sábado, 8 de fevereiro de 2014

Nigel Warburton, Anselmo e Aquino



Lendo por acaso o capítulo dedicado a Anselmo de Cantuária e a Tomás de Aquino no livro Uma Breve História da Filosofia de Nigel Warburton, deparei-me com erros importantes na descrição dos argumentos dos dois autores medievais.

Em primeiro lugar, Warburton afirma que Anselmo, no argumento ontológico, parte da afirmação de que "não se pode conceber nada maior do que Deus".

Infelizmente, isso não é verdade. Anselmo parte, isso sim, do conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior", o que vem a ser a definição de Deus. Sendo o "ser do qual não se pode pensar nada maior", não é possível que lhe falte nenhuma perfeição. 

Daí que conceber "o ser do qual não se pode pensar nada maior" como uma mera idéia na mente de um sujeito, sem existência extra-mentis, é concebê-lo privado de de uma perfeição. Se ele estiver privado de algo, não poderá ser "o ser do qual não se pode pensar nada maior", o que seria contraditório. Logo, conceber na mente "o ser do qual não se pode pensar nada maior" implica necessariamente afirmar a sua existência, sob pena de contradição.

A apresentação que Warburton faz do cerne do argumento não o simplifica ou o torna mais acessível a um público leigo em filosofia, mas, ao contrário, deturpa-o transformando-o em um espantalho.

O argumento ontológico não diz que "não se pode pensar nada maior que Deus". Fosse isso verdade, seria fácil perguntar-se a razão pela qual não seria possível pensar nada maior que esse ente, Deus. O caso é que Deus necessariamente existe fora da mente que o concebe porque seu conceito - "o ser do qual não se pode pensar nada maior" - o exige logicamente.

Para mais detalhes: http://oleniski.blogspot.com.br/2013/05/anselmo-platonismo-medieval-e-o.html

O segundo erro importante de Warburton é afirmar que Tomás de Aquino, em sua prova da existência do primeiro motor (Deus), asseverava que "cada coisa que existe e é o que é porque teve um tipo de causa".

É um erro muito comum acerca dessa via de demonstração da existência de Deus afirmar-se que a premissa básica é "tudo o que existe tem uma causa". 

Ora, seria fácil objetar ao suposto argumento de Tomás - como efetivamente Warburton o faz em seguida - dizendo: 

"Se tudo o que existe tem uma causa, então Deus também tem uma causa".

A estrutura desse condicional é clara. Se realmente tudo o que existe tem uma causa, naturalmente Deus também tem uma causa. Mas, note-se, o condicional diz "se". Ou seja, pode ou não ser verdade que tudo tenha uma causa, mas sendo isso verdade, então qualquer ente necessariamente terá que ter uma causa.

O problema é que Tomás - com Aristóteles - nunca afirmou que tudo o que existe tem uma causa.  Ele afirmou, isso sim, que "tudo o que que se move só se move por um outro". Ou seja, tudo o que estava em potência só se torna ato por ação de um ente que já está em ato. Tudo o que não era e passou a ser só passou a ser por ação de algo que já era.

A exigência de uma causa só se aplica aos entes nos quais o aparecimento se dá em um determinado momento, não existindo anteriormente. A casa exige uma causa porque seu aparecimento se deu em um determinado momento do tempo - não existindo antes - e, por isso, sendo inexistente antes, não poderia dar existência a si mesma, mas necessitava de um agente que a construísse.

Corrigindo-se a premissa, fica obliterada a suposta refutação. Se se afirma que tudo o que existe tem uma causa, então claramente Deus também tem uma causa. Mas se se afirma que tudo o que não era e veio a ser só vem a ser por intermédio de uma causa, fica totalmente em aberto a questão de haver ou não um ente que não tenha causa.

A existência de um ente incausado é determinada justamente pela segunda premissa do argumento de Tomás - e Aristóteles - que Warburton também enuncia de forma errada. Ele diz que Tomás afirma que é impossível um regresso temporal infinito de causas. Sendo impossível tal regresso, necessariamente há uma causa incausada, Deus.

Isto é, seria impossível recuar temporalmente de uma causa à sua anterior infinitamente. Se B é causado por A, A é causado por G e G por Y e Y por V e assim por diante em um regresso infinito de causas. Daí, para encerrar essa série, seria necessário que existisse um ente sem causa, ou seja, Deus.

Warburton diz, então, que não há nada que impeça uma série desse gênero e que por isso o argumento de Aquino estaria errado. Warburton está certo. O problema é que, mais uma vez, Aquino não disse o que Warburton acha que ele disse.

Aquino retira seu argumento de Aristóteles e este formula sua prova tendo em vista a eternidade do mundo. O mestre macedônio acreditava que não havia um momento tal em que não se pudesse pensar em um momento anterior. Em outras palavras, não importa o quão recuado seja o regresso temporal, sempre é possível recuar mais.

Esse é um outro ponto em que há muita confusão. É perfeitamente possível recuar indefinidamente em uma série na qual José gera Pedro, João gera José, Isaac gera João e assim por diante. Isso é uma série regressiva de causas acidentais. 

José foi gerado por João, mas não necessita de João para gerar Pedro. É certo que Pedro não existiria sem que João gerasse José e José gerasse Pedro. Contudo, José poderia não ter gerado Pedro e se porventura decidisse gerá-lo, não necessitaria de seu pai em nada para gerar Pedro. Esse é o ponto.

O fato é que Pedro deve sua existência a João e João dotou Pedro de uma capacidade - a de gerar descendentes - que não depende mais do próprio João. Pedro pode gerar descendentes independentemente de João assim como este pôde gerar Pedro independentemente de seu pai, João.

Cumpre notar que nada impede que uma cadeia assim seja infinita em um regresso temporal. Todavia, Aquino admite isso e distingue esse gênero de série de um outro gênero de série regressiva que não pode ser infinito. É a série de causas simultânea e essencialmente ordenadas.

Para que eu esteja aqui e agora escrevendo, há uma série de causas que atuam simultaneamente e que, se fossem infinitas, eu não estaria aqui escrevendo. São as causas essencialmente ordenadas, isto é, causas cuja existência depende das anteriores e estas das anteriores.

Nesse gênero de série, cada movido é movido pelo anterior simultaneamente como uma mão que move uma vareta que move uma pedra que move uma folha. O movimento de cada um dos moventes não vem dele mesmo, mas do anterior e dele depende inteiramente. Ou seja, em si mesmos, nenhum dos motores tem poder de mover o subsequente, recebendo esse poder do anterior e este, por sua vez, o recebe do anterior e assim por diante.

Em uma série desse gênero, em que nenhum dos motores tem em si mesmo o poder de mover, é necessário um motor que mova sem que receba de outro seu poder de mover. Em outras palavras, esse motor deve estar fora da série de moventes essencialmente ordenados.

No caso da folha que é movida pela pedra que é movida pela vareta, nem a pedra e nem a vareta movem com poder próprio e, se deixadas a si mesmas, nada moveriam e nem se moveriam. Elas recebem seu poder de mover do motor anterior e, em conjunto, simultaneamente, recebem seu poder da mão. Esta sim, é o motor verdadeiro.

Por conseguinte, não é possível um regresso infinito de causas simultânea e essencialmente ordenadas. Deus é o motor que move sem ser movido por um anterior.

Ao confundir o regresso infinto temporal de causas como o regresso infinito de causas essencialmente ordenadas, Warburton cria um espantalho do argumento aristotélico-tomista. Embora tal erro seja frequente, isso não o torna menos importante ou menos reprovável. Principalmente em uma obra que promete ao leitor uma introdução fiel ao pensamento dos filósofos clássicos.


Para mais detalhes: 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Ibn Tufayl, unidade, conhecimento e religião II



"A pedagogia que conduz à plena consciência das coisas não é obra de um mestre humano exterior. Ela é a iluminação pelo Intelecto Agente, mas este não ilumina o filósofo a não ser sob a condição de que ele se desfaça de todas as ambições profanas e mundanas e viva, no meio do mundo, a vida do solitário. (...) pois o sentido último do relato de Ibn Tufayl parece ser o seguinte: o filósofo pode compreender o homem religioso, mas a recíproca não é verdadeira. O homem religioso não pode compreender o filósofo."

HENRY CORBIN, Histoire de la Philosophie Islamique, p. 333


Após as investigações apresentadas em http://oleniski.blogspot.com.br/2013/10/ibn-tufayl-unidade-conhecimento-e.html , Hayy Ibn Yaqsan, no quinto septênio de sua vida, passou a ter em vista somente o conhecimento do Ser Necessário que havia descoberto após tanto esforço.

Ele questionou-se, em seguida, sobre qual parte de si mesmo poderia ter lhe fornecido esse conhecimento de Deus. Bem, se Deus é completamente incorpóreo, seguia-se necessariamente que se não poderia conhecê-Lo por alguma parte corpórea de si mesmo. Tendo em vista o fato de o conhecimento de Deus apresentar-se a ele de forma demonstrativa, Hayy viu-se obrigado a admitir que ele mesmo - isto é, sua essência - era também incorporal. O semelhante capta o semelhante.

Como poderiam os sentidos, que captam somente corpos, apreender a Deus, o incorpóreo? E mesmo a imaginação, criadora de imagens a partir dos dados dos sentidos, poderia ela apreender a Deus? Certamente que não. 

Ora, se sua essência não era corpórea, então, Hayy conclui, ela não estaria submetida à corrupção que é o apanágio dos corpos. Sua essência, então, é imperecível. Quando o corpo seguir o curso natural de sua corrupção, sua essência permanecerá o que é sem alteração nenhuma.

A pergunta óbvia é: "o que acontece com a essência depois que o corpo se dissolve?". Hayy percebera que cada sentido ou faculdade humana se inclina para seu objeto próprio e nele tem o seu prazer. Aristóteles não afirmara que o homem ama ver mesmo quando não há nenhum interesse prático nisso? Sendo assim, se um sentido for impedido de voltar-se para seu objeto próprio por algum motivo, isso trará sofrimentos. Como a ausência da visão faz sofrer o cego.

Se o objeto da essência humana é o incorpóreo e o inteligível, não poderá haver maior prazer e felicidade do que estar unido ao mais alto objeto incorpóreo e inteligível: o Ser necessário. Hayy pensa em três possibilidades na vida post-mortem:

1) Aquele que jamais adquiriu a idéia desse Ser necessário e que, por isso, quando morre não o deseja e não sofre por estar privado dele. Como as faculdades corpóreas não O apreendem, elas estarão desprovidas de seus objetos próprios e desaparecerão com a desaparição do corpo. Essa é a condição das bestas, humanas ou não.

2) Aquele que teve a idéia desse Ser necessário, inclinou-se a Ele, mas deixou-se tragar pelas paixões e morreu dessa forma. Sentirá grande dor e assim permanecerá por um tempo ou para sempre, dependendo de sua vida pregressa.

3) Aquele que não somente apreendeu a idéia do Ser necessário, mas também contemplou-a, viveu para Ela e a Ela dedicou toda sua vida, dispensando todas as paixões mundanas e morrendo em contemplação intuitiva.

Este viverá feliz, abandonados os sentidos e seus órgãos, na contemplação perpétua e sem ocaso do Ser necessário, a mais alta perfeição e o mais alto inteligível.

Entretanto, enquanto ainda no corpo, Hayy compreendeu que deveria adotar uma série de práticas de acordo com a semelhança que guardava com os animais, com os astros e com o Ser necessário.

Sendo um animal, Hayy percebeu que teria que manter seu corpo. Por outro lado, as necessidades do corpo não podem tornar-se obstáculos ou tentações no caminho ao Ser necessário. Concluiu que deveria alimentar-se somente naquilo que era estritamente necessário para a sobrevivência do corpo e proteger-se das intempéries que ameaçam sua integridade física.

Para mais assemelhar-se ao Ser necessário mesmo no corpo, comprometeu-se a só alimentar-se de um modo que seja o menos destrutivo possível. Ingeria primeiramente as frutas maduras que tinham numerosas sementes a fim de preservá-las. Na falta destas, ingeria as sementes comestíveis e na falta destas ainda, alimentava-se de animais. Contudo, somente daqueles muito numerosos, a fim de também preservá-los.

No que tange à assemelhação aos corpos celestes, Hayy descobriu que estes têm efeitos benéficos sobre os corpos terrestres, que sua essência é inteligente, que movem-se em perfeitos círculos e que estão perpetuamente voltados ao Ser necessário. 

Hayy dedicava-se então a todo benefício que pudesse conceder aos seres que o rodeavam. Ao mesmo tempo, imitando a perfeição dos astros, impunha-se os mais rigorosos hábitos de higiene e longas caminhadas circulares pela ilha, além de pôr-se, o máximo possível, em contemplação do Ser necessário.

Para assemelhar-se ao Ser necessário, Hayy notou que Ele tinha dois tipos de atributos: os positivos e os negativos. Os positivos - bondade, perfeição, eternidade, etc. - não O tornam múltiplo em si mesmo, já que todos esses atributos não eram algo acrescentado à Sua essência, mas Sua essência mesma dita de diversas formas. Os atributos negativos eram justamente a negação dos limites intrínsecos dos corpos e dos atributos positivos.

Pois bem, o jovem então dedica-se, para imitar a unicidade divina, a contemplar somente à Ele, esquecendo-se de si mesmo. Uma vez que o conhecimento de Deus não é algo acrescentado a Ele, mas Ele mesmo, decidiu-se a conhecer somente a Ele, isolando-se em uma caverna, imóvel, como Deus é imóvel, abstraindo-se de todo e qualquer ente sensível.

Em uma dessas meditações, alcançou enfim a união perfeita com o Ser necessário, de modo que tudo o que existe no mundo sensível desapareceu, bem como toda idéia inteligível e mesmo sua essência. Só restou o Único, o Ser permanente, o Real, para além de qualquer conceito e pensamento.

Sendo uno com o Uno, todo o resto desapareceu e nenhuma diferença pôde se afirmar, de modo que Hayy compreendeu que nessa esfera sagrada e bendita, não há diferença ou multiplicidade, características somente daquilo que é corporal e limitado. O Uno põe a unidade e o diferente põe a diferença.

Ibn Tufayl assevera:

"(...) Hayy Ibn Yaqzan quando, examinando-o de certo ponto de vista, via-o múltiplo com uma multiplicidade impossível de abarcar, escapando a todo limite; depois, examinando-o de um outro ponto de vista, via-o uno e ficava indeciso sobre essa questão, sem poder decidir num ou noutro sentido. Pois o mundo sensível é a pátria do plural e do singular: nele se apreende a verdadeira natureza de ambos, nele aparecem a separação e a reunião, o lugar, a distinção numérica, o encontro e a dispersão.

Que pensará então do mundo divino, ao qual não se podem aplicar as palavras todo e parte, em relação ao qual não se pode proferir nenhum dos termos a que nossos ouvidos estão habituados, sem supor nisso alguma coisa contrária à realidade?" (p. 159/160 da edição brasileira da Editora Unesp)

Na época dessas descobertas místicas, havia aparecido uma nova religião que ensinava as mesmas verdades conhecidas por Hayy, mas de forma simbólica, a fim de alcançar a mente de todos os homens. Tal religião facilmente converteu os habitantes de uma ilha vizinha à ilha onde habitava o filósofo autodidata.

Nessa ilha vizinha viviam dois homens piedosos e justos, Assal e Sulaiman. O primeiro deles inclinava-se sobretudo ao sentido interior e esotérico das verdades reveladas por aquela religião. O segundo, inclinava-se primariamente ao sentido externo, às leis escritas e aos mandamentos públicos.

Esses curiosos personagens são imagens da Haqiqah e da Shariah, do sentido esotérico (bâtin) e do sentido exotérico (zahir) da revelação corânica. Para além do sentido imediato da lei comum que rege a vida de todo muçulmano, haveria um sentido interno, esotérico, que seria alcançado somente por uma minoria entre os fiéis islâmicos.

Tal dualidade está presente tanto no sunismo quanto no shi'ismo. No primeiro, pela existência das tariqas sufis e no segundo, principalmente pela existência do walayah, a cadeia sucessiva dos Imames, guardiões e reveladores do sentido esotérico da lei comum.

Assal, inclinado à solidão da contemplação, partiu para a a ilha de Hayy Ibn Yaqzan. Lá chegando, deparou-se com o solitário e, após um breve período de adaptação e conhecimento mútuo, ambos tornaram-se próximos e passaram a conviver. Assal ensinou-lhe sua língua e logo passaram a conversar sobre suas experiências.

Hayy contou a Assal sobre todas as suas descobertas e sobre seus êxtases. O religioso viu então que tudo o que Hayy lhe dizia concordava com aquilo que lhe ensinara sua religião. E Hayy percebeu que tudo o que Assal lhe ensinara acerca daquela religião - sua doutrina e seus mandamentos - estavam em total acordo com o que ele mesmo aprendera sozinho naquela ilha deserta.

Contudo, Hayy se perguntava porque esses homens simplesmente não falavam a língua da verdade sem símbolos e porque eles simplesmente não se afastavam de todo apego, ao invés de ainda permitirem riquezas e dinheiro em seu meio. Concebeu então o plano de ir pregar a verdade completa a eles.

Hayy e Assal tomam um navio para a ilha vizinha e lá o solitário começa sua pregação. Contudo, ele rapidamente percebe que as coisas não eram exatamente como ele gostaria que elas fossem. Mesmo os mais elevados dentre os habitantes da ilha tinham enorme dificuldade e opunham grande resistência ao ensino da verdade clara.

Muitos se apegavam insistentemente ao sentido exotérico da lei e outros, a maioria, só queriam da religião aquilo que tinha a ver com este mundo, com as vantagens da vida sensível. Logo compreendeu que sua missão estava fadada ao fracasso.

E a causa desse fracasso era a constituição dos homens. Nem todos eram talhados para aquela verdade límpida e translúcida que Hayy vinha anunciar. A maioria jamais poderia alcançá-la, de modo que a providência divina concedeu-lhes as palavras e as leis dos profetas, a fim de que fossem instruídos na medida em que fossem capazes de instrução.

Hayy Ibn Yaqzan retratou-se publicamente de seus discursos e afirmou ser sua a mesma fé daqueles homens e exortou-os ao cumprimento diligente das leis reveladas. Diante de Sulaiman - tornado rei da ilha logo depois da partida de Assal - conclamou-os à virtude e à fé no sentido exterior da revelação divina e aconselhou-os à simplicidade de pensamento, desaconselhando qualquer busca mais profunda acerca do sentido esotérico da lei religiosa.

Depois disso, partiu junto com Assal para sua ilha e lá morreu adorando a Deus.