sábado, 23 de janeiro de 2016

"Ran", caos, cegueira e decadência




“Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada, pela espada morrerão." (Mt 26,52) 

Ran (1985), de Akira Kurosawa, é um filme sobre a decadência, a cegueira e o caos que resulta de ambos. Sombrio como Trono Manchado de Sangue e também inspirado em uma tragédia de Shakespeare, o filme apresenta a queda e a desgraça de um lorde guerreiro ancião como consequências de suas próprias escolhas passadas e presentes.

A trama inicia-se após uma caça na qual toma parte o senhor guerreiro Hidetora Ichimonji, já ancião, seus três filhos, Taro, Jiro e Saburo, e dois de seus antigos inimigos, igualmente senhores guerreiros, Ayabe e Fujimaki. Ichimonji anuncia a inesperada decisão de renunciar ao comando de seu clã, embora mantendo seu título e as honras respectivas, passando-o a seu filho mais velho, Taro. Os outros dois filhos deverão, dali por diante, ajudar e apoiar o irmão.

Taro e Jiro concordam, mas Saburo percebe o perigo dessa decisão e insta o pai a voltar atrás. Segundo Saburo, a divisão e a destruição seriam as consequências de tal desarrazoada medida. Ao mesmo tempo, Tango, fiel conselheiro, concorda com Saburo e suplica a Ichimonji que reconsidere. 

O chefe ancião, ao invés de ouvir o filho, expulsa-o de seus domínios bem como a seu antigo conselheiro, Tango. Ichimonji logo percebe que seu status não se manterá intacto, pois Taro - instigado pela esposa Kaede, filha de um antigo senhor da guerra morto por Ichimonji -  obriga o pai a assinar um documento no qual abdica de todos os seus direitos. 

Ichimonji parte do castelo de seu filho e busca abrigo no castelo de Jiro. Este, porém, temendo desagradar o irmão, não o recebe devidamente e o ancião parte ofendido e sem rumo com seu séquito de concubinas, seu bobo e seus trinta guerreiros de escolta. Logo em seguida fica sabendo que Taro o havia banido e que ninguém poderia recebê-lo sem indispôr-se com o novo chefe do clã.

O velho guerreiro então dirige-se ao terceiro castelo de seus antigos domínios e o toma para si. O infortúnio de Ichimonji, entretanto, torna-se maior, pois as forças conjugadas de Taro e de Jiro atacam o castelo, massacram suas concubinas e seus guerreiros e o expulsam de lá. Mais uma vez, o ancião deve vagar sem rumo, agora somente na companhia de seu bobo e de seu antigo conselheiro banido que retornara ao mestre.

A desgraça não cai somente sobre Ichimonji, Taro é traiçoeiramente morto por um dos homens de Jiro durante a confusão do sítio do castelo. Jiro torna-se então o novo senhor do clã Ichimonji. Desafortunadamente, o segundo filho do velho guerreiro é fraco e logo cai sob a nefasta influência da viúva de seu irmão, Kaede. Esta o faz repudiar e prometer a cabeça de Sue, a sua legítima esposa.

Sue, tal qual Kaede, é filha de um senhor da guerra morto pelo patriarca Ichimonji. Ao contrário de Kaede, contudo, Sue não odeia o velho, não ambiciona vingar-se do clã Ichimonji e busca consolo e transcendência nos pacíficos rituais budistas.

Enquanto isso, o ancião, desamparado e desabrigado, colapsa mentalmente por conta dos infortúnios que sobre ele se abateram e é conduzido por seu bobo e Tango até as ruínas de uma velho castelo em busca de abrigo. Lá encontram um jovem cego, Tsurumaru. Este reconhece o velho como o antigo senhor Ichimonji que o cegara quando garoto. Tsurumaru é irmão e Sue e aquele castelo pertenceu a seu pai, morto por Ichimonji.

Saburo, exilado nas terras de Fujimaki, retorna pacificamente para buscar seu pai, apoiado de longe pelas forças Fujimaki e de Ayabe. Jiro, instigado por Kaede, move guerra a seu irmão e é derrotado e morto pela coalizão das forças dos antigos inimigos de Ichimonji. Saburo encontra o pai, mas é logo morto por remanescentes das tropas de Jiro. Ichimonji não suporta mais esse revés e morre sobre o cadáver do filho que exilou.

Por toda a obra imperam a decadência e a cegueira. Em primeiro lugar, o ancião, símbolo da sabedoria, é o mais iludido de todos e sua fraqueza é sintoma da decadência dos tempos. O que esperar de um tempo em que mesmo os idosos são tão incapazes de enxergar a realidade? Ichimonji não é capaz de perceber a verdade diante de seus olhos. 

Ele não percebe que é Saburo, o impulsivo e inconveniente, quem realmente o ama e não os ambiciosos Taro e Jiro, exteriormente solícitos e obedientes. Tudo decide-se naquele momento fatídico em que Ichimonji não foi capaz de ver a realidade por baixo das aparências. A aparente insolência de Saburo era, na verdade, conhecimento da realidade e amor filial. A aparente obediência de seus irmão era, no fundo, bajulação e dissimulação.

Taro e Jiro, por sua vez, são tão cegos quanto o pai, pois não vêem as intenções reais de Kaede e, fracos, deixam-se iludir pelos ardis de uma mulher cuja única motivação é a destruição do clã Ichimonji. Ela consegue o que quer, mas ao preço de sua própria vida. Sua cegueira vingativa nasce dos atos passados de Ichimonji. 

O mesmo destino é reservado a Sue, morta por ordens de Kaede. Aparentemente, não há recompensa para a virtude de Sue além da vida sem ódio e da prática transfiguradora dos ritos sagrados. Kaede busca sua própria ruína por conta de sua revolta e de seu desejo de vingança. Sue é tragada pelo caos que a cerca, mesmo buscando o caminho da compaixão. Ambas são vítimas do desequilíbrio criado pelos Ichimonji.

A inescapabilidade das consequências dos erros passados parece explicar o destino de Ichimonji. O patriarca, ainda na tenra juventude, no afã de construir seu domínio, espalha dor e caos. Kaede, Sue e Tsurumaru têm suas vidas destruídas por ele. O caso de Tsurumaru é simbólico. Ichimanji poupou sua vida, mas cegou-o. 

Tsurumaru é cego corporalmente. Ichimonji é cego no espírito. O paralelo é interessante porque a tortura física imposta a Tsurumaru simboliza e exterioriza a própria cegueira de Ichimonji. Há hubris na gênese do caos que se abate sobre ele. De certo modo, aquilo tudo não é fortuito. O círculo está simplesmente completando-se. Há uma lógica trágica operando no desenrolar dos eventos.

Ichimonji é incapaz de discernir corretamente o que tem diante de si. Até seu bobo sabe o que acontece e ousa dizer-lhe sem temor. Mas a perplexidade diante da gravidade dos fatos não o ajuda a entender o que se passa, mas o lança nos braços da loucura. Não há tempo para a sua redenção plena, pois Saburo morre antes que possa desculpar-se propriamente. Isto é, há um curto momento de retorno à lucidez e depois sobrevêm nova desgraça e, por fim, a morte.

O bobo desespera-se e censura Buda e os deuses por aparentemente divertirem-se, do alto de suas moradas espirituais, com as desventuras humanas. Tango, o sábio conselheiro de Ichimonji, retruca que os deuses não se divertem com tal espetáculo patético, mas sim lamentam e entristecem-se com o fato de que os homens preferem a guerra à paz, o horror à felicidade.

Ran (caos) é um conto sombrio sobre triunfo do mal. Há esperança? Em uma das últimas cenas, Tsurumaru, o cego, carrega consigo um rolo e o deixa cair do alto das ruínas de seu antigo castelo. Este desenrola-se na queda e revela ser uma imagem dourada e resplandescente de Buda, a mesma diante da qual a irmã de Tsurumaru, Sue, buscou consolo, redenção e libertação do ódio por Ichimonji. 

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