quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Descartes, idéias e existência de Deus


"E, portanto, ainda que tudo o que concluí nas meditações precedentes não tivesse nada de verdadeiro, a existência de Deus deve se apresentar a meu espírito ao menos tão certa quanto estimei até aqui todas as verdades das matemáticas, as quais não se referem a não ser a números e a figuras."

RENÉ DESCARTES, Meditações de Filosofia Primeira, quinta meditação

Na quinta meditação de suas Meditações de Filosofia Primeira, René Descartes, já de posse do critério da verdade e dos meios de evitar o erro, passa a considerar o que ele sabe clara e distintamente de uma série de idéias que tem na mente.

Ora, ainda que se possa afirmar, seguindo o método exposto nessas meditações, que tudo o que se conhece clara e distintamente de algo é indubitável e que necessariamente corresponde à verdade desse algo sobre o qual se pensa, ainda não é certo que existam coisas fora da res cogitans. Entretanto, as idéias apresentam certas propriedades importantes sobre as quais Descartes irá se debruçar. 

Quando penso em um triângulo, tenho a idéia clara e distinta desse objeto - polígono de três lados - e isso que sei dele é indubitável. Essa certeza e distinção, contudo, não me garantem que existam triângulos fora de mim, mas, existindo ou não externamente, conheço sua natureza, ainda que na qualidade de um objeto meramente possível.

Evidentemente, está sob meu controle pensar ou não a idéia de um triângulo. Posso passar a vida inteira sem nunca pensá-la, da mesma forma que muitos passam a vida toda sem jamais pensar na idéia de um quiliógono. Mas há um detalhe importante que Descartes enfatiza: embora possamos ou não pensar em um triângulo, no momento em que o pensamos e entendemos clara e distintamente sua idéia, não podemos nos permitir atribuir a ele nada que entre em contradição com sua definição ou mesmo apresentar um outro conceito de triângulo que lhe seja incompatível.

Isso significa que a natureza do triângulo não é algo decidido pelos homens ou mera convenção de acordo com os gostos dos geômetras. O triângulo é o que é porque jamais pode ser outra coisa. Sua natureza é absolutamente imutável e eterna. A vontade humana não pode inventar as naturezas dos objetos geométricos. Elas são o que são e independem do homem. Ou seja, conhecer clara e distintamente é conhecer a natureza eterna e imutável de algo.

Descartes continua e trata de um outro aspecto da independência da natureza das idéias. No momento em que penso em um triângulo, conheço sua estrutura formal, sua natureza. "Triângulo" é um polígono de três lados. Mas isso não é tudo que dele posso saber. Ele tem propriedades que só descubro posteriormente. 

Por exemplo, há triângulos equiláteros, isósceles e escalenos. Evidentemente, essas subdivisões do triângulo não estão na sua definição geral, contudo procedem diretamente da sua natureza. O teorema de Pitágoras. não está na definição geral do triângulo, mas só é possível por causa da natureza de um tipo específico de triângulo.

Quando concebo a idéia de uma sequência crescente de números, não está contido na compreensão desse conceito a propriedade dos números de serem pares ou ímpares. Ou mesmo a propriedade de alguns números serem primos. Só descubro isso depois. Às vezes, séculos depois. Todavia, quando descubro essas propriedades, descubro também que elas se seguem da natureza dos números, que elas não poderiam ser o que são se os números fossem diferentes do que são. 

Posso demonstrar que essas propriedades se seguem da natureza dessas idéias. Daí que tenho certeza clara e distinta delas, embora só as tenha conhecido depois de conhecer clara e distintamente a idéia. Se isso é verdade das idéias matemático-geométricas, por qual motivo não seria  verdade da idéia de Deus?

Descartes deixa claro na terceira meditação que considera Deus a idéia clara e distinta da qual depende todo o edifício da ciência, já que é Sua perfeição que garante a cogência das relações matemático-geométricas. Sua existência foi provada por um apelo ao princípio de causalidade aplicado à origem das idéias. 

Tendo a idéia clara e distinta de Deus, posso fazer com ela o mesmo que faço com a idéia de triângulo, e buscar entender suas propriedades necessárias. Se sei clara e distintamente que Deus é o ser soberanamente perfeito e ilimitado e que tudo o que posso demonstrar clara e distintamente de algo pertence necessariamente a esse algo, então não posso provar por aí a existência de Deus? 

Um ser perfeito e ilimitado não pode estar privado da existência, pois tal seria uma limitação e  uma imperfeição. Atribuir a Ele uma imperfeição é uma contradição tão irracional quanto atribuir quatro lados a um triângulo. Então, necessariamente Ele existe.

Essa verdade, ensina Descartes, pode não estar inteiramente manifesta na definição de Deus, mas se segue demonstrativamente dela.  Da mesma forma, o teorema de Pitágoras está implicado na natureza do triângulo retângulo, embora não esteja manifesto na definição deste.

A dificuldade em se aceitar essa demonstração, prossegue o filósofo e matemático francês, provém do fato de que, em todas as outras idéias, estamos acostumados a considerar a sua essência como realmente distinta de sua existência. Conhecemos a essência do triângulo, mas disso não se segue que ele necessariamente existe. Enquanto idéia, é apenas um possível. 

Tudo o que é concebido clara e distintamente pode ser feito por Deus, isto é, pode vir a existir. Deus é o único cuja concepção clara e distinta exige necessariamente sua existência. O mero pensamento de algo não implica que esse algo deva necessariamente existir.  Deus é a única exceção dessa regra. Conceber Deus como não existente seria o mesmo que conceber a idéia de uma montanha sem a idéia de um vale. Ou um triângulo quadrado.

Que não se pense também que a existência de Deus esteja atrelada a meu ato de pensar clara e distintamente Sua idéia. Ainda que jamais houvesse pensado em Deus isso não teria a menor influência na necessidade de Sua existência. Da mesma forma que o fato de nunca haver pensado em um quiliógono não muda em nada a sua natureza e nenhuma de suas propriedades. 

A questão é somente que, assim como ao conceber clara e distintamente a idéia de um triângulo não posso negar nenhum atributo ou propriedade que dele se siga necessariamente, também não posso negar a existência de Deus quando reconheço que ela se segue necessariamente de sua idéia clara e distinta. E, como dito na quarta meditação, a vontade livre só deve dar seu assentimento àquilo que o entendimento mostra ser claro e distinto e, portanto, indubitável.

Essa prova parece a Descartes tão certa e tão insofismável que ela pode sustentar-se independentemente de tudo o que foi dito sobre Deus nas meditações anteriores. Basta que reconheçamos em nós a presença da idéia clara e distinta de Deus para que sejamos obrigados - sob pena de contradição - a afirmar a Sua real existência extra mentis.

Obviamente Descartes apresenta aqui sua versão do argumento ontológico de Santo Anselmo. Tudo o que é feito é a consideração a priori do conteúdo do conceito, da idéia, para daí retirar suas implicações necessárias. No caso de Deus, a consideração atenta de seu conceito conduziria à afirmação de Sua existência necessária. 

Cumpre notar que o filósofo francês - ao contrário do estereótipo popular- utiliza, em suas Meditações diversos argumentos e princípios retirados da Escolástica que combate. Seus contemporâneos e comentadores posteriores apontaram para a presença nas Meditações de teses de Agostinho (cogito), de Anselmo de Canterbury (argumento ontológico) e de Tomás de Aquino (argumento da causalidade eficiente transposto da realidade externa para a origem das idéias na mente).

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