segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Al Ghazzali, união mística e metafísica da luz



“(...) os gnósticos de Allah erguem-se das metáforas às realidades como alguém que sobe das terras baixas às montanhas. E ao fim de sua subida eles vêem, como testemunhas oculares, que não há nada na existência a não ser Allah, e que 'tudo pereceu, exceto Seu Semblante, Seu aspecto' (wajh). Não que tudo tenha perecido em algum momento particular, mas que é algo sempiternamente perecendo, uma vez que não pode ser concebido a não ser como perecendo. Pois qualquer coisa que não seja Allah, quando considerada em si mesma e por si mesma, é puro não-ser; e se considerada a partir do 'aspecto' (wajh) cuja existência flui da Realidade Primeira, é considerada como existindo, embora não em si mesma, mas somente a partir do 'aspecto' que acompanha Aquele que concede a existência."

ABU HAMID AL-GHAZZALI, Mishkat Al Anwar, p. 59


Abu Hamid Muhammed Ibn Muhammed Al-Tusi Al-Ghazzali nasceu em Tus, Khorassan, Pérsia, em 1059 DC. Em 1091 muda-se para Bagdah, torna-se um sábio respeitado e escreve o famoso Tahafut Al Falasifa. ("A Incoerência dos filósofos"), onde critica os falasifa, os pensadores de influência grega dentro do Islã.

Acometido por uma grave crise existencial, Al-Ghazzali abandona tudo em 1095 e durante dez anos, vestido com o manto dos sufis, peregrinou solitário pelas mais importantes e sagradas cidades do mundo muçulmano: Damasco, Jerusalém, Alexandria, Cairo, Meca e Medina. Durante esses anos estuda detidamente as mais diversas doutrinas em busca da verdade.

Ao final de sua busca espiritual, Al-Ghazzali encontrou no sufismo a conjunção entre a prática meditativa e a fé. O objetivo do sufismo é, segundo ele, purificar o coração de tudo o que não seja Deus pela repetição de Seu nome. É pela experiência, e não por discurso ou razão, que se encontra a Verdade.

Em sua obra de interpretação corânica intitulada Mishkat Al Anwar (Nicho das Luzes), Ghazzali trata dos diversos significados da luz de acordo com a Sura 24,35 e enuncia uma série de doutrinas místico-metafísicas sobre as relações entre Allah e o mundo.

''Allah é a luz dos céus e da terra. A semelhança de sua Luz é como a de um nicho em que há uma candeia; esta descansa em um recipiente; e este é como uma estrela brilhante. Tal candeia é alimentada pelo azeite de uma árvore bendita, a oliveira, que não é oriental ou ocidental, cujo azeite brilha, ainda que não lhe toque o fogo. É luz sobre luz. Allah conduz até Sua Luz quem Lhe apraz.''

A fim de interpretar a passagem corânica, Al-Ghazzali empreende um estudo sobre os diversos significados da luz. Em primeiro lugar, a luz é um fenômeno, isto é, algo que aparece. E se aparece, aparece para alguém, o que implica a existência de uma capacidade perceptiva para percebê-la. 

Além disso, a luz é visível por si mesma, ou seja, ela não necessita de luz para ser vista, mas, ao contrário, ela mesma é visível por sua própria virtude e ilumina aquilo que não possui luz por si mesmo.

Contudo, como dito acima, a luz só é perceptível a quem possa enxergá-la. E aquele que enxerga, o faz por ter a luz da visão, como testemunham os homens quando falam que a luz dos olhos de outrem é fraca ou forte. Desse modo, o percipiente é também, e mais propriamente, chamado de luz.

A luz perceptiva, por seu turno, possui diversas limitações e é de muito superada por uma luz mais excelsa e perfeita: a luz da inteligência. 

O olho não vê a si mesmo, mas a inteligência percebe a si mesma e aos outros. E ela percebe a si mesma como possuidora de conhecimentos, percebe que percebe ser possuidora de conhecimentos e percebe essa percepção, a percepção dessa percepção e assim ao infinito. 

O olho não vê o que está muito próximo ou muito distante, mas para a inteligência a distância é indiferente. Em um piscar de olhos, a inteligência sobe aos mais altos céus e mergulha, em seguida, nas mais abissais profundezas.

O olho não percebe o que está atrás do Véu. Mas a inteligência lá penetra sem peias. O exterior das coisas é o que percebe o olho, suas formas e moldes. A inteligência conhece a essência das coisas, suas causas, seus lugares na hierarquia dos entes, suas relações com as outras coisas, etc.

O alcance de sua visão é somente o de uma pequena fração da realidade. Vê o que pode ser visto, mas não cheira, sente, ouve, delicia-se com o prazer ou desagrada-se com a dor, etc. O objeto da inteligência, por outro lado, é a inteireza da existência, tudo o que há e pode haver.

O infinito não pode ser percebido pelo olho, pois este é finito. O conteúdo possível de uma inteligência é infinito. Por fim, o olho percebe por vezes o grande como pequeno e o pequeno como grande.

A inteligência é, portanto, a sede do conhecimento correto e verdadeiro. Quando apartada das ilusões da fantasia e da imaginação, a inteligência concebe sempre a verdade. A luz dos olhos, como se percebe, pertence ao mundo externo dos sentidos, enquanto a inteligência é interna, pertence ao Reino Celestial.

Apesar de sua nobreza, a inteligência não é a fonte última da luz. A relação hierárquica que subordina a luz sensível à luz da inteligência e esta à Luz primordial pode ser compreendida por meio de uma analogia: imagine-se alguém que veja a luz da Lua vindo através da janela de uma casa, caindo sobre um espelho fixado em uma parede que, por sua vez, reflete essa luz em outra parede e esta, por fim, reflete a luz sobre o assoalho da casa que, assim, ilumina-se.

Assim como o assoalho só ilumina-se por causa da luz refletida pela parede e esta pela luz da outra parede e assim por diante até chegar à fonte última da luz da Lua, o Sol, da mesma forma o mundo dos sentidos só existe pela "luz" de sua fonte luminosa última, Allah. Em outros termos, nenhum dos entes que ilumina-se na sequência de reflexão da luz apresentada na analogia possui em si mesmo a luminosidade, mas a recebe por meio de uma cadeia em que cada um só possui luz recebendo-a do anterior.

Como nem a Lua, nem as paredes, nem o espelho e nem o assoalho possuem de si mesmos a luz, é necessário que haja uma fonte última que a transmita aos outros, pois, caso contrário, nenhuma luz poderia ser transmitida do anterior ao posterior. A Luz verdadeira é a de quem a possui por si mesmo e em si mesmo.

A escuridão é o não-Ser, uma vez que a escuridão não é em si mesma visível. O Ser, por outro lado, é a luz na medida em que aquilo que é manifesto em si mesmo pode manifestar-se a outros. O Ser é dividido entre aquilo que tem o ser em si mesmo (e, portanto, não depende de nenhum outro para ser) e aquilo que recebe o seu ser de outro, ou seja, depende totalmente do outro para ser.

É a partir desse momento de seu estudo que Al-Ghazzali busca compreender as declarações ambíguas de certos místicos que, na profundidade do êxtase de união contemplativa com a Realidade Última, parecem identificar-se com o próprio Deus. O exemplo mais famoso é o do famoso místico persa Mansur Al Hallaj (858-922 D.C.), que foi condenado à morte por aparentemente afirmar ser ele mesmo "A Verdade" (Al Haqq).

Segundo Al-Ghazzali, o motivo dessas afirmações místicas tão estranhas tem raízes metafísicas profundas. Como tudo o que não é Allah não possui em si mesmo o ser e só existe por causa Dele, segue-se que, no fundo, em si mesmas e por si mesmas, todas as coisas são não-ser. Se possuem o ser, possuem-no graças a si mesmas, mas por conta do aporte causal divino.

Todos os entes tem dois aspectos: um aspecto que pertence a ele mesmo e outro que diz respeito a Allah. Vistos sob o ponto de vista do primeiro aspecto, os entes são não-ser. Vistos sob o segundo, eles possuem ser. Resta evidente que há somente um realmente existente: Allah.

Isso não significa que a Criação seja ilusória ou fruto de algum engano cognitivo. Significa apenas que todos os entes contingentes do mundo não possuem em si mesmos a fonte de sua existência e que, por conseguinte, só existem na medida em que recebem seu ser de Allah, o único sobre o qual é possível dizer que realmente existe.

Por causa dessa radical dependência ontológica das coisas com relação a Allah, os místicos, no seu mergulho na unidade divina, não encontram outra coisa a não ser o Único. A pluralidade das coisas contingentes desaparece ante O Existente justamente porque nenhum dos entes possui o ser por si mesmo, mas o recebe de Deus.

"Tais gnósticos, ao retornar de sua Ascensão ao céu da Realidade, confessam uníssonos que não viram nenhuma existência a não ser o Único Real. Alguns deles, contudo, chegaram a isso cientificamente e outros experimentalmente e interiormente. Para estes últimos, a pluralidade das coisas desapareceu inteiramente. Eles mergulharam na absoluta Unidade e suas inteligências perderam-se em Seu abismo. Nenhuma capacidade permaneceu a não ser a capacidade de clamar: Allah!" (p.60)

Nada permaneceu com eles a não ser Allah. Após o êxtase, retornando à inteligência, medida  e balança de todas as coisas, eles retomavam a consciência de que jamais houve Identidade, mas somente uma união mística. 

Pois, afirma Al-Ghazzali, é possível que o homem que nunca tenha visto um espelho, no momento em que é colocado diante de um, pense que a forma que ele vê no espelho seja a forma do próprio espelho, 'idêntica' a ele. É possível também que um outro possa ver vinho em uma taça e pense que o vinho é somente uma mancha na taça. 

Assevera o místico persa:

"Quando tal estado prevalece, é chamado com relação àquele que o experimenta, Extinção, ou melhor, Extinção da Extinção, pois a alma torna-se extinta a ela mesma, extinção de sua própria extinção. Em relação ao homem imerso nesse estado, tal estado é chamado, metaforicamente, Identidade; na linguagem da realidade, Unificação. E abaixo dessas verdades também existem mistérios sobre os quais não temos a liberdade de discutir.”

Em suma, não há Luz a não ser Allah. Toda luz finita não existe a não ser por referência à Luz primordial. Ele é "Aquele que É" e todo o resto só é por causa Dele. Aqueles que compreendem essa verdade sabem que em qualquer coisa vista está a Luz verdadeira e única de Allah e só a partir dessa Luz pode qualquer coisa ser luminosa, ou seja, existente.

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