-feira, 7 de junho de 2016

"Ame Agaru" e a inadequação da virtude


"E ele lhes disse: Qual dentre vós será o homem que, tendo uma só ovelha, se num sábado ela cair numa cova, não há de lançar mão dela, e tirá-la?" (Mateus 12,11)

Ame Agaru ("Após a Chuva"-1999), roteiro de Akira Kurosawa e filmado após sua morte, conta uma história simples: um ronin, Ihei Misawa, e sua esposa são detidos em uma hospedaria por uma forte chuva que tornou impossível a travessia de um rio no caminho de sua viagem. A hospedaria é simples, pobre e habitada por gente de baixa extração social.

Vendo a pobreza do lugar, Misawa organiza um grande banquete a fim de alegrar seus habitantes. Como não tem renda e nem emprego, dedica-se a lutar por dinheiro. Sua esposa, no entanto, o obrigou a prometer nunca mais arriscar-se nesses duelos. 

Certo dia, o tempo já melhorado, sai sozinho para passear e treinar na floresta e, inadvertidamente, vê-se diante de um duelo entre jovens samurais de um chefe local. Habilmente, ele interfere na luta e desarma os oponentes. Nesse ínterim, é visto pelo chefe local, o Senhor Nagai Izuminokami Shigeaki.

Impressionado com sua destreza, Shigeaki convida Misawa para ser seu mestre-de-armas. Este reluta, pois nunca conseguira firmar-se no serviço de nenhum senhor. Por fim, Misawa vai ao castelo de Shigeaki, onde é muito bem recebido e reverenciado. 

Não obstante, quando Shigeaki anuncia seus planos para Misawa, seus outros servidores exigem uma demonstração pública do talento de Misawa como espadachim, pois essa era a tradição. Contrariado, Shigeaki aceita a exigência. Ocorre que o ronin facilmente derrota dois dos espadachins de Shigeaki no combate com bokutos (espadas de madeira).

Como ninguém se apresentasse para duelar com Misawa, o próprio Shigeaki tomou uma lança de verdade e foi ao encontro de Misawa. Este, contudo, no afã do combate, derruba Shigeaki na água na frente de todos os deus subordinados. Misawa pede sinceras desculpas, não obtendo mais do que aumentar a raiva de Shigeaki que se ofende com a bondade e a gentileza do ronin.

Desolado, Misawa volta para a hospedaria sabendo que estragara tudo de novo. No caminho de volta, um grupo de subordinados de Shigeaki, ofendidos com Misawa, tentam matá-lo. Este os adverte que não prossigam com seu intento, pois ele  facilmente se deixava levar pelo impulso violento do combate e pedia o controle.

Eles não lhe dão ouvidos e são facilmente derrotados e feridos, sendo um deles morto pela espada de um de seus próprios companheiros. Nesse momento, Misawa sabe que seu destino está selado. Ele não será mais mestre-de-armas do castelo de Shigeaki.

Nesse ínterim, o tempo firma-se e o rio volta a seu volume normal. Misawa e sua esposa preparam-se para partir. O ronin ainda acalenta alguma esperança de ser contratado, mas logo ela é desfeita pela chegada de subordinados do chefe Shigeaki que o informam que, a despeito de seus grandes e evidentes talento e habilidade, ele não será chefe-de-armas porque dedicou-se a combates por dinheiro, algo desonroso.

A esposa de Misawa intervém e defende o marido dizendo que o único motivo pelo qual ele deedicava-se a esses combates era o desejo de ajudar as pessoas. O que importa não é o que se faz, mas razão pela qual se faz algo. Se assim Misawa ajuda os miseráveis e os desamparados, por qual razão as convenções devem ser seguidas?

Esse é o cerne de Ame Agaru. O costume pode obnubilar a visão, impedir que se reconheça que há uma lei mais profunda que os costumes externos da comunidade e à qual a alma humana deve obedecer, ainda que sob o preço da desonra e do desprezo públicos.

É porque Misawa é bom que ele é malsucedido socialmente. Enquanto os outros guiam-se por tradições caducas que não refletem ou enobrecem o espírito, Misawa busca a vida virtuosa que se esconde por trás dos atos aparentemente escandalosos ou desonrosos. A virtude não está no cumprimento cego de normas externas vazias e sim na ordenação da alma segundo valores inegociáveis que transcendem os passageiros acordos e convenções humanas.

A virtude de Misawa é interpretada como arrogância pelo senhor Shigeaki. Este sente-se ofendido menos pela derrota no combate do que pela preocupação e gentileza demonstradas por Misawa após sua vitória. A pretensa humilhação pública é seu único horizonte moral. Ele não consegue enxergar que ali em Misawa manifesta-se bondade e respeito legítimos e não a mera adulação exterior de seus subordinados.

Em sua juventude, Misawa, levado pela ambição de chegar a Edo, viajara aplicando um golpe em diversos dojos por onde passara. Ele entrava no dojo e, sem nenhum desejo sincero de vencer, desafiava o sensei para um combate. Antes que o adversário pudesse desferir o primeiro golpe, Misawa rendia-se dizendo-se derrotado. O sensei,então, ficava favoravelmente inclinado com relação a Misawa e o chamava à sua mesa e, por vezes, dava-lhe dinheiro.

Certa vez, contudo, diante de um grande mestre espadachim, Tsuji Gettan, Misawa estava prestes a render-se, como de costume, quando foi surpreendido pela rendição de seu nobre adversário. Este explicou a Misawa que, mesmo tendo lutado com muitos espadachins, não soubera o que fazer diante de alguém tão calmo e sem nenhum sinal de desejo de vencer.

Tsuji Gettan toma Misawa como discípulo e ensina-lhe tudo o que sabe. Está aí a origem de sua técnica imbatível. Misawa torna-se servo de um senhor, mas nada dá certo e ele volta à estrada. o mesmo acontece com mais dois senhores posteriormente. Misawa parece não servir para nada, como ele mesmo confessa.

Apesar disso, Misawa encontra um bom uso para suas habilidades. Elas servem aos pobres e necessitados. Ele não ambiciona vencer combates e duelos. Na verdade, Misawa não se encaixa em nenhuma das expectativas daqueles que o cercam. Mesmo sua gentileza parece deslocada e exagerada.

O rio caudaloso que interrompe a viagem de Misawa e de sua esposa representa o fluxo incessante dos assuntos mundanos que, por vezes, impedem a passagem e o seguimento do caminho verdadeiro. É um obstáculo acompanhado de uma forte tentação pela mundanidade e pelo sucesso exterior. É um nó que deve ser desatado por uma iluminação interior.

Essa iluminação se dá na figura da esposa de Misawa que, diante dos emissários de Shigeaki, ainda na hospedaria, finalmente compreende os motivos do esposo para continuar a duelar por dinheiro a despeito de sua promessa de não fazê-lo. Tendo compreendido, a esposa libera-o de seu juramento e diz a ele para duelar sempre que for preciso, se for para ajudar os pobres e os necessitados.

Misawa e sua esposa só podem atravessar o rio quando conformam-se com sua condição e compreendem as implicações da opção pela bondade e pelo caminho verdadeiro. A estrada agora está aberta e a recompensa não tardará.

Informado por seus servos dos reais motivos dos duelos por dinheiro de Misawa, Shigeaki percebe seu erro de julgamento e parte ao encalço de Misawa. Este e a esposa, porém, já estavam fora do alcance de Shigeaki. O homem cego pelos costumes não alcança o homem da virtude.

3 comentários:

vladimir rizzetto disse...

Tornei-me um leitor assíduo de seu blog, há uns oito meses, desde que o encontrei, acidentalmente, durante uma pesquisa, na qual eu procurava artigos sobre as Meditações Metafísicas de Decartes.
Minha cultura é bastante modesta, contudo, tomei gosto pela Filosofia e entre algumas coisas que li, muito me impactou a obra supracitada do filósofo francês, entretanto, e como não poderia deixar de ser, visto meu pouco preparo para tal, fiquei com muitas dúvidas.
Procurava por artigos na Internet, quando achei o seu blog e li um artigo sobre o tema, publicado em 2013.
Era tudo que eu precisava! Sua linguagem penetrável, clara e didática auxiliou-me sobremaneira para entender o trajeto mental percorrido pelo filosófo para provar a existência de Deus. O solipsismo, a dúvida dos sentidos, o princípio da causalidade e enfim, o fato de que a perfeição precede a imperfeição e etc.
Li também suas análises de filmes, sua implicações morais, filosóficas e etc., e devo dizer que elas aguçaram meu senso crítico e desde então, tenho assistidos aos filmes com atenção redobrada às sutilezas. Aliás, gostaria muito de ler um artigo seu sobre Stanley Kubrick. É só uma humilde sugestão.
E para finalizar, seus textos sobre Dostoiévski são magníficos.
Li recentemente Irmãos Karamazov e Crime e Castigo e, tenho O Idiota na estante aguardando para ser “devorado”. Foram leituras arrebatadoras, principalmente a de Irmãos Karamazov, uma obra-prima, no sentido mais amplo que esse termo possa significar.
Enfim, meus agradecimentos e congratulações.

R. Oleniski disse...

Olá Vladimir!

Fico muito feliz que o blog o tenha ajudado na compreensão de Descartes e incentivado seu interesse em Filosofia, Cinema e Literatura.Esse é o objetivo do blog.

Quanto ao Stanley Kubrick, é uma excelente sugestão. Gosto bastante da filmografia do Kubrick. Devo rever alguns de seus filmes em breve e escreverei sobre eles.

Muito obrigado pelos elogios.

Abraços!

Rogério

Fantino disse...

Ola, Rogerio,

Assim que possivel, por gentileza publique mais postagens a respeito desses filmes. Tenho apreciado as suas explicacoes a respeito das mensagens nesses filmes.

Abraco,

Angelo.