segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Breve introdução ao internalismo epistemológico


                                                   Roderick Chisholm

No debate acerca das condições necessárias e suficientes para o conhecimento duas correntes dominam o cenário filosófico analítico anglossaxão: o internalismo e o externalismo. Embora existam ainda muitas obscuridades, incompreensões e controvérsias na própria classificação e entendimento dessas correntes, existe certa concordância na questão de suas características gerais. 

Laurence Bonjour, em artigo publicado na coletânea que integra o Oxford Handbook of Epistemology, afirma que ambas as correntes pretendem estabelecer a terceira condição do conhecimento, aquela que junto à crença e à verdade da crença, torna o conhecimento legítimo. A partir disso, segundo o autor, a definição dessas correntes se daria nos seguintes termos:


"Uma teoria epistemológica conta como internalista se e somente se ela exige que todos os elementos necessários para que uma crença satisfaça essa condição deve ser cognitivamente acessível à pessoa em questão; e como externalista, se ela permite que pelo menos alguns desses elementos não sejam acessíveis, permitindo-os ser externos à perspectiva cognitiva daquele que crê."


Evidentemente, há controvérsias acerca do significado de termos como “cognitivamente acessível” e “perspectiva cognitiva”, permanecendo sua compreensão ainda numa esfera bastante intuitiva. Não obstante, Alvin Plantinga define o internalismo em termos semelhantes aos usados por Bonjour. Ele assim afirma:


"A ideia básica do internalismo é, obviamente, aquela segundo a qual o que determina se uma crença é garantida para uma pessoa são fatores ou estados em algum sentido internos a ela; as propriedades que conferem garantia são de alguma forma internas ao sujeito ou ao conhecedor."


Tanto Plantinga quanto Bonjour assinalam a origem cartesiana do internalismo, na medida em que mantém como seu objetivo a construção do conhecimento a partir de bases consideradas indubitáveis. Segundo Plantinga, a origem do internalismo pode ser rastreada até as posições epistemológicas de Descartes e de Locke e delas ainda conserva muitos traços distintivos. O aspecto central dessa perspectiva epistemológica é o caráter deontológico da justificação das crenças. 

O internalista clássico pensa que nós precisamos não dar chance ao acaso quando se trata de justificação; aqui nosso destino está inteiramente em nossas mãos. O destino pode conspirar para enganar-me; eu poderia estar enganado a respeito da existência do mundo externo, ou do passado, ou de outras pessoas. 

Por mais que eu possa estar convencido, ainda assim eu posso ser um cérebro numa cuba ou a vítima de um maléfico demônio cartesiano que se delicia na enganação. Eu posso estar total e desesperançadamente enganado. Mesmo assim, eu posso ainda cumprir meu dever epistêmico; fazer o meu melhor e estar acima da reprovação. 

Justificação (diferente de uma constituição forte, por exemplo) não é algo que acontece com uma pessoa; é, ao contrário, o resultado de seus próprios esforços. Talvez eu não possa levar o crédito pela minha boa digestão ou minha bela disposição. Eu posso levar crédito por estar justificado. Da forma que o deontologista clássico vê as coisas a justificação não se dá por fé, mas por obras, e depende de nós se somos justificados em nossas crenças.

O internalismo concebe a justificação das crenças em termos de cumprimento de certos deveres epistêmicos, os quais serão condições necessárias e suficientes para que haja conhecimento legítimo. A partir dessa constatação, Plantinga aponta para o que ele denomina o primeiro tema internalista, segundo o qual “a justificação epistêmica (isto é, a justificação epistêmica subjetiva, tal que não sou sujeito à crítica) está inteiramente sob minha responsabilidade e dentro de meus poderes.” 

O que é exigido do sujeito conhecedor S é que ele cumpra diligentemente seu dever, ou seja, que tenha um desempenho epistêmico impecável e sem sombra de leviandade. O segundo tema internalista, de acordo com Plantinga, afirma que: 

"Para uma classe extensa, importante e básica de deveres epistêmicos objetivos, os deveres objetivos e subjetivos coincidem; aquilo que você deve fazer objetivamente se encaixa com aquilo que é tal que, se você não o fizer, será culpado e criticável.” 

O tema acima, que une o dever subjetivo do sujeito conhecedor com aquilo que é objetivo, tem como corolários que para uma série extensa e importante de casos, um ser humano funcionando propriamente simplesmente pode perceber (ou seja, não pode cometer um erro involuntariamente) o que dever epistêmico exige e se a proposição tem a propriedade por meio da qual ele reconhece uma proposição como justificada para ele.

Há um terceiro tema internalista que Plantinga cuidadosamente apenas sugere esteja ligado precipuamente aos estados internos do sujeito. Segundo sua interpretação, o caráter deontológico do internalismo implica que as únicas proposições que se coadunam com as suas exigências sejam aquelas em que o sujeito não pode cometer erros. 

Ao contrário de proposições acerca, por exemplo, do bom funcionamento do pâncreas, proposições do tipo “creio que Albuquerque fica no Novo México” ou “isto me parece vermelho” são indubitáveis toda vez que nela um sujeito crê. Pode-se certamente ignorar e errar num julgamento sobre a saúde de um órgão interno, porém não se pode, sob nenhum aspecto, se enganar sobre se algo, num determinado momento, aparece como vermelho.

Apesar de sua caracterização do internalismo se basear principalmente nas fontes dessa tradição, Descartes e Locke, Plantinga pretende que ela encontra-se em grande parte confirmada pelas obras de filósofos internalistas contemporâneos. Estes, embora com algumas divergências, endossariam em geral as ideias de que a justificação (junto com a verdade) seria condição necessária e suficiente para o conhecimento, a de que há uma forte conexão entre a justificação e a evidência e que a justificação envolve o internalismo epistêmico.

Em primeiro lugar, Plantinga aponta que para esses autores contemporâneos a justificação é sempre vista sob a ótica deontológica. Estar justificado em crer numa proposição ou tese significa ter cumprido seus deveres epistêmicos adequadamente. Por outro lado, a justificação significa possuir bases aceitáveis, ou seja, é necessário ter evidências para se crer em algo. 

Se o sujeito conhecedor buscou diligentemente basear suas crenças em evidências adequadas, ainda que ele esteja (sem o saber) sob a influência de um gênio maligno ou seja um cérebro numa cuba, nada impede que se atribua a ele conhecimento legítimo. Em terceiro lugar, as evidências requeridas para a justificação das crenças devem ser internamente acessíveis ao sujeito que conhece.

Laurence Bonjour afirma, em sua análise do internalismo, que este tem seu rationale em duas ideias fundamentais. A primeira delas é a concepção segundo a qual a justificação epistêmica se dá no cumprimento dos deveres e responsabilidades de uma criatura racional, de modo que uma pessoa só está justificada em suas crenças na medida em que ela tenha cumprido diligentemente tais obrigações (concepção deontológica da justificação). A segunda é a ideia de que o papel central da justificação epistêmica é guiar o sujeito na decisão do que crer.

No tocante à primeira concepção que forma o centro do rationale internalista, a de que o cumprimento de deveres e responsabilidades epistêmicos é condição necessária e suficiente para a justificação de crenças, Bonjour aponta para os casos onde o sujeito se encontra numa situação de “pobreza epistêmica”. A situação em que uma pessoa se encontra pode ser tão epistemicamente empobrecida que lhe será impossível obter boas evidências e bases adequadas para suas crenças. 

E tal pode se dar por uma ampla diversidade de fatores como falta de evidências seguras, métodos disponíveis inadequados ou mesmo falhas e deficiências no aparelho cognitivo. Nessas situações, ainda que o sujeito em questão dê o melhor de si nos seus empreendimentos cognitivos, ele não terá condições de alcançar e preencher as exigências para um conhecimento legítimo. Não obstante, em nenhum momento será possível criticá-lo ou condená-lo por negligência ou leviandade. O sujeito conhecedor cumpriu seus deveres, mas ainda assim não está epistemicamente justificado em suas crenças.

Com respeito à segunda ideia que compõe o rationale internalista, a de que a justificação funciona como um guia para o sujeito na aceitação ou na rejeição de suas crenças, Bonjour aponta para o fato cotidiano da impossibilidade de um controle efetivo sobre as crenças.

Em boa parte dos casos o assentimento dado está longe de corresponder a um controle voluntário. Esse fato, por sua vez, não invalida a tese de que algumas vezes a justificação possa realmente funcionar como guia para a aceitação ou rejeição das crenças.

Mattias Steup, em artigo para a Stanford Encyclopedia of Philosophy, aponta para algumas concepções características do internalismo. A primeira delas, seria a ideia da existência de deveres epistêmicos que, por sua vez, não podem ser confundidos com normas éticas ou prudenciais. Segundo ele, a justificação deontológica pode ser formulada como se segue: 

“S está justificado em crer em P se e somente se no ato de crer em P, S não esteja violando qualquer de seus deveres epistêmicos.”

O conteúdo desses deveres epistêmicos são objeto de controvérsia, mas o que pode ser dito com segurança é que eles nascem da busca pela verdade. Daí a possibilidade de formular a justificação em termos de tudo aquilo que não se opõe à persecução do que é verdadeiro.

Em segundo lugar, se há uma deontologia epistêmica, então uma de suas exigências deve ser a de somente dar assentimento àquilo que tem bases evidenciais, e desde que essas bases são diretamente reconhecíveis pelo sujeito conhecedor, a justificação é igualmente reconhecível internamente. 

A terceira característica do internalismo se apresenta em contraste com uma das exigências do confiabilismo externalista. Este concebe que a justificação de uma crença é uma função da confiabilidade dos processos ou faculdades cognitivas. 

Contra isso, o internalista aponta para a possibilidade lógica de um demônio cartesiano estar deturpando essas faculdades de tal forma que nenhum resultado positivo em termos de conhecimento real possa ser obtido. Todas as crenças, memórias e evidências estão sob o domínio maléfico do gênio cartesiano que engana sistematicamente aquele que crê possuir conhecimento. 

Para o internalista nenhum efeito negativo é produzido por essa hipótese uma vez que o sujeito conhecedor apoiou-se nas evidências disponíveis e corretas e baseou suas crenças sobre elas. Ele cumpriu seu dever diligentemente e seu desempenho é inatacável, ainda que tenha sido enganado pelo gênio malévolo.
   
Para ilustrar as características do internalismo até aqui elencadas, não será ocioso deter-se momentaneamente e apresentar de modo sucinto e resumido algumas das concepções epistemológicas do filósofo americano Roderick Chisholm, considerado como um dos mais destacados e influentes representantes do internalismo no século XX. 

Alvin Plantinga afirma que existe um “internalismo chisholmiano clássico”, que é compreendido pelo período que vai da publicação de seus primeiros escritos até a publicação de Foundations of Knowledge. Nessa fase, o filósofo americano vê a justificação das crenças ou o caráter epistêmico positivo em função do cumprimento de deveres ou obrigações epistêmicas:

"Pode-se dizer que essa é a responsabilidade ou dever de uma pessoa qua ser racional (...) Uma forma de recolocar a  locução “P é mais razoável que Q para S em t” é dizer  isso: “S está de tal forma situado em t que seu dever intelectual, seu dever como ser racional, é melhor satisfeito pela crença em P do que em Q.” 


Para Chisholm, crer ou se abster de uma crença é parte essencial da realização dos deveres epistêmicos de um agente racional. E este só pode dar assentimento a uma proposição se ela apresenta-se como mais razoável que sua negação ou outra proposição qualquer. De acordo com sua razoabilidade as crenças serão classificadas através de termos epistêmicos como “certo”, “além da dúvida razoável”, “evidente” e “aceitável”. 

A razoabilidade, entendida em um sentido normativo e deontológico, tem semelhanças com conceitos éticos ou morais, embora com eles não se confunda. Se o sujeito cumpre seu dever epistêmico com responsabilidade somente aceitando crenças que possuam razoabilidade, e se essas mesmas crenças são verdadeiras, então ele estará justificado em suas pretensões de conhecimento.

Plantinga, comentando as teses de Chisholm, afirma que este, ao subscrever o deontologismo epistêmico, acaba por também subscrever o primeiro lema internalista, segundo o qual a obtenção de um status epistêmico positivo para as crenças está sob o alcance do sujeito conhecedor e depende só dele. 

Ou seja, para que haja conhecimento é preciso somente que o investigador cumpra o dever que está, ampla e irrestritamente, em suas mãos e à sua disposição.18 Essa obrigação não é do mesmo gênero daquelas as quais o cumprimento se dá de uma só vez, como a restituição de um objeto furtado, mas exige um constante empenho em manter a acuidade epistêmica em todas as atividades cognitivas.

O compromisso, para todo ser racional, é sempre buscar a realização da excelência no âmbito epistêmico. Isso não significa que seja necessário, a fim de cumprir a contento os deveres acima citados, que as crenças que o sujeito conhecedor sustenta sejam de fato todas verdadeiras. 

Não é preciso nem mesmo que a maioria delas seja. O que é exigido é que haja um esforço continuado e constante por parte do sujeito para cumprir os deveres impostos pelo fato de pertencer à classe dos seres racionais. Na qualidade de um ser intelectual, seu dever é esforçar-se por alcançar a excelência. 

É evidente que essa tese de Chisholm contém um forte elemento decisional. O sujeito decide esforçar-se para obter o status epistêmico positivo para suas crenças. Está sob seu inteiro poder acolher algumas e rechaçar outras. 

A racionalidade do ser intelectual se desvela aí como uma decisão consciente de submeter suas crenças a certos exames calcados em parâmetros determinados, de forma análoga à metáfora cartesiana do homem que examina as maçãs de sua cesta uma a uma, preservando as que estão em boas condições e jogando fora as que estão podres. 

Como foi dito, não é necessário para o cumprimento do dever epistêmico que todas as crenças sustentadas pelo sujeito sejam efetivamente verdadeiras, bastando-lhe a constância no esforço de alcançar a excelência no conhecimento. Infere-se daí que esse empreendimento é tentativo, ou seja, o que se pode exigir do agente conhecedor é que ele tente sempre cumprir diligentemente seus deveres como ser racional.

Se suas faculdades estão sob efeito de uma ilusão criada por um demônio maligno ou se ele mesmo não é mais do que um cérebro numa cuba no laboratório de um cientista excêntrico, nada disso tem importância no tocante à justificação de suas crenças. Tendo feito tudo aquilo que estava ao seu alcance para cumprir com suas obrigações como um ser racional, o sujeito conhecedor está plenamente justificado em crer naquilo que crê.

A fim de ilustrar o ponto acima, será citado aqui um dos seis princípios epistêmicos que Chisholm apresenta para guiar o sujeito nas suas atividades de conhecimento. Segundo esse princípio, 

(1) se o sujeito toma perceptualmente algo como um F e se (2) sua percepção é epistemicamente clara para ele, então está além da dúvida para o sujeito que ele está percebendo algo que é F. E, se além de (1) e (2) a percepção de que algo é F for membro de um conjunto de proposições as quais se apoiam mutuamente e cada uma delas está além da dúvida razoável para o sujeito, então é evidente para o sujeito que ele percebe algo que é F.

De acordo com a tese internalista defendida por Chisholm, o agente conhecedor tem a obrigação de cumprir seus deveres enquanto ser racional, os quais se resumem a permanentemente tentar alcançar a excelência epistêmica em suas atividades cognitivas cotidianas. Se esse agente se encontra numa situação na qual os critérios acima dispostos são realizados convenientemente, então é seu dever assentir com a crença segundo a qual algo é F. 

E, cumprindo dessa maneira sua obrigação enquanto um ser consciente e racional, o agente está totalmente justificado em sua crença e esta detém um status epistêmico positivo, ou seja, é conhecimento legítimo.

Suponha-se, entretanto, que um agente conhecedor esteja sob efeito da ilusão criada por um demônio malévolo ou que tenha sofrido um acidente que lesionou seu cérebro. Em seguida acrescente-se que o efeito desse feitiço ou dessa lesão é fazer com que quando o agente ouve distintamente algo que lhe parece um sino de igreja tenha a irresistível tendência ou impulso para acreditar que algo dessa natureza lhe apareceu e que esse algo é laranja. 

O sujeito em questão não sabe de sua condição de enfeitiçado por um demônio ou de lesionado cerebral e é um investigador consciente e responsável que tenta permanentemente realizar com acuidade seus deveres epistêmicos. Além disso, suponha-se que todos ao seu redor sofram da mesma condição. A pergunta que se impõe obviamente é se realmente o sujeito conhecedor tem conhecimento.

O exemplo descrito, em suas linhas gerais, é da autoria de Alvin Plantinga e intenta mostrar dois fatores importantes. O primeiro deles é que, consoante com a tradição internalista, Chisholm diria que o sujeito em questão tem sim conhecimento legítimo. 

As condições adversas às quais o agente está submetido são por ele totalmente desconhecidas e, por isso, não influenciam em seu desempenho como conhecedor. Nada no comportamento do sujeito indica leviandade ou displicência com relação a seus deveres enquanto ser racional. Ele fez tudo corretamente e em concordância com aquilo que lhe era disponível no momento. 

O segundo fator aponta para o que Plantinga supõe ser a fragilidade dessa perspectiva teórica. Embora não se possa dizer que, em termos internalistas, o sujeito não esteja plenamente justificado a crer naquilo em que crê, intuitivamente parece que algo não se encaixa nesse quadro. Afinal, sabemos que ele sofre de uma condição que, apesar de ignorada, faz com que suas faculdades funcionem de uma forma não ordinária e que isso leva a conclusões falsas. 

Ou seja, efetivamente aquilo a que ele chega não tem relação com o real. Sob essa ótica privilegiada, a do leitor que sabe da ilusão a que o sujeito está submetido, pode-se dizer que não há conhecimento efetivo. Para Plantinga, isso seria um indício forte da insuficiência das teorias internalistas.

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