quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Thomas Kuhn, ciência normal, paradigmas e anomalias



"O que é exato no que concerne à posição de Sir Karl (...) é a idéia da testabilidade em princípio. (...) O que é vago, no entanto, com respeito à minha posição são os critérios reais (se é isto que se requer) que devem ser aplicados quando se decide que determinada incapacidade de resolução de enigmas (puzzles) há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, tornando-se assim uma ocasião de grande preocupação. Essa decisão, contudo, é idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão vago quanto eu."

THOMAS KUHN, Reflexões sobre meus críticos, In. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, p.306, trad. Octavio Mendes Cajado, Ed. Cultrix


No pensamento do filósofo e historiador da ciência americano Thomas Kuhn, “ciência normal“ significa pesquisa firmemente baseada sobre uma ou mais realizações científicas que uma comunidade particular de cientistas reconhece por um tempo fornecer o fundamento para a prática de pesquisa ulterior. Tais realizações são recontadas por manuais que expõem o corpo da teoria aceita, ilustram todas ou a maioria de suas aplicações bem-sucedidas e compara tais aplicações com exemplos de observações e experimentos.

Paradigmas ganham seu status porque são mais bem-sucedidos que as alternativas em resolver determinados problemas que um grupo de cientistas reconhece como importantes. Mas tal sucesso é também uma promessa, pois o problema resolvido indica como problemas reconhecidos como pertencentes a um campo determinado deverão ser resolvidos.

A ciência normal é justamente o processo de tentativa de resolução gradativa desses problemas a partir dos meios sugeridos pelos problemas já resolvidos. Sua função é aplicar diligentemente o paradigma aos casos ainda não explicados. Os problemas sobre os quais a ciência normal se debruça não são necessariamente interessantes em si mesmos, mas são encarados como puzzles que desafiam a engenhosidade do cientista em encontrar formas novas de aplicação do paradigma.

Os puzzles são considerados pela comunidade científica como os únicos problemas científicos reais e toda questão que não possa ser formulada nos parâmetros paradigmáticos é rejeitada. Por outro lado, como o paradigma guia tacitamente a pesquisa, ele não é posto em questão ou submetido a teste e qualquer fracasso na sua aplicação a um puzzle específico é geralmente considerada como uma falha do cientista individual.

A ciência normal é parte essencial de um “paradigma“, ou seja, um conjunto de exemplos aceitos de prática científica real – os quais incluem leis, teorias, aplicações e instrumentações – que fornecem modelos para a prática científica futura. Não há pesquisa científica sem um conjunto implícito de parâmetros partilhado e aceito por toda uma comunidade de cientistas. O paradigma guia a pesquisa e fornece-lhe um sentido.

Por essa razão, a pesquisa anterior ao surgimento de um paradigma é caracterizada por uma atividade sem um conjunto de parâmetros definidos –  sejam eles teoréticos, ontológicos, metodológicos, epistemológicos, etc – e resulta em uma profusão de fatos desconexos, fortuitos e sem maiores consequências. 

O que acontece, contudo, quando um puzzle (ou um conjunto deles) resiste às soluções sugeridas pelo paradigma? Refuta-se assim o paradigma? É preciso lembrar que a atividade da ciência normal é justamente trazer os casos ainda não resolvidos à normalidade do paradigma compartilhado.

A resistência dessas instâncias ainda não solucionadas é esperada pelos cientistas e não causa grande inquietação. Puzzles recalcitrantes são por vezes deixados de lado, adiados e até mesmo esquecidos. Puzzles persistentes não conduzem necessariamente a uma crise do paradigma.

O que transforma um puzzle recalcitrante em uma anomalia que coloca em risco o paradigma? Segundo Kuhn, não há uma resposta certa e definitiva para essa questão. A anomalia pode se tornar importante por colocar em questão as bases mais gerais do paradigma, por ser um obstáculo a alguma necessidade prática premente, por resistir ao paradigma por um tempo longo demais, etc.

Todavia, uma vez instalada a crise, três são as possibilidades:

1) O paradigma consegue resolver a anomalia;
2) A anomalia persiste e sua resolução é deixada às gerações seguintes;
3) A anomalia persiste e dá ensejo ao nascimento de um novo paradigma.

Durante a crise, cessa o período cumulativo e progressivo da ciência normal e inicia-se a “ciência extraordinária“, isto é, um período no qual todos os esforços estão localizados na resolução da anomalia e proliferam tentativas de resolução menos fiéis ao paradigma.

A resistência da anomalia acirra o descontentamento com o paradigma vigente e fornece o ambiente para a emergência de uma nova organização do campo que resolva aquele problema premente ainda que ao preço da implosão do modelo aceito até o momento. É somente quando uma alternativa satisfatória aparece que o antigo paradigma pode ser deixado para trás.

A emergência de um novo paradigma significa a reconstrução do campo sobre novas bases, uma reconstrução que muda algumas das suas mais elementares generalizações teoréticas tanto quanto seus métodos e suas aplicações. Quando a transição estiver completa, os cientistas terão mudado sua visão do campo, seus métodos e seus objetivos.

Agora, como o novo paradigma surge na mente de um cientista? Kuhn responde que ele nasce “no meio da noite“ e que o modo pelo qual um cientista chega a uma nova proposta de paradigma é inescrutável.

Como os critérios do paradigma moribundo são postos em questão por aqueles que querem substituí-lo por um novo, a solução para o impasse não pode ser a natureza ou a lógica, mas a persuasão argumentativa. Segundo Kuhn, entre o antigo paradigma e o novo há diferenças irreconciliáveis. 

Diferentes paradigmas afirmam coisas diferentes acerca dos entes do mundo e de seu comportamento. Além disso, cada paradigma tem seu conjunto próprio de métodos, problemas e padrões de solução aceitos. Antigos objetos e soluções são abandonados. Um mundo novo nasce. Não há somente incompatibilidade entre os paradigmas que se sucedem, mas incomensurabilidade.



A relação entre paradigmas incomensuráveis pode ser compreendida a partir da experiência visual de figuras como a do pato/coelho. Embora possamos perceber que a imagem pode ser a de um pato tanto quanto a de um coelho, não os percebemos a não ser sucessivamente, um após o outro, jamais pato e coelho ao mesmo tempo.

Analogamente, não é possível entender a realidade sob dois paradigmas simultaneamente. Na disputa entre paradigmas rivais, os cientistas devem escolher somente um, não podendo sustentar uma pesquisa científica sob dois paradigmas diferentes e inconciliáveis.

Entretanto, a transferência de um paradigma a outro é uma conversão e não uma questão de provas e lógica. Aquele que resiste ao novo paradigma não está sendo anticientífico. Ele confia que o antigo dará conta dos problemas que causaram a crise.

A causa da conversão também não tem uma resposta clara. O cientista pode se converter por razões consideradas extracientíficas, como crenças metafísicas, religião, idiossincrasias autobiográficas, nacionalismo, etc. Contudo, a resolução dos problemas que levaram o paradigma anterior à morte, a predição de novos fenômenos e a simplicidade também podem ser fatores conducentes à conversão.


domingo, 7 de setembro de 2014

Dostoievski, subterrâneo, consciência e ação



"(...) Pois o fruto direto e legítimo da consciência é a inércia, isto é, deixar-se ficar de braços cruzados, conscientemente. Já falei nisso. Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos simplesmente porque obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente que outras pessoas, de que encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, é isto que importa. Para começar a agir é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida. Mas como chegaria eu a essa tranquilidade de espírito? Onde as causas primárias sobre as quais construir, onde os fundamentos? Entrego-me à reflexão, e, consequentemente, uma causa fundamental vai puxando outra, ainda mais fundamental, e assim até ao infinito. Tal é o verdadeiro cerne de toda consciência, de todo pensamento."

FEDOR DOSTOIEVSKI, Notas do Subterrâneo, p.26, Ed. Bertrand Brasil (Trad. Moacir Werneck de Castro)

O protagonista amargurado da novela Notas do Subterrâneo (1864) de Fedor Dostoievski opõe o "homem de ação" ao "homem da consciência". Enquanto o primeiro parece não padecer de dúvidas quanto a seus próprios princípios e conhecimentos, o segundo sofre do mal oposto, é quase incapaz de ação exatamente por duvidar demais.

A causa do comportamento do primeiro é que, na maior parte das vezes, os homens de ação são facilmente convencidos pelas causas mais próximas e acessíveis - às vezes sequer são elas causas reais! - e, por isso, agem mui tranquilamente como se estivessem sobre solo firme. Dito de outro modo, o homem de ação tem visão curta e convence-se mais facilmente daquilo que lhe é mais próximo.

Aristóteles afirmava na Ética que jovem não deve se dedicar à ciência política justamente porque é pouco experiente, não viveu quase nada e quase nada conheceu do mundo e dos homens. Por isso sua opinião é dispensável e superficial. Ele facilmente consegue compreender ciências formais, pois estas são abstratas em um nível superior às coisas da vida cotidiana. Mas quando se trata daquilo que exige experiência (empeiria), eles são ineptos.

O que acontece usualmente com os jovens, acontece com alguns homens adultos também. Por que é tão fácil doutrinar, arregimentar, cooptar os jovens? Porque eles nada sabem da vida. Estão prontos para a ação a todo o momento desde que alguém lhes apresente uma razão ou uma causa (nos dois sentidos) imediata e facilmente compreensível. Muitos homens feitos também são assim. 

A consciência e a experiência, contudo, instauram uma cisão, uma crise no homem. Ele duvida das bandeiras justamente porque sabe recuar nas cadeias de causas e contemplar a extrema complexidade do real. É porque se conhece tão bem a realidade - não por compreendê-la melhor, mas por perceber sua complexidade - que o homem de consciência demora a agir ou não age.

E a cisão da consciência divide o homem dentro de si mesmo e o opõe a ele mesmo. Será que estou agindo com com essas motivações nobres ou com outras mais sinistras? O exame da consciência é a desconfiança acerca de si mesmo. O inimigo está à espreita esperando para atacar e ele sou eu mesmo. Este é o teatro interno no qual crio o enredo da peça, assisto-a e julgo moralmente seu único personagem.

Essa dinâmica pode - como tudo na vida - degringolar e gerar um ser como o homem do subterrâneo  de Dostoievski. Ele não age, mas remói dentro de si suas incapacidades e misérias e tira delas até algum gosto. He who desires but acts not breeds pestilence, já dizia Blake.

Ele é desprezível, mas é capaz de perceber certas verdades. Ele percebe a idiotia e a estupidez de seus colegas e contemporâneos. E percebe também que, por mais ligeiro e superficial que lhe pareça o homem de ação, sem ele o mundo não andaria. 

Mesmo no subsolo, abaixo da linha na qual se dá a convivência humana, ele percebe coisas que os outros não percebem. Por exemplo, a superficialidade do positivismo e de todas as utopias de progresso e harmonia por meios materiais. Os homens de ação logo põem-se à serviço de utopias porque crêem que conhecem as causas primeiras das coisas e que tudo está sob seu controle.

Basta fazer isso ou aquilo, seguir tal e qual método, seguir esta teoria a não a outra e então tudo no final dará certo e os homens viverão felizes em um mundo controlado, medido, pesado e calculado para a sua própria felicidade. O homem do subterrâneo vê bem que não é assim. Vê que há algo que para o homem é mais importante que a sua felicidade material: o fato de ser homem. E para provar sua humanidade ele destruiria o paraíso matematicamente planejado.

E isso não é um pessimismo, pois o otimismo, nesse contexto, seria assumir que o homem pode ser planejado e controlado como são as coisas que o próprio homem produz. Isso sim seria um inferno. O que nos torna homens é justamente o fato de que somos imprevisíveis, que temos em nós um "resto" que foge aos cálculos. O homem de ação estaria mais à vontade no mundo do cálculo e do planejamento, pois ali impera a tranquilidade da certeza e da posse das causas primeiras.

O homem de consciência - e sua forma degenerada, o homem do subterrâneo - sabe que não é assim e que não pode viver nessa tranquilidade ilusória. Seu habitat é o conflito interno, a luta interior, que sustenta a dúvida, que mede a complexidade da realidade e que reconhece a extrema dificuldade de sua compreensão. Ele não se deixa levar pelo encanto das causas próximas, mas aceita a cadeia quase infinita das causas remotas.

O homem da consciência seria naturalmente desconfiado desses grandes projetos, das virtudes altissonantes e dos ideias exaltados que movem os homens de ação. Ele sabe que nem mesmo pode confiar em si totalmente. Talvez ele esteja mais à vontade com o pecador contrito do que com o humanista otimista.

Todavia, o homem do subterrâneo desceu demais, penetrou demais no interior de si mesmo e da realidade e, não encontrando ali nenhuma luz, fez da escuridão, da humilhação e da inépcia seu pão cotidiano. O homem de ação age porque inconsciente, porque iludido pelas causas (?) imediatas. São dois extremos. Há que se encontrar o termo médio.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Popper, nuvens, relógios, determinismo e indeterminismo



Karl Popper, em About Clouds and Clocks, uma conferência do ano de 1965 em homenagem a Arthur Holly Compton, pretendeu apresentar uma tentativa de solução para o problema do determinismo físico. Para tanto, Popper adota a curiosa metáfora das nuvens e dos relógios. 

As primeiras pretendem representar sistemas físicos cuja organização não obedece a leis deterministas rígidas, ou seja, cujo comportamento não pode ser previsto com exatidão a partir de seu estado atual. Os últimos (os relógios) são usados para exemplificar sistemas físicos cuja constância pode ser prevista com exatidão a partir de seu estado atual.

Segundo Popper, depois do sucesso da mecânica newtoniana que descrevia e explicava os fenômenos físicos terrestres como o movimento e a queda dos corpos bem como o movimento dos corpos celestes, os homens de ciência (como uma conseqüência não realmente pretendida por Newton), passaram a adotar a visão de que todos os corpos físicos eram regidos por leis mecânicas cujo comportamento poderia ser previsto com exatidão. Entre estes estariam também os seres humanos. 

A doutrina acima descrita passou a ser chamada de determinismo físico. Segundo os termos em que foi formulada, ela parecia um ataque frontal às pretensões humanas segundo as quais o comportamento dos homens não estaria sob o tacão de leis físicas rígidas. Em outras palavras, o determinismo físico não daria espaço para a liberdade humana. 

Ora, sem liberdade, o que o homem seria além de uma máquina, um autômato? Descartes já havia vislumbrado a possibilidade de os animais serem nada mais que máquinas, mas havia garantido a liberdade humana graças à idéia de uma substância pensante (res cogitans) que afinal distinguiria o homem do resto dos seres vivos. 

Mas o determinismo posterior não deixa espaço para essas “substâncias” algo misteriosas e afirma que, mesmo o comportamento humano poderia ser, em princípio, explicado em termos de leis físicas rígidas e imutáveis. Qualquer dificuldade em realizar esse trabalho se deve somente à nossa ignorância dessas leis e da maior quantidade de variáveis envolvida no comportamento humano. 

Por outro lado, dificuldades desagradáveis nasciam da consideração de tal teoria. Um homem sem liberdade pode ser culpabilizado por seus atos? Aparentemente a resposta é não. Se ele nada faz além de ser movido em seus atos por leis físicas irresistíveis, como pode ser responsabilizado pelo que faz ? Se ele não pode ser responsabilizado, qual a base para condená-lo moralmente ? E pior, como condená-lo judicialmente já que o crime deve sempre ser reconhecido como um ato livre e consciente daquele que o pratica? O determinismo mostra assim que suas conseqüências vão muito além dos laboratórios de física. 

Consciente das dificuldades acima elencadas, Popper toma partido nessa discussão ao lado dos indeterministas. O indeterminismo a que adere é o que ele chama de indeterminismo físico. Segundo ele, o indeterminismo físico 


"É simplesmente a doutrina de que nem todos os eventos no mundo são predeterminados com precisão absoluta, em todos os seus infinitesimais detalhes. Fora isto, ela é compatível praticamente com qualquer grau de regularidade que se queira (...) Enquanto o determinismo físico exige uma predeterminação física completa e infinitamente precisa e a ausência de qualquer exceção, o indeterminismo físico assevera somente que o determinismo é falso e que há pelo menos algumas exceções, aqui e ali, à predeterminação precisa." (POPPER, 1999, tradução própria ) 


Popper admite a possibilidade de se prever qualquer evento, embora não admita que os eventos possam ser de fato previstos de forma precisa em todos os seus detalhes. Pode-se sempre prever acuradamente e pode-se sempre prever cada vez mais acuradamente, mas nunca se pode chegar à uma previsão perfeita. 

Nenhuma teoria pode prever numa precisão infinita. As teorias, ainda que tratem de corpos físicos, sempre têm suas predições verificadas apenas aproximadamente, ainda que tal aproximação admita graus mais ou menos precisos de tolerância de acordo com seu campo de pesquisa. 

Parece assim que o determinismo não se sustenta em sua mais importante afirmação, a de que se possa prever com precisão o comportamento futuro de um sistema físico a partir de seu estado atual. A questão que está em jogo aqui é: de fato, o indeterminista está em contradição com a física newtoniana? A resposta popperiana é um seguro não. E com a física relativista? Também não. E com a mecânica quântica? Menos ainda. 

Se as principais teorias científicas de nossa época não estão em contradição com a posição indeterminista, como formulada por Popper, então o determinismo se revela como uma má interpretação da meta científica de busca por regularidades e das teorias científicas que são a base de nossa visão do mundo. Entretanto, o indeterminismo é satisfatório? 

Se não há possibilidade de se predizer de forma infinitamente precisa o comportamento de sistemas físicos, então há algum espaço aí para o acaso. A primeira pergunta que surge é então se há realmente um componente de acaso no indeterminismo e, em caso de resposta afirmativa, a segunda pergunta seria se ele (o acaso ) é de alguma forma mais explicativo que o determinismo férreo. 

De fato, o acaso nada explica e substituir o determinismo férreo pelo acaso de nada ajudaria à solução do problema. Dizer que algo acontece por puro acaso não é, de forma alguma, explicá-lo. Contudo, os termos em que o problema é colocado podem estar errados. Será mesmo que, na ausência de um determinismo físico invariável o que nos resta é o puro e caótico acaso? 

Para Popper o problema reside exatamente aí. Uma certa tradição científico-filosófica nos acostumou à idéia de que ausência de determinismo é igual à admissão do acaso puro. Talvez seja o momento de considerar uma alternativa, um meio termo entre nuvens e relógios. 

Popper chamava a tese determinista de pesadelo. Se o determinismo físico estiver certo, então não passamos todos de autômatos ou zumbis. Não é das mais agradáveis perspectivas. Todavia, entre a população de zumbis e autômatos estariam, sem dúvida, os proponentes dessa teoria. Isso traz algumas conseqüências e problemas bem interessantes ao determinista convicto. 

Afinal de contas, se o determinismo estiver certo e todo o comportamento de sistemas físicos são fechados e passíveis de previsão precisa, incluindo aí os seres humanos; se todo estado de coisas atual é ferreamente determinado pelo estado anterior e este pelos anteriores; se todos os atos humanos são conseqüências das mesmas leis que regem os outros corpos físicos, então o próprio determinismo, enquanto tese (ou teoria, ou hipótese) é também somente um produto dessas mesmas leis férreas. 

E quando se pensa que podemos considerá-lo como um teoria verdadeira, enganamo-nos. Isto porque nosso assentimento (ou rejeição) não se dará em termos de uma discussão racional sobre a verdade ou a falsidade dessa teoria (só será assim aparentemente, ilusoriamente), mas será simplesmente uma conseqüência necessária de estados físicos anteriores e poderia ser previsto sem falhas da mesma forma que prevejo um eclipse. 

No fundo, o determinista convicto seria um autômato que não se convenceu racionalmente do determinismo por meio de argumentos irresistíveis como pensa, mas somente foi guiado até sua conclusão pela força irresistível das leis físicas. Em suma, se o determinismo for verdadeiro, questões sobre o verdadeiro e o falso (e avaliações racionais de teorias) não passarão de ilusões. Se o determinismo estiver certo, o determinismo nem mesmo será uma teoria. Será apenas um comportamento previsível entre tantos outros. 

É nesse contexto que a discussão se tornará mais interessante e Popper poderá anunciar haver chegado ao cerne da questão. E tal cerne se refere ao que ele chamou de problema de Compton (filósofo a que homenageava com a conferência), que pode ser formulado como o problema de como significados abstratos podem influenciar o comportamento humano. Nas palavras de Popper, 

“o que queremos é compreender por que coisas não-físicas tais como objetivos, deliberações, planos, decisões, teorias, intenções, valores podem desempenhar um papel na produção de mudanças no mundo físico."

Por outro lado, esse importante problema traz à baila um outro muito mais discutido e conhecido pelos filósofos na tradição filosófica ocidental. Trata-se do problema corpo-mente, ou o problema de Descartes como o chamou Popper. Este o formulou como o problema de entender como estados mentais qualitativos podem comandar estados físico-corporais. Ambos os problemas, de Compton e de Descartes tratam essencialmente da liberdade e solucioná-los é dar uma respostas satisfatória à questão da liberdade humana. 

As respostas, para serem consideradas aceitáveis, devem atender a um postulado formulado por Compton, segundo o qual quaisquer respostas aos problemas acima enunciados devem explicar que a liberdade não é mero acaso, mas resultado da ação recíproca entre algo quase ao acaso e algo que funciona como um controle restritivo. 

Popper aceita a restrição feita por Compton e tenta formular uma solução para o primeiro problema (sobre como significados abstratos influenciam no comportamento humano) através da idéia de controles plásticos, ao invés de controladores rígidos. Para tanto, Popper enuncia sua teoria sobre a linguagem humana. 

Inspirado na teoria das funções da linguagem de Karl Bühler, Popper afirma que a linguagem tem funções diversas e que algumas delas os seres humanos compartilham com os animais. Entretanto, existem duas funções específicas da linguagem humana, uma descritiva e outra argumentativa. 

Animais e homens compartilham as funções inferiores da linguagem, a função (auto) expressiva e a função comunicativa. Na primeira os organismos expressam sintomaticamente seus estados fisiológicos tal como o bocejo de um leão expressa seu estado de sonolência. 

Na segunda, a comunicação ocorre sempre que o movimento expressivo de um indivíduo atua sobre outro na qualidade de sinal libertador da resposta deste último. Por exemplo, o bocejo em companhia contagia os outros e os induz a bocejar ou o rugido do leão induz uma resposta de amedrontamento em seu oponente. 

A linguagem humana, apesar de compartilhar essas funções inferiores com a linguagem dos outros organismos, tem ainda, segundo Bühler e Popper, a função superior descritiva. O homem descreve diversos fenômenos, desde de estados de coisas até argumentos e teorias de outros homens. 

É através dessa função que emerge a possibilidade de descrições que correspondam ou não aos fatos, ou seja, que sejam ou não verdadeiras. A idéia reguladora que atua aqui é a idéia de verdade. Sendo possível ao homem contar histórias falsas, enganar seus semelhantes, nasceu cedo a necessidade de critérios pelos quais determinar a verdade, a correspondência com os fatos, das descrições alheias. 

Desta necessidade nasceu uma outra função superior (um acréscimo popperiano à teoria de Bühler), a saber, a função argumentativa da linguagem humana. Na argumentação se avaliam as descrições, as teorias e hipóteses em seu conteúdo objetivo. A postura crítica se torna possível somente na função argumentativa onde a idéia de validade dos argumentos surge como idéia reguladora. 

Certamente, as funções inferiores estão presentes mesmo quando descrevem-se fatos e avaliam-se argumentos. Numa palestra não se pode evitar que o palestrante expresse seus estados fisiológicos ou que comunique sentimentos aos ouvintes que liberarão certos tipos de respostas. Contudo, a descrição feita pelo palestrante vai ser avaliada segundo critérios de verdade e validade. O que importa é a verdade da teoria, se ela é uma descrição correta dos fatos que pretende descrever, e se seus argumentos são válidos e convincentes. 

Para Popper, as funções superiores da linguagem exercem um controle plástico sobre as funções inferiores. Por exemplo, numa conferência científica, os presentes podem expressar sua animação ou desanimação, sua alegria ou sua tristeza com o que está sendo exposto, no entanto o que importa na conferência são os argumentos tomados em si mesmos. Se eles são válidos e se a tese exposta é verdadeira. As funções superiores da linguagem exercem assim um controle sobre as funções inferiores durante a conferência fazendo com que esta gire em torno somente de questões teóricas. 


"(...) os argumentos críticos são um meio de controle: são um meio de eliminar erros, um meio de seleção. Resolvemos nossos problemas propondo experimentalmente várias teorias e hipóteses concorrentes, como balões de ensaio, por assim dizer; e submetendo-as a discussões críticas e a testes empíricos, para o fim de eliminação de erros. 
Assim, a evolução das funções superiores da linguagem, que venho tentando descrever, pode ser caracterizada como a evolução de novos meios de solucionar problemas, por novas espécies de experiências e por novos métodos de eliminação de erros; isto é, novos métodos para controlar as experiências."


A solução para o problema de Compton reside exatamente no fato de que as funções superiores da linguagem evoluíram para dar conta da necessidade de um melhor controle das funções inferiores e de uma melhor adaptação ambiental. Podemos formular de modo objetivo através da função descritiva da linguagem novas teorias sobre o mundo e através da função argumentativa podemos criticar essas mesmas teorias, abandonando-as tão logo se mostrem inadequadas, aumentando assim nosso poder de adaptação. 

As funções superiores evoluíram até permitir que pudéssemos dar atenção ao conteúdo objetivo de nossas expectativas e teorias, num processo de abstração que nos permite avaliar o conteúdo invariável de uma teoria, do qual depende sua verdade. 

Entretanto, o controle exercido por nossas funções lingüísticas superiores não é um controle rígido (como o exigiu o postulado de Compton). Podemos discutir nossas teorias e, muitas vezes, rejeitá-las. Elas se configuram como controladores plásticos, pois se as teorias nos controlam, nós também as controlamos (discutindo-as criticamente) num efeito de retrocarga. Popper declara que esta é sua solução para o problema de Compton. 

Para solucionar o problema de Descartes, Popper desenvolve uma teoria de feição evolucionista que leva em conta os aspectos principais do neodarwinismo. Segundo essa teoria popperiana, todos os seres vivos estão envolvidos na solução de problemas. A solução desses problemas se dá sempre por meio do processo de tentativa e eliminação de erros. 

A eliminação dos erros pode ocorrer pela eliminação do organismo ou pela eliminação de órgãos, comportamentos ou mesmo hipóteses malsucedidas. O organismo é, ele mesmo, uma “hipótese” que resistiu ao teste até o momento presente, pois sua anatomia foi formada a partir do processo de tentativa e eliminação dos erros. 

Podemos assim construir um esquema evolucionário como se segue

P1 -> TT -> EE -> P2


Em que P1 é o prblema inicial, TT é a teoria (ou teorias) criada para solucionar P1, EE é o processo de discussão crítica e eliminação dos erros e, por fim, P2 é o novo problema (ou os novos problemas) surgidos a partir da solução de P1. 

Segundo Popper, tal esquema pode ser identificado ao processo descrito pelo neodarwinismo. Em ambos há um processo tentativa múltiplas para a solução de um problema e uma seleção posterior das respostas adequadas. A diferença reside no fato de que, no neodarwinismo, o erro é eliminado junto com o organismo que o sustentou e o problema central é o da sobrevivência. No caso popperiano, há uma infinidade de problemas das mais variadas espécies. 

O problema P2 emerge como uma conseqüência não prevista da solução de P1, o que permite Popper chamar seu esquema de evolução emergente. O novo problema surgido da solução do anterior demanda também uma solução e busca teórica e crítica de teorias e hipóteses que dele dêem conta, aumentando o conhecimento sobre o mundo. 

O esquema popperiano permite o desenvolvimento de controles plásticos de erros onde a eliminação dos erros não implica na eliminação do organismo. A crítica tornada possível pelas funções superiores da linguagem permite que uma teoria ou hipótese possa ser discutida criticamente, de modo objetivo, como algo fora dos seus proponentes. Se eliminada, ela não acarreta a morte do proponente. Em outras palavras, as teorias morrem em nosso lugar. 

Para Popper,


"Cada organismo pode ser encarado como um sistema hierárquico de controles plásticos – como um sistema de nuvens controlado por nuvens. Os subsistemas controlados fazem movimentos de experiência e erro, que são em parte suprimidos e em parte restringidos pelo sistema controlador. Já encontramos um exemplo disso na relação entre as funções inferiores e superiores da linguagem. As inferiores continuam a existir e a desempenhar o seu papel; mas são constrangidas e controladas pelas superiores."



Outro exemplo pode ser encontrado quando estamos estamos de pé e quietos. O tempo inteiro meus músculos estão corrigindo pequenos desvios e erros para manter meu equilíbrio e me manter em pé. Todo o tempo, meu corpo está solucionando problemas e eliminado os erros. Todo o tempo os corpos dos seres vivos estão concentrados na tarefa de solução de problemas. O que difere os demais seres vivos do homem, o que difere a ameba de Einstein, é o caráter racionalmente orientado dessa atividade no homem no caso de problemas linguisticamente formulados. 

A teoria popperiana levaria também à solução do problema de Descartes. Para Popper a consciência cresce de forma gradual e teve sua origem, provavelmente, num vago sentimento de irritação do organismo diante de um problema, tal com o contato com uma substância irritante. A importância evolucionária da consciência cresceu quando através dela se pôde antecipar meios de reação possíveis frente aos problemas. 

A consciência seria então também um controle plástico que eliminava erros através de comportamentos do organismo. Mais tarde a própria consciência foi controlada plasticamente pelos produtos das funções superiores da linguagem e seus produtos, como livros, teorias e hipóteses. A relação que se estabelece entre os controladores plásticos é então a de um efeito de retrocarga. 

Em vários níveis essa relação se repete nos organismos vivos. Os diversos comportamentos podem ser encarados como os testes que a consciência (em seus diversos níveis) lança ao ambiente como hipóteses. O próprio organismo individual também pode ser encarado como uma hipótese de seu filo e seu sucesso ou insucesso influencia decisivamente no destino do filo. 

No homem essa relação se dá pricipalmente, graças às funções superiores da linguagem, em termos de teorias e hipóteses linguisticamente formuladas. Em todos os níveis acima elencados há um dar-e-receber, um efeito de retrocarga, que caracteriza, segundo Popper, a função dos controladores plásticos.