quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Popper e a teoria evolucionária do conhecimento



Livro editado pouco antes do falecimento de seu autor em 1994, All Life is Problem Solving é uma coletânea de escritos e conferências de Sir Karl R. Popper que abrange textos da década de setenta até seus últimos anos de atividade intelectual no início dos anos 90.

O livro é dividido em duas partes, a primeira tratando de epistemologia e a segunda de assuntos políticos diversos. Na parte epistemológica, Popper reafirma as suas teses principais sobre a Ciência, suas críticas à indução e aprofunda sua reflexão acerca da biologia e do darwinismo dentro da perspectiva da teoria do conhecimento. 

Na parte política, Popper se detém na avaliação dos principais acontecimentos do final da década de oitenta e início da década de noventa: a queda do muro de Berlim, a reunificação alemã, o fim da URSS e a guerra do Golfo.

Em sua parte epistemológica, o livro apresenta importantes reflexões sobre o papel do darwinismo moderno na sua epistemologia não-indutivista. Os escritos e conferências reunidos nessa primeira parte dão uma visão mais profunda do pensamento popperiano em sua fase mais avançada, marcada pela aproximação com a biologia.

Na presente postagem destacarei alguns temas importantes contidos nessas conferências e artigos sobre epistemologia.


No texto The logic and evolution of scientific theory (1972), Popper reafirma seu modelo do conhecimento pré-científico e científico:

1. o problema ;
2. tentativas de solução ;
3. eliminação dos erros.

Segundo o autor, todos os organismos, da ameba a Einstein, procedem de acordo com tal modelo. Este pode ser interpretado como o esquema da teoria da evolução de Charles Darwin. Para os seres vivos o problema básico como o qual se deparam é o da sobrevivência. Diante de tal problema, acontecem variações na estrutura interna dos organismos por meio de mutações aleatórias nos genes que podem ser encaradas como tentativas de solução para o problema do ambiente. A maiorias delas falha, e os portadores dessas variações mal-sucedidas são eliminados pela seleção natural.

Popper assevera na página 5:

"Minha primeira tese aqui é que a ciência é um fenômeno biológico. A ciência nasceu do conhecimento pré-científico; é uma continuação impressionante do conhecimento do senso comum, o qual pode, por sua vez, ser encarado como uma continuação do conhecimento animal."



O que haveria, então, de distintivo sobre a ciência humana? Qual a diferença entre a ameba e Einstein?

Popper responde: o método crítico. Enquanto a ameba sofre modificações fisiológicas aleatórias advindas de mutação genética, Einstein cria racional e conscientemente teorias e hipóteses linguisticamente formuladas e criticáveis intersubjetivamente. Se as tentativas de solução da ameba são mal-sucedidas, ela morre, enquanto que se as teorias de um cientista falharem, elas morrerão no seu lugar e serão substituídas por outras mais aptas.

Assim, que há de distintivo na ciência é a tentativa racional e linguisticamente formulada de criticar as teorias e hipóteses, onde o que está em jogo é o conteúdo assertivo das mesmas.


Em Notes of a realist on the body-mind problem (1972), Popper reafirma sua tese dos três mundos: o mundo 1 é aquele dos objetos físicos exteriores como pedras, árvores e animais. O mundo 2 é aquele dos eventos mentais e o mundo 3 seria aquele dos produtos da mente humana como teorias e hipóteses, sejam elas falsas ou verdadeiras. Popper abre a possibilidade de um mundo 4 para abrigar obras de arte.

A grande dificuldade é aceitar a realidade e a independência do mundo 3. Popper admite essa dificuldade e, para tornar clara sua concepção, define “real” como qualquer coisa que seja capaz de produzir um efeito, direta ou indiretamente, no mundo 1. Ora, claramente as teorias científicas, pertencentes ao mundo 3, têm efeito direto e indireto no mundo 1 e assim podem ser chamadas de reais.

Por outro lado, o mundo 3 é independente dos outros dois mundos. É certo que teorias estão nas mentes dos cientistas (mundo 2), mas ainda assim exibem autonomia com relação a essas mesmas mentes. Por exemplo, ninguém jamais pode determinar todas as possíveis conseqüências lógicas de um teorema da matemática. Elas certamente decorrem necessariamente dos seus axiomas, mas pode levar anos ou mesmo séculos, para que sejam conhecidas e passem a pertencer também ao mundo 2.

Um exemplo simples é o caso dos números primos. Sua existência, embora decorra necessariamente dos números naturais como concebidos pelo homem, foi por muito tempo desconhecida dos matemáticos. Os problemas e paradoxos da lógica e da matemática são conseqüências não-pretendidas de teorias do mundo 3 e mostram sua autonomia com relação ao mundo 2.

Há interação entre os três mundos, pois as teorias do mundo 3 influenciam o mundo 1 por meio do mundo 2. Ao contrário do que sustentam os fisicalistas e os behavioristas, há um mundo mental, pois este serve de medium para a interação entre as teorias e o mundo físico. 

Se a teorias atuam sobre o mundo físico por meio do mundo mental, como parece evidente pelas modificações da realidade impostas pelas idéias humanas, então não restariam argumentos contra a interação corpo-mente. Popper, contudo, admite que não sabe explicar como agem o cérebro e a consciência um sobre o outro.


Na conferência The epistemological position of evolutionary epistemology (1986), o filósofo austríaco defende que tudo o que sabemos é a priori. O que é a posteriori é a seleção do que temos a priori através do choque de nossas hipótese com o mundo.

Popper considera que Kant foi o primeiro filósofo da tradição a se dar conta da necessidade de um conhecimento anterior às observações para que estas fossem mesmo possíveis. Entretanto, tal conhecimento a priori não é necessariamente válido no sentido da modalidade lógica. Para Popper, esse conhecimento é somente geneticamente válido a priori como uma classe primeira de hipóteses que serão testadas frente ao ambiente.

Mais adiante no texto, Popper propõe um experimento mental acerca da origem da vida. Assumindo-se por hipótese que se pudesse criar vida num tubo de ensaio, Popper assevera que ela teria de se adaptar ao tão pobre ambiente do tubo. Para manter a vida viva (sic) teríamos que fazer modificações em tal ambiente, ou seja, adaptar o ambiente à vida.

Popper então defende que o surgimento da vida em si mesma não garante que para ela haja um ambiente propício. Daí ele pensar que o surgimento da vida pode se ter dado inúmeras vezes sem que houvesse um ambiente que a sustentasse. Desta forma, Popper argumenta, é necessário para que a vida se adapte que ela tenha um conhecimento a priori das constantes naturais. Adaptação é uma forma de conhecimento a priori. A vida antecipa o futuro do ambiente em linhas gerais.

Isso mostra, segundo Popper, que o conhecimento já começa nos primeiros passos da vida. Toda sua teoria (e também o darwinismo) depende de que haja uma homologia entre o conhecimento humano consciente e o “conhecimento” inconsciente dos animais e plantas e da vida em si mesma. Poder-se-ia então considerar as antecipações genéticas dos seres vivos em geral como um conhecimento hipotético a priori do mundo.

Dessa forma, o conhecimento, numa perspectiva biológica, dar-se-ia por um processo ativo de tentativa e erro. Expectativas inatas dos seres vivos seriam expostas ao crivo do ambiente e eliminadas quando se mostrassem errôneas. Popper defende ainda que tal perspectiva refuta o indutivismo, pois a percepção não seria a origem do conhecimento, mas ela mesma seria um processo de tentativas e erros.

Para Popper, tudo o que podemos fazer é comparar nossas expectativas inatas e nossas teorias linguisticamente formuladas com o ambiente externo e eliminar nossos erros. Conhecimento definitivo não é para animais como o homem, mas sim para deuses. Todo nosso conhecimento será para sempre conjectural e provisório.


Na conferência Towards na evolutionary theory of knowledge (1989), Popper divide seu texto em dezenove teses curtas onde reafirma muitos de seus já conhecidos pontos de vista sobre epistemologia evolucionária. 

Eis as teses:


1. Conhecimento tem caráter freqüente de expectativas ;
2. Expectativas têm usualmente o caráter de incerteza conjectural ;
3. O conhecimento, seja animal ou humano, tem caráter hipotético;
4. Embora seja sempre hipotético, muito desse conhecimento é verdadeiro, ou seja, corresponde aos fatos;
5. Podemos distinguir a idéia de verdade da de certeza ;
6. Há muita verdade em nosso conhecimento, mas pouca certeza. O que temos que fazer é julgar nossas teorias e expectativas criticamente;
7. Verdade é objetiva: correspondência com os fatos. (Alfred Tarski)
8. Certeza raramente é objetiva. É, em geral, um sentimento de forte convicção baseado em insuficiente conhecimento, gerando dogmatismo perigoso seja nos meios científicos seja nos meios políticos;
9/ 10 .Animais e plantas têm, no sentido biológico e evolucionário, conhecimento;
11. Organismos têm conhecimento das constantes law-like e do comportamento de longo prazo do ambiente;
12/ 13. Há distinção entre o conhecimento das constantes ambientais de longo prazo e aquelas de curto prazo. Estas se referem mais à vida de organismos individuais e podem mudar com maior velocidade. As constantes de longo prazo dizem mais respeito à sobrevivência da espécie como um todo.
14. Sem um conhecimento a priori das regularidades de longa duração os órgãos sensoriais como os olhos seriam inúteis. Daí Popper conclui que tais órgãos só se formaram por causa desse conhecimento prévio.
15. De um ponto de vista biológico, a tese de que o conhecimento começa nos sentidos é um erro. Nosso aparato biológico é altamente ativo e seletivo sobre o que é no momento biologicamente importante. As expectativas que antecipam as observações são resultado de uma evolução por tentativa e erro e adaptação às constantes de longo prazo do ambiente.
16. O conhecimento das constantes de longo prazo do ambiente precedem o conhecimento das constantes de curto prazo do cotidiano e não podem aquelas ser derivadas destas. As constantes de longo prazo podem ser revisadas, mas as de curto prazo podem somente ser mal-interpretadas.
17. O conhecimento de tais constantes servem para a adaptação dos organismos à seu ambiente.
18. Se a vida só pode sobreviver adaptada ao ambiente, é possível afirmar que o conhecimento é tão antigo quanto a própria vida.
19. Assim, a origem e evolução do conhecimento coincide com a origem e evolução da vida e está intimamente ligada com a origem e evolução do planeta Terra. A teoria da evolução liga conhecimento, e nós mesmos, ao cosmos. 

Popper declara na página 65:


“(...) e assim o problema do conhecimento torna-se um problema de cosmologia." 


Para Popper o problema do entendimento do mundo inclui o conhecimento de nós mesmos e de nosso conhecimento como parte do mundo. E com essas dezenove teses pretende ele resumir sua teoria evolucionária do conhecimento.

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