domingo, 8 de dezembro de 2013

Philip K. Dick: ilusão e realidade em "O Homem do Castelo Alto"



"Sou um filósofo que faz ficção, não um romancista; minha capacidade de escrever histórias e romances é empregada como um meio para formular a minha percepção. O núcleo da minha escrita não é a arte, mas a verdade."

PHILIP K. DICK

"O Tao que pode ser descrito
 Não é o Tao eterno.
 O nome que pode ser dito
 Não é o nome eterno."

TAO TE CHING, I


É fato conhecido que o escritor americano de ficção científica Phillip K. Dick tem no questionamento da natureza da realidade o tema central de sua literatura. Em seus contos e romances os personagens são frequentemente postos diante de situações que os fazem questionar a realidade à sua volta e mesmo sua própria identidade como indivíduos.

No seu repertório de personagens figuram robôs que pensam ser humanos, robôs que exteriormente são indistinguíveis de humanos, homens cuja vida inteira foi criada artificialmente por meio de implantes de memória, mutantes dotados da capacidade de prever crimes antes que eles aconteçam e outras situações inusitadas que frequentemente colocam sob suspeita o senso da realidade objetiva.

Dick tinha formação filosófica e é evidente que a questão sobre o real se apresenta em sua obra sob a influência de autores dessa tradição. Perguntar-se sobre o que é o real, sobre o que há de fato sob o véu cambiante das aparências sensíveis é parte constituinte da filosofia desde seus primórdios.

O exemplo mais fácil e evidente é o da caverna de Platão, onde alguns infelizes vivem atados desde a infância diante de um muro de pedra onde podem assistir as sombras dos seres que passam na frente da caverna e, por jamais contemplarem o mundo exterior, consideram aquele mundo de sombras como a própria realidade. Platão considerava este mundo cambiante da experiência cotidiana uma cópia imperfeita que participava em certo grau da realidade imutável das Idéias. 

Na aurora da modernidade, a filosofia de René Descartes se insurge contra o realismo empirista de Aristóteles - para quem a experiência sensível é o dado evidente do qual deve partir todo o conhecimento científico - e, retomando temas do platonismo cristão de Agostinho e Anselmo, proclama a incerteza e dubitabilidade da experiência sensível e defende a busca por um conhecimento claro e distinto, totalmente apartado dos sentidos.

Segundo o método utilizado por Descartes nas suas famosas Meditações, as idéias claras e distintas serão aquelas cuja certeza resistirá a cenários céticos cada vez mais abrangentes. Assim, a primeira idéia clara e distinta - a certeza inabalável da existência do eu pensante - emerge dos escombros da negação metódica de toda evidência sensível e da postulação da hipótese hiperbólica de um gênio maligno que nos engana mesmo quando estamos certos da validade das relações matemático-geométricas.

A consequência é que aquilo que o meditante sabe com certeza indubitável é que é um ser pensante, puro pensamento, e, por conseguinte, tudo o mais, o mundo externo e seu próprio corpo, não têm mais nenhum caráter de evidência. Assim, ao contrário do que se afirmava na escolástica aristotélica, a primeira evidência não era mais o ser do mundo, que há mundo, mas  a existência deste deveria ser justificada pelo sujeito pensante a partir de razões indubitáveis. Mas, se tudo o que sei com certeza apodítica é que existo como ente pensante e todo resto pode bem não existir, como escapar do solipsismo?

Posso então estar vivendo uma ilusão na qual tudo o que creio ser verdadeiro é, na realidade, falso? Contudo, se sei que erro, sei também que acerto. Não posso saber que dei uma resposta errada sem saber qual a resposta certa ou, pelo menos, saber algo sobre o que deveria ser a resposta verdadeira.  O erro é devedor da verdade e, por conseguinte, a pressupõe. Daí que afirmar que tudo é ilusão é afirmar que o próprio critério da verdade e a própria noção da ilusão são ilusórios. Seria possível afirmar com sentido a negação hiperbólica de tudo ?

Não obstante, a questão da existência do mundo externo tornou-se parte integrante da filosofia e influenciou a literatura e diversos outros ramos da cultura. E como foi dito acima, é certo que a literatura de Dick se insere nessa tradição. Um de seus romances mais interessantes, o premiado The Man in the High Castle, de 1962, trata exatamente de uma realidade alternativa na qual o Eixo venceu a segunda guerra e dividiu entre si os EUA e o resto do mundo. 

O falso e a ilusão se apresentam por toda a extensão da trama: o comerciante que quer parecer ser mais do que realmente é, o falsificador que produz pretensas peças históricas em escala industrial, os japoneses que imitam perfeitamente outras culturas e escondem habilmente seus sentimentos e emoções, o judeu que se esconde sob um nome falso para escapar aos nazistas, o agente alemão que chega sob disfarce aos EUA para encontrar-se com um general japonês disfarçado de turista, a mulher que acha que está no controle de sua relação com um jovem caminhoneiro herói de guerra, a trama enganosa que levará o mundo a uma nova guerra mundial, a representação comercial japonesa usada como disfarce de uma operação militar e, por fim, o escritor que descreve em um romance um mundo no qual o Eixo perdeu a guerra.

Em meio a tantas ilusões e disfarces, diversos personagens tentam manter seu senso de orientação e de realidade nesse mundo utilizando-se para isso do I Ching, oráculo milenar chinês. Ao final do livro, é justamente o I Ching que revelará a realidade objetiva que mostrará a todos - e também ao leitor - que aquilo que eles tomavam como certo e verdadeiro era também uma ilusão.

A realidade a que todos se acostumaram a considerar como efetiva mostra-se falsa. Contudo, ao mesmo tempo, em um só golpe, a verdade é revelada. Conhece-se o erro ao se conhecer a verdade. Em outros termos, é o Tao que revela a realidade. É somente à luz do absoluto que se conhece o relativo. 

Não foi por um apelo ao ilimitado, cuja idéia não poderia ter sido produzida por um ente pensante passível de engano e, portanto, limitado, que Descartes pretendeu sair do solipsismo do eu e, por fim, alcançar a certeza da realidade e da natureza do mundo externo?

O ilimitado surge como a fonte do limitado e que, por isso, pode revelar a real natureza deste. Só se conhece aquilo que se ultrapassa, aquilo do qual se conhecem os limites que o circunscrevem. Como uma estrada na qual se caminha e da qual só se divisa a extensão quando os olhos alcançam seu termo. Daí que a resposta para a realidade se encontra naquilo que o I Ching revela, naquilo que se encontra no eixo vertical da realidade ultrapassando todas as limitações, mutações e relatividades da horizontalidade.

Dessa forma, o livro de Dick parece indicar onde a realidade repousa e sob a luz do quê ela pode ser divisada. Sub specie aeternitatis.

2 comentários:

Léo Camilo disse...

Já viu esse vídeo?

https://www.youtube.com/watch?v=5SVXnlkJqWI

Bizarro, haha.

Immanuel Rosenkreuz disse...

Olá!

Sim, já o assisti. O Philip Dick teve umas experiências "místicas" e no final da vida começou a professar visões excêntricas sobre a realidade.

Realmente bizarro.