quinta-feira, 30 de junho de 2016

Aristóteles, política, unidade, propriedade comum e virtude


"Os homens prontamente ouvem e são facilmente induzidos a acreditar que, de alguma maravilhosa maneira, todos serão amigos de todos, especialmente quando alguém denuncia os males existentes agora nos estados - litígios sobre contratos, condenações por perjúrio, lisonjas de homens ricos e coisas semelhantes -, as quais dizem nascer da posse da propriedade privada. Tais males, contudo, são devidos a uma causa bem diferente: a maldade da natureza humana."

ARISTÓTELES, Política, II, 5, 1263b, [15]

No capítulo 5 do livro II de sua Política, Aristóteles passa a analisar as propostas de estado perfeito. A primeira questão que se apresenta é aquela da propriedade. Três opções aparecem no cenário das possibilidades: a) os cidadãos têm tudo em comum, b) os cidadãos não têm nada em comum, c) algumas coisas são comuns e algumas não são.

A opção (b) é impossível, pois uma comunidade necessariamente tem algo em comum, como o lugar onde está localizada. Resta, pois, analisar as duas opções restantes. Tomando a opção (a), devem os cidadãos ter esposas e crianças em comum, como quer Platão em sua República?

Em primeiro lugar, Aristóteles afirma que o princípio utilizado por Sócrates em defesa de sua tese não é propriamente demonstrado e, considerado como meio para o fim pretendido, é impraticável. A premissa do argumento socrático é a de que "quanto maior a unidade do estado, melhor ele será". Para Aristóteles, essa asserção é o centro do erro de Sócrates. E ele dará as razões a seguir.

O estado não pode atingir tal grau de unidade sem  sem deixar de ser o que é, ou seja, um estado. A sua natureza é ser uma pluralidade e, ao tender a ser uma unidade maior como quer Sócrates, ele tende a negar-se a si mesmo e a transformar-se - em uma gradação de unificação - em família e depois em indivíduo. Pois uma família é mais una que um estado e um indivíduo é mais uno que uma família.

Buscar essa unidade cada vez maior seria, portanto, almejar ao fim do estado enquanto tal. O estado é uma unidade de homens quantitativa e qualitativamente diferentes. Diferentemente de uma aliança militar, que depende de sua quantidade, o estado congrega homens de qualidades diferentes. E mesmo entre iguais, a alternância no governo é necessária (o que acarreta uma temporária diferença de status), de modo que todos governem, embora não ao mesmo tempo. 

A cidade não é uma unidade no sentido que é afirmado por Sócrates e outras pessoas. E, por outro lado, a unidade está em uma relação inversa com a auto-subsistência, como mostra o fato de que uma família é mais auto-suficiente do que um indivíduo e um estado mais auto-suficiente do que uma família. Se a auto-suficiência é algo a ser desejado, então a unidade extrema deve ser evitada.

Ademais, ainda que fosse realmente um bem, o ideal da absoluta posse comum esconde em si uma falácia. A unidade perfeita de um estado é alcançada, como diz Sócrates, pelo fato de que todos os homens podem dizer "meu" e "não meu" ao mesmo tempo. Na absoluta comunidade de bens, os homens dizem que possuem "tudo", mas não podem dizer que possuem "cada" uma das coisas, "esta" coisa. 

Na verdade, nada lhes pertence, mas é só a ambiguidade da palavra "tudo" é que torna possível afirmar que "tudo me pertence". As coisas não pertencem a este homem separadamente, distintamente, mas coletivamente. A ambiguidade do sentido de "tudo" dá a impressão de que é possível a um tempo ser dono de "tudo" e de "cada coisa". Possuir algo em comum é justamente não tê-lo como propriedade separada, distinta, privada. 

Tomás de Aquino, em seu comentário à Política, explica:

"Quando se diz, 'Todos dizem: Isso é meu', a proposição tem dois sentidos, uma vez que a palavra todos pode ser interpretada distributivamente ou coletivamente.  Se distributivamente, o sentido seria que cada um individualmente poderia dizer sobre tal e tal coisa: 'Isso é meu'. E então Sócrates teria dito algo talvez verdadeiro, desde que cada um amaria uma e a mesma pessoa como seu filho e, da mesma forma, uma e a mesma mulher como sua esposa. O mesmo é também verdadeiro sobre os meios de subsistência (i.e., propriedade). Mas aqueles que possuem em comum esposas e filhos não vão dizer 'Isso é meu'  nesse sentido. Antes, todos di-lo-ão coletivamente, como possuindo uma e a mesma coisa comum, mas de tal modo que ninguém enquanto individual dirá: 'Isso é meu'. E o mesmo é verdade também se a propriedade deva ser em comum, desde que não pertencerá a ninguém individualmente como algo próprio."

Tomás acrescenta que o raciocínio socrático é sofístico porque os termos "todas as pessoas" e "cada coisa", por sua ambiguidade, tornam o raciocínio contencioso. Por exemplo,

"Se alguém dissesse com relação a duas séries de três coisas que ambas são pares, isso seria verdade se compreendêssemos a afirmação coletivamente, uma vez que as duas séries de três, como conjunto, são pares. Mas se entendêssemos a afirmação distributivamente, ambas são ímpares. Assim, deveríamos dizer que seria bom em um sentido que todos dissessem sobre a mesma coisa que ela é deles, nomeadamente, enquanto todos é interpretado distributivamente.  Mas isso é impossível, pois implica em uma contradição. Pois, pelo próprio fato de que algo pertence a esta pessoa, esse algo não pertence à outra. E se entendêssemos todos coletivamente, não distributivamente, tal seria impróprio (i.e., inadequado para uma comunidade política)."

E há mais problemas, segundo Aristóteles. Aquilo que é comum a um grande número é objeto de pouco cuidado e de pouca estima. Todos são inclinados a negligenciar o cuidado daquilo que também é dever de outrem cuidar. Em famílias, uma quantidade menor de empregados é melhor do que uma quantidade maior, pois um empregado não esperará que o outro faça o que deveria ser feito por qualquer um deles.

A consequência lógica da posse comum de mulheres e crianças é o parricídio, o matricídio, o infanticídio e o incesto, pois, não sabendo quem é o filho de quem e quem são os pais de quem, as desavenças que degeneram em violência serão dirigidas, inadvertidamente, sem que os atores o saibam, contra seus próprios filhos e seus próprios pais. O mesmo ocorrendo com o incesto.

Como  não há mais "pais" e "filhos" no sentido usual e restrito, não há as relações afetivas que esses nomes estabeleciam. As duas qualidades que geram a atenção e o afeto, a de que algo é seu e que esse algo é exclusivamente seu, estarão extintas em um tal estado.

No que tange somente à questão da propriedade de bens - que pode ser tratada separadamente da posse comum de esposas e filhos-, os problemas são análogos. A vida em comum sempre gera muitos problemas, mais ainda quando a posse dos bens é comum. Brigas e desentendimentos serão comuns, como o demonstram aqueles que viajam juntos ou vivem constantemente juntos.

A solução é um meio-termo entre a absoluta posse comum dos bens e a absoluta posse individual. Em certo sentido, a posse deve ser comum, embora, como regra geral, privada. Quando cada um tem seu próprio interesse, os homens não brigam - como o fazem aqueles que têm tudo em comum - e fazem maior progresso, cada um buscando o que lhe convém.

Mas, por razão da bondade (nascida de bons costumes e da lei), com respeito ao uso dos bens, os homens terão posse comum, como já diz o provérbio que "amigos têm tudo em comum". Tendo a propriedade dos bens, o homem colocará algumas coisas à disposição de seus amigos e estes desfrutarão desses bens. O dever do legislador é criar essa boa disposição nos homens.

Acrescenta Aristóteles que imensamente maior é o prazer do homem na posse de algo que é seu. O prazer da propriedade está ligado ao amor de si mesmo, algo que, sendo natural, não pode ser nem mal e nem despropositado. Que fique claro, assevera o filósofo, que não é o amor de si mesmo enquanto tal que é um mal e sim sua perversão, a saber, o egoísmo. É o amor exagerado de si mesmo que é vicioso e não o simples amor-próprio.

A posse comum dos bens elimina duas virtudes: a temperança e a liberalidade. A temperança porque é virtuoso abster-se daquilo que pertence a outrem e a liberalidade porque ser liberal é fazer um uso não egoísta dos bens que se possui. Abolida a propriedade, abolem-se essas virtudes. 

Frequentemente, diz Aristóteles, os homens se deixam levar pela capciosa aparência de bondade da posse comum dos bens e estão inclinados a acreditar em qualquer um que lhes prometa uma maneira mágica de os homens tornarem-se todos amigos. Principalmente quando aquele que promete enumera os males reais e observáveis que, segundo ele, devem-se somente à propriedade dos bens.

Os males em questão, porém, não são fruto da propriedade enquanto tal e sim da maldade humana. Assim como o amor de si mesmo não é por si um mal, da mesma forma a propriedade não o é. São somente suas perversões, seus vícios, que os tornam males. A solução não é eliminar a possibilidade do vício e sim fomentar a virtude, a qual manterá o uso correto dos bens. Não é pela eliminação das condições de liberdade (e, por conseguinte, da possibilidade do vício) que se eliminará o vício, mas pela educação para a virtude.

Todo o erro de Sócrates reside na falsa noção de unidade da qual ele parte. A unidade é característica do indivíduo, da família e do estado. Só que em sentidos diferentes. O estado não pode ser uno como a família é una e o indivíduo é uno. O estado é uma pluralidade que deve ser unificada e tornada uma comunidade real por educação, defende Aristóteles.

O filósofo macedônio acha estranho que Sócrates, o autor de um sistema de educação que pretende criar um estado virtuoso, considere que seja possível chegar ao resultado almejado por meio de regulações desse gênero e não por meio de filosofia, educação ou leis. E, por fim, não deveríamos desprezar a experiência das eras. Na multidão dos anos, se essas coisas fossem boas, elas já teriam sido descobertas. 

terça-feira, 14 de junho de 2016

Michael Polanyi: ciência, totalitarismo, nihilismo e inversão moral



"A verdadeira antítese é, portanto, entre o Estado e as coisas invisíveis que guiam os impulsos criativos dos homens e nas quais as consciências dos homens estão naturalmente enraizadas. Os fundamentos gerais da coerência e da liberdade em sociedade podem ser considerados seguros na medida em que os homens sustentam sua crença na realidade da verdade, da justiça, da caridade e da tolerância e aceitam a dedicação ao serviço dessas realidades. Por outro lado, espera-se que a sociedade desintegre-se e caia na servidão quando os homens negam, minimizam ou simplesmente negligenciam essas realidades e obrigações transcendentes." (tradução minha do original em inglês)

MICHAEL POLANYI, The Logic of Liberty, p.57


Os ensaios reunidos no volume The Logic of Liberty do químico e filósofo da ciência húngaro Michael Polanyi (1891-1976) têm como tema comum, como o o título da coletânea indica, a questão da liberdade. Em todos eles, o autor procura aclarar o conceito de liberdade e suas implicações.

Cientista, Polanyi tem como eixo de suas reflexões filosóficos a natureza do empreendimento científico e suas condições de florescimento e de desenvolvimento. Esse ponto de vista inicial, contudo, dá ensejo a análises filosóficas mais profundas acerca das condições de possibilidade de uma sociedade livre e de seus valores fundantes.

Para o pensador húngaro, a ciência só pode realizar-se e manter-se como tal se ela estiver ancorada em uma busca pelo conhecimento pelo conhecimento. Isto é, o fundo da pesquisa científica é sempre um desejo de conhecer pelo próprio conhecer. É o que se usa chamar de  ciência pura. O impulso pelo saber - ainda que nenhum efeito ou utilidade prática, ao menos inicialmente, possa se divisar no horizonte da pesquisa - é o que sustenta a ciência como empreendimento intelectual livre.

A liberdade da pesquisa expressa-se na liberdade dos pesquisadores, cada um buscando seus próprios projetos e interesses intelectuais, mas que submetem seus resultados à avaliação de seus pares, estando atentos aos trabalhos de outros pesquisadores. Essa dinâmica só é possível porque é governada por valores compartilhados por todos os pesquisadores. 

Esses valores fundam padrões de excelência e de avaliação que são mantidos em uma tradição que é passada a cada novo pesquisador através da educação acadêmica. Daí que Polanyi é capaz de falar de uma certa "ordem emergente" que caracterizaria o mundo da ciência. 

Embora cada um dos cientistas persiga seus próprios interesses intelectuais, todos estão atentos ao desenvolvimento realizado pelos outros pesquisadores e comparam seus trabalhos com aqueles de seus colegas. E todos eles realizam suas pesquisas tendo como pano de fundo uma tradição de busca da verdade pela verdade que define parâmetros e critérios avaliativos.

Assim, a pesquisa científica pode ser livre, pois o único controle necessário é realizado não por meios externos à ciência, mas pela fidelidade aos valores fundantes da tradição da atividade intelectual. Graças a esses valores de conhecimento pelo conhecimento, a ciência pura está livre dos controles aos quais a ciência prática não pode escapar.

Qualquer outro objetivo que não o da livre persecução da verdade pela verdade conduzirá a ciência ao serviço dos interesses práticos de governos e regimes e à escravidão do planejamento estatal. Polanyi cita como ilustração de sua tese a destruição da liberdade acadêmico-científica na URSS, em especial no escandaloso caso Lysenko, quando as autoridades do Partido promoveram um charlatão científico por causa de uma suposta incompatibilidade entre o mendelismo e o materialismo histórico marxista.

Polanyi, porém, considera que a ciência é o microcosmo da sociedade e que é possível alcançar um conceito adequado de uma sociedade livre utilizando-se dos mesmos conceitos. Diferentemente dos defensores da open society como John Stuart Mill e Karl Popper, Polanyi não considera que a sociedade liberal seria aquela que toda e qualquer opinião ou tese fosse bem-vinda e igualmente digna de atenção.

A sociedade assim concebida estaria condenada à destruição por uma contradição interna. Como defender valores inalienáveis em uma estrutura assim?Ao contrário, uma sociedade livre seria justamente aquela em que certos valores são inegociáveis e na qual teses que atentem contra esses valores fundamentais não são levadas em consideração.

A "sociedade livre", como Polanyi a denomina contrapondo-se à "sociedade aberta", é aquela nas quais os indivíduos estão livres para guiar suas vidas por valores que apelam às suas consciências. Isto é, os homens dessa sociedade são livres porque podem guiar-se por obrigações transcendentes, por valores inegociáveis como justiça, verdade, caridade, tolerância. 

A ciência não pode ser livre a não ser se os indivíduos possam livremente guiar suas pesquisas pela busca do conhecimento pelo conhecimento, valor central da tradição da liberdade intelectual. Analogamente, uma sociedade não é livre se nega a seus cidadãos o direito de cultivar suas vidas ancorados em uma tradição de valores transcendentes e inalienáveis de verdade, caridade, tolerância e justiça.

Por essa razão, todas as tentativas de planejamento da sociedade e da ciência que, por definição, precisam da negação dessas realidades para realizar seus intentos serão inevitavelmente totalitárias. As raízes dos totalitarismos nazista e comunista encontram-se, segundo Polanyi, em uma tradição de ceticismo corrosivo e materialista que insurgiu-se contra as antigas estruturas de poder e que erigiu a Razão como sua deusa e salvadora sem dar-se conta de que o questionamento de tudo conduz ao nihilismo.

Os movimentos liberais que derrubaram os antigos regimes no século XVIII apresentaram aspectos diferentes no mundo anglo-saxão e no continente europeu. Enquanto no primeiro a força incongruente e dissolvente do questionamento de todos os valores foi barrada por uma sólida tradição que primou não pelo anti-clericalismo, mas pela defesa da liberdade religiosa e individual, no segundo viu-se a luta pela completa destruição dos valores tradicionais e, principalmente, religiosos.

O problema é que a Razão - erigida como valor soberano - não se justifica a si mesma e o movimento ulterior de crítica e de questionamento conduziu logicamente o continente ao ceticismo com relação às suas próprias bases racionais. Sucedâneos políticos são propostos nos quais os valores não têm realidade em si mesmos e tão somente representam os efeitos inevitáveis de uma estrutura material que a tudo determina, como o marxismo.

Todos os valores postos em dúvida como consequência do poder dissolvente do questionamento sem limites, todos os valores transformados em efeitos mecânicos de causas materiais, nada de legitimamente humano resta ao homem europeu continental. Nasce, então, a figura do nihilista. É o nihilista, segundo Polanyi, que fará a transição entre as consequências lógicas da perda dos valores e as ações revolucionárias e destrutivas que fundaram os grandes massacres e tiranias do século XX.

Inicialmente um solitário sem um credo político definido, como Bazarov de Pais e Filhos de Ivan Turgeniev e Rodion Raskolnikov de Crime e Castigo de Fiodor Dostoievski, o nihilista rapidamente passa às ações terroristas e revolucionárias, como o "grupo dos cinco" de Os Possessos de Dostoievski. A conversão dos nihilistas de solitários individualistas em revolucionários políticos ferozes é o que explica a fim da liberdade ocorrido na Europa.

Polanyi afirma que teorias políticas como o marxismo foram adotadas pelos nihilistas por diversos motivos. Em primeiro lugar, elas reverberavam os antigos ditames da corrosão cética do Iluminismo radical. Em segundo, o marxismo predizia o futuro de uma sociedade livre dos valores e das estruturas antigas como um processo mecânico e inescapável, com a frieza de uma observação científica.

"O seu nihilismo impediu-os de exigir justiça em nome da justiça ou humanidade em nome da humanidade. Tais palavras foram banidas de seu vocabulário e suas mentes foram fechadas a esses conceitos. Porém, silenciadas e reprimidas, suas aspirações morais encontraram um canal na predição científica de uma sociedade perfeita. Aqui foi estabelecida uma Utopia científica que dependia somente da violência para a sua realização." (POLANYI, p. 130)

Esse processo de conversão configura aquilo que Michael Polanyi chama de "inversão moral", isto é, a negação do valor intrínseco e transcendente dos princípios éticos por meio de seu esvaziamento em termos meramente materialistas. O fim da liberdade acontece justamente quando valores como "razão" e "moralidade" são despidos de sua importância e autoridades intrínsecas por meio de interpretações materialistas.

O totalitarismo e a opressão que daí se seguem é maior e mais terrível do que qualquer opressão que possa ter advindo da antiga autoridade eclesial que - por mais controladora que pudesse ser - sempre reconheceu a importância intrínseca dos valores e deveres morais e racionais e sempre deixou espaço para o cuidado da consciência individual.

O Partido torna-se então o senhor de todos os atos humanos justamente porque não reconhece nenhuma esfera de consciência individual, de vida interior que deva escapar-lhe. Tudo é submetido à meticulosidade do controle justificado pela predição "científica" e materialista do futuro. Não há bases de valor objetivo e intrínseco com as quais qualquer indivíduo possa justamente opor-se aos tiranos de seu tempo. O homem não é mais homem e, portanto, não é mais livre.

terça-feira, 7 de junho de 2016

"Ame Agaru" e a inadequação da virtude


"E ele lhes disse: Qual dentre vós será o homem que, tendo uma só ovelha, se num sábado ela cair numa cova, não há de lançar mão dela, e tirá-la?" (Mateus 12,11)

Ame Agaru ("Após a Chuva"-1999), roteiro de Akira Kurosawa e filmado após sua morte, conta uma história simples: um ronin, Ihei Misawa, e sua esposa são detidos em uma hospedaria por uma forte chuva que tornou impossível a travessia de um rio no caminho de sua viagem. A hospedaria é simples, pobre e habitada por gente de baixa extração social.

Vendo a pobreza do lugar, Misawa organiza um grande banquete a fim de alegrar seus habitantes. Como não tem renda e nem emprego, dedica-se a lutar por dinheiro. Sua esposa, no entanto, o obrigou a prometer nunca mais arriscar-se nesses duelos. 

Certo dia, o tempo já melhorado, sai sozinho para passear e treinar na floresta e, inadvertidamente, vê-se diante de um duelo entre jovens samurais de um chefe local. Habilmente, ele interfere na luta e desarma os oponentes. Nesse ínterim, é visto pelo chefe local, o Senhor Nagai Izuminokami Shigeaki.

Impressionado com sua destreza, Shigeaki convida Misawa para ser seu mestre-de-armas. Este reluta, pois nunca conseguira firmar-se no serviço de nenhum senhor. Por fim, Misawa vai ao castelo de Shigeaki, onde é muito bem recebido e reverenciado. 

Não obstante, quando Shigeaki anuncia seus planos para Misawa, seus outros servidores exigem uma demonstração pública do talento de Misawa como espadachim, pois essa era a tradição. Contrariado, Shigeaki aceita a exigência. Ocorre que o ronin facilmente derrota dois dos espadachins de Shigeaki no combate com bokutos (espadas de madeira).

Como ninguém se apresentasse para duelar com Misawa, o próprio Shigeaki tomou uma lança de verdade e foi ao encontro de Misawa. Este, contudo, no afã do combate, derruba Shigeaki na água na frente de todos os deus subordinados. Misawa pede sinceras desculpas, não obtendo mais do que aumentar a raiva de Shigeaki que se ofende com a bondade e a gentileza do ronin.

Desolado, Misawa volta para a hospedaria sabendo que estragara tudo de novo. No caminho de volta, um grupo de subordinados de Shigeaki, ofendidos com Misawa, tentam matá-lo. Este os adverte que não prossigam com seu intento, pois ele  facilmente se deixava levar pelo impulso violento do combate e pedia o controle.

Eles não lhe dão ouvidos e são facilmente derrotados e feridos, sendo um deles morto pela espada de um de seus próprios companheiros. Nesse momento, Misawa sabe que seu destino está selado. Ele não será mais mestre-de-armas do castelo de Shigeaki.

Nesse ínterim, o tempo firma-se e o rio volta a seu volume normal. Misawa e sua esposa preparam-se para partir. O ronin ainda acalenta alguma esperança de ser contratado, mas logo ela é desfeita pela chegada de subordinados do chefe Shigeaki que o informam que, a despeito de seus grandes e evidentes talento e habilidade, ele não será chefe-de-armas porque dedicou-se a combates por dinheiro, algo desonroso.

A esposa de Misawa intervém e defende o marido dizendo que o único motivo pelo qual ele deedicava-se a esses combates era o desejo de ajudar as pessoas. O que importa não é o que se faz, mas razão pela qual se faz algo. Se assim Misawa ajuda os miseráveis e os desamparados, por qual razão as convenções devem ser seguidas?

Esse é o cerne de Ame Agaru. O costume pode obnubilar a visão, impedir que se reconheça que há uma lei mais profunda que os costumes externos da comunidade e à qual a alma humana deve obedecer, ainda que sob o preço da desonra e do desprezo públicos.

É porque Misawa é bom que ele é malsucedido socialmente. Enquanto os outros guiam-se por tradições caducas que não refletem ou enobrecem o espírito, Misawa busca a vida virtuosa que se esconde por trás dos atos aparentemente escandalosos ou desonrosos. A virtude não está no cumprimento cego de normas externas vazias e sim na ordenação da alma segundo valores inegociáveis que transcendem os passageiros acordos e convenções humanas.

A virtude de Misawa é interpretada como arrogância pelo senhor Shigeaki. Este sente-se ofendido menos pela derrota no combate do que pela preocupação e gentileza demonstradas por Misawa após sua vitória. A pretensa humilhação pública é seu único horizonte moral. Ele não consegue enxergar que ali em Misawa manifesta-se bondade e respeito legítimos e não a mera adulação exterior de seus subordinados.

Em sua juventude, Misawa, levado pela ambição de chegar a Edo, viajara aplicando um golpe em diversos dojos por onde passara. Ele entrava no dojo e, sem nenhum desejo sincero de vencer, desafiava o sensei para um combate. Antes que o adversário pudesse desferir o primeiro golpe, Misawa rendia-se dizendo-se derrotado. O sensei,então, ficava favoravelmente inclinado com relação a Misawa e o chamava à sua mesa e, por vezes, dava-lhe dinheiro.

Certa vez, contudo, diante de um grande mestre espadachim, Tsuji Gettan, Misawa estava prestes a render-se, como de costume, quando foi surpreendido pela rendição de seu nobre adversário. Este explicou a Misawa que, mesmo tendo lutado com muitos espadachins, não soubera o que fazer diante de alguém tão calmo e sem nenhum sinal de desejo de vencer.

Tsuji Gettan toma Misawa como discípulo e ensina-lhe tudo o que sabe. Está aí a origem de sua técnica imbatível. Misawa torna-se servo de um senhor, mas nada dá certo e ele volta à estrada. o mesmo acontece com mais dois senhores posteriormente. Misawa parece não servir para nada, como ele mesmo confessa.

Apesar disso, Misawa encontra um bom uso para suas habilidades. Elas servem aos pobres e necessitados. Ele não ambiciona vencer combates e duelos. Na verdade, Misawa não se encaixa em nenhuma das expectativas daqueles que o cercam. Mesmo sua gentileza parece deslocada e exagerada.

O rio caudaloso que interrompe a viagem de Misawa e de sua esposa representa o fluxo incessante dos assuntos mundanos que, por vezes, impedem a passagem e o seguimento do caminho verdadeiro. É um obstáculo acompanhado de uma forte tentação pela mundanidade e pelo sucesso exterior. É um nó que deve ser desatado por uma iluminação interior.

Essa iluminação se dá na figura da esposa de Misawa que, diante dos emissários de Shigeaki, ainda na hospedaria, finalmente compreende os motivos do esposo para continuar a duelar por dinheiro a despeito de sua promessa de não fazê-lo. Tendo compreendido, a esposa libera-o de seu juramento e diz a ele para duelar sempre que for preciso, se for para ajudar os pobres e os necessitados.

Misawa e sua esposa só podem atravessar o rio quando conformam-se com sua condição e compreendem as implicações da opção pela bondade e pelo caminho verdadeiro. A estrada agora está aberta e a recompensa não tardará.

Informado por seus servos dos reais motivos dos duelos por dinheiro de Misawa, Shigeaki percebe seu erro de julgamento e parte ao encalço de Misawa. Este e a esposa, porém, já estavam fora do alcance de Shigeaki. O homem cego pelos costumes não alcança o homem da virtude.