terça-feira, 29 de outubro de 2013

Problema de Gettier, Platão e bifurcação epistêmica



Como visto no post http://oleniski.blogspot.com.br/2013/02/curta-introducao-ao-problema-de-gettier.html, o coração do problema de Gettier parece se encontrar em uma espécie de “bifurcação epistêmica” que se estabelece no processo do conhecimento tomado como crença verdadeira justificada. 

Quando o sujeito S quer saber algo, naturalmente ele considera os métodos reconhecidamente mais apropriados para alcançar seu objetivo e escolhe o método confiável M. Ele está sendo epistemicamente responsável em sua escolha. S então recolhe as evidências e chega a uma conclusão C que lhe parece a certa. Acrescente-se o fato de que C é realmente o caso. S tem uma conclusão C verdadeira obtida por um método M confiável que justifica sua pretensão de conhecimento. 

É justamente aí, na justificação, que a “bifurcação epistêmica” característica dos casos-Gettier acontece. O método M é confiável porque estabelece geralmente uma ligação correta entre as evidências de que S dispõe e a conclusão C. Mas especificamente no caso de S, não é a usual confiabilidade de M que lhe faculta chegar a C. É uma coincidência que torna C verdadeira.

A confiabilidade de M não se aplica então ao caso de S e S, embora responsável epistemicamente, não tem conhecimento de C. Há uma bifurcação entre aquilo que usualmente justifica o conhecimento e que justifica S a crer que C e aquilo que realmente acontece a despeito do conhecimento de S. Essa “bifurcação epistêmica” destrói as pretensões de conhecimento de uma conclusão verdadeira obtida por métodos seguros.

Em outros termos, o que o sujeito S tem “direito” de sustentar não coincide com aquilo que ele está justificado a sustentar. Robert Fogelin resume o problema nos seguintes termos:

(a) Dado um certo conjunto de informações, nosso sujeito S, usando algum procedimento padrão, justificadamente vem a crer que uma proposição, h, é verdadeira.
(b) Nós temos um conjunto de informações mais amplo do que S possui, e em virtude dessas informações vemos que as bases de S, embora responsavelmente invocadas, não justificam h.


Como mostrado acima, os casos-Gettier se baseiam numa diferença entre o que o sujeito S na situação concreta sabe e o que um pretendido observador (no caso aquele que lê ou testemunha um caso-Gettier) sabe dessa mesma situação. O “observador’ tem informações que S não tem e por isso pode avaliar corretamente os fatos como eles exatamente ocorrem e, por fim, julgar as pretensões de conhecimento de S.

Os casos-Gettier são casos onde se nega conhecimento a um conhecedor que não tem todos os dados à sua disposição. Por isso mesmo, não estão em jogo a eficiência ou a responsabilidade de S em recolher os dados disponíveis nem sua capacidade de inferência dedutiva ou indutiva. O sujeito S é perfeitamente honesto, responsável e capaz em suas atividades acadêmicas. Nenhuma deficiência moral ou estrutural o atinge e a negação de conhecimento de S não é um julgamento de suas aptidões.

Somente o “observador” sabe da infeliz coincidência da qual S foi vítima. O que S está justificado a crer a partir do que sabe não coincide com o que, na realidade, acontece e pressupõe-se que se S soubesse o que o “observador” sabe, ele “saberia” que não tem conhecimento. O julgamento incide sobre a situação concreta, sobre a realidade a que S não tem acesso e que torna sua pretensão ao conhecimento injusta, mas não desonesta ou inepta.

O leitor de um caso-Gettier é convidado a testemunhar, com uma “visão a partir dos olhos de Deus”, as atividades epistêmicas de um conhecedor que é diligente, porém desafortunado. E é dessa posição privilegiada que o “observador” pode perceber que S, com os dados que dispõe, está justificado em crer que C é o caso, mas que, ao mesmo tempo, S não está justificado em crer em C. Como diria Aristóteles, ele “sabe em um sentido, mas não sabe em outro”.

De fato, os sentidos de “saber” parecem ser diferentes. O sujeito S sabe, pois sua conclusão é verdadeira e foi obtida por meio de um método confiável e, ao mesmo tempo, não sabe, pois sua conclusão verdadeira não é fruto das virtudes epistêmicas do método, mas de uma feliz coincidência. Esses dois sentidos de “saber” ou de “estar justificado” estão aparentemente implicados na estrutura dos casos-Gettier.

Entretanto, é necessário que se diga, em nenhum ponto de seu artigo original Gettier fornece qualquer esclarecimento sobre sua interpretação do conceito de “justificação”. Nem mesmo esclarece os sentidos de “verdade” e “crença” usados em seu texto. A alusão que Gettier faz ao Teeteto, poderia talvez indicar uma pista sobre suas concepções acerca da justificação. Mas esse parece não ser o caso.

Platão é citado numa nota ao final do artigo Is Justified True Belief Knowledge? na qual Gettier afirma que “[...] parece ter considerado uma definição como essa em Teeteto 201 e talvez aceitado uma em Mênon 98.”. A definição a que Gettier se refere é aquela segundo a qual S está justificado em crer que P se e somente se

1) P é verdadeira,
2) S crê que P,
3) S está justificado em crer que P.

Mark Kaplan contesta a possibilidade de haver alguma ligação entre o problema posto nessas passagens e a temática tratada por Gettier. Para ele, Platão não se referia a um conhecimento proposicional tal como o implicado no problema de Gettier. A passagem do Teeteto é a seguinte:

"Teeteto: essa é uma distinção (entre opinião verdadeira e conhecimento), Sócrates, a qual eu ouvi sendo feita por alguém, mas o esqueci. Ele disse que opinião verdadeira, combinada com razão, era conhecimento, mas que opinião sem nenhuma razão estava fora da esfera do conhecimento; e que as coisas das quais não há definição racional não são cognoscíveis – tal como a expressão singular que ele usou - e que as coisas as quais têm uma razão ou uma explicação são cognoscíveis."

Kaplan aponta para o fato de que Platão realmente faz Teeteto formular uma definição em que conhecimento é opinião verdadeira adicionada a uma “razão”. Na sequência do diálogo, Platão sugere três propostas para o significado de “razão” e as rejeita uma após a outra. Na primeira delas (206d), “razão” é “tornar o pensamento de alguém evidente por meio do discurso, usando expressões e nomes” e é também (208c) “um tipo de imagem do pensamento no discurso”. Na segunda proposta (208c), “razão” é “examinar cuidadosamente a coisa, elemento por elemento, até que se tenha examinado o todo” e na terceira (208c) é “identificar uma marca que diferencie a coisa de tudo o mais”.

A natureza do questionamento platônico no texto citado do Teeteto, segundo Kaplan, não tem nenhuma relação com o conhecimento proposicional que está em jogo em Gettier. As propostas que Platão oferece como possíveis definições de “razão” estariam muito longe do que se esperaria de um filósofo que quisesse determinar a justificação adequada para a crença em uma determinada proposição ou o que é saber que uma proposição é verdadeira. Platão parece antes querer dizer o que significa conhecer um objeto não-proposicional como uma carroça (207a), isto é, o que é necessário para saber como identificar e saber o que é uma carroça.

O segundo texto platônico citado na nota final do artigo de Edmund Gettier é Mênon 98. O trecho é o que segue:

"Sócrates: (...) Agora, eis uma ilustração da natureza das opiniões verdadeiras: enquanto elas permanecem conosco, elas são belas e frutíferas, mas elas fogem da alma humana e não habitam mais lá, e por isso não são de muito valor até que sejam atadas pela ligadura da causa; e essa amarra delas, amigo Mênon, é a recordação, como nós concordamos em chamá-la. Quando estão assim ligadas elas têm, em primeiro lugar, a natureza de conhecimento; e, em segundo lugar, elas são permanentes. E é por isso que o conhecimento é mais honroso e excelente que a opinião verdadeira, pois é ligado por uma cadeia."


Kaplan mais uma vez rejeita a pretensão de Gettier de que no trecho acima, Platão estivesse de alguma forma assumindo uma definição proposicional de conhecimento. Na verdade, argumenta Kaplan, o centro da questão é a noção de “recordação” que é invocada para explicar como alguém pode reconhecer e investigar a natureza de objetos abstratos como a virtude. Nesse caso, o conhecimento não seria nada além do que uma recordação de um saber acerca de objetos abstratos que se possui de forma inata e que é, por isso mesmo, estável.

Platão, de fato, não está tratando da verdade de uma proposição do tipo “S é P” e nem fornecendo critérios para se averiguar quando dela se pode obter conhecimento justificado. Dessa forma, parece que Kaplan está correto e nenhuma identificação entre a ideia de conhecimento como crença verdadeira justificada apresentada por Gettier e as “razões”, “explicações” ou “causas” aludidas por Platão pode ser feita. O máximo que se pode dizer é que Gettier faz, nas notas finais de seu artigo, uma tímida tentativa de estabelecer um vínculo histórico entre a visão do conhecimento que ele pretende questionar e a filosofia platônica, com o objetivo de ressaltar a importância de sua posição.

Retornando ao problema da "bifurcação", embora o sujeito S esteja “justificado” em crer em sua conclusão, ele não está justificado em crer em sua conclusão. De novo, dito de uma forma à Aristóteles, de um modo qualificado S sabe e de um modo não qualificado ele não sabe. A partir das informações de que dispõe e de seu desempenho epistemicamente responsável, S está justificado. A partir do que de fato acontece, S não está justificado.

Robert Fogelin esclarece os dois sentidos implicados nos casos-Gettier mostrando que há uma diferença entre possuir bases adequadas para a justificação de uma crença e a capacidade dessas mesmas bases para estabelecer a conclusão a que se chegou. 

O primeiro sentido de justificação implicado nos exemplos fornecidos por Gettier em seu artigo original é a responsabilidade epistêmica impecável do sujeito S em recolher dados e tirar conclusões a partir de um método M confiável. Como Fogelin aponta, nos exemplos originais de Gettier, Smith usa métodos confiáveis para chegar às suas conclusões. Ele usa inferências indutivas e não métodos suspeitos como a consulta dos astros ou mesmo as entranhas dos pássaros. 

Entretanto, o desempenho epistêmico inegavelmente responsável de Smith não é suficiente para que se possa atribuir a ele conhecimento de sua conclusão. Se Smith tivesse recorrido aos augúrios de um oráculo baseado na direção dos ventos, decerto não se atribuiria a ele conhecimento e não haveria um problema-Gettier. 

É justamente porque Smith usa um método confiável que o problema se coloca. O leitor e “observador” do relato das desventuras epistêmicas de Smith sabe que ele responsavelmente faz uso de um método confiável, mas sabe também que por um acaso infeliz, as bases que ele utiliza se tornam inadequadas para estabelecer sua conclusão.

O que aflige a inferência de Smith não é um erro, mas uma infelicidade que está além do seu conhecimento dos dados da situação concreta em que se encontra. O método tem um campo, por assim dizer, “ideal” de atuação no qual ele é confiável. Seu desempenho pode ser máximo ou mínimo dependendo do contexto em que esteja inserido. A infelicidade de Smith é que o contexto era desfavorável a seu empreendimento epistêmico. Um acaso totalmente imprevisível interferiu em seu método e o tornou ineficiente.

Uma coincidência não pode ser uma base adequada para estabelecer epistemologicamente uma conclusão, logo, a confiabilidade do método utilizado por Smith estava confutada. Como Fogelin salienta, a análise dos casos-Gettier revela que neles, a terceira condição para o conhecimento – a justificação – apresenta-se sob um duplo aspecto onde a responsabilidade epistêmica não é sempre suficiente para a confiabilidade das conclusões. Tomando-se a definição de conhecimento na qual se afirma que S conhece P se e somente se:

(I) P é verdadeiro,
(II) S crê que P é verdadeiro,
(III) S está justificado em crer que P é verdadeiro,

a exigência (III) de justificação pode então ser dividida em duas cláusulas:

(IIIp) S justificavelmente crê que P,
(IIIb) As bases de S estabelecem a verdade de P.


A cláusula (IIIp) trata somente da performance ou responsabilidade epistêmica do sujeito S. Ela exige que os dados relevantes disponíveis numa situação de conhecimento sejam diligentemente recolhidos e analisados por S através de um método reconhecidamente válido e confiável. 

A cláusula (IIIb), por sua vez, exige que as bases que S usa para inferir que a proposição P é verdadeira sejam realmente adequadas para isso. Essas cláusulas, como aponta Fogelin, estão implicadas em todos os casos-Gettier, sejam aqueles do artigo original de 1963 ou os criados posteriormente por outros filósofos.

A partir dessas características aqui sublinhadas pode-se dizer que o problema de Gettier é um problema eminentemente teórico. Suas questões giram em torno da atribuição de conhecimento a um sujeito plenamente justificado pelo uso correto de métodos confiáveis em uma empresa cognitiva. Em termos pragmáticos, para todos os fins práticos, não há um problema de Gettier. Se o que importa é a eficiência e os resultados, o fato de uma coincidência gerar por vezes uma conclusão verdadeira, como acontece nos casos-Gettier, parece não poder produzir nenhuma grave consequência prática.

domingo, 27 de outubro de 2013

Ibn Tufayl, unidade, conhecimento e religião I




"Quero fazer-te entrar nos caminhos que entrei antes de ti, fazer-te nadar no mar que já atravessei para que chegues aonde eu mesmo cheguei, que vejas o que vi, que constates por ti mesmo tudo o que constatei e que possas dispensar a sujeição do teu conhecimento ao meu."

IBN TUFAYL, O Filósofo Autodidata, Preâmbulo, p. 44 (trad. Isabel Loureiro)


O livro do filósofo islâmico andaluz Ibn Tufayl (1105-1185) O Filósofo Autodidata é mais do que a história do aprendizado autodidata, mas um discurso iniciático sobre o sentido profundo da religião revelada e sua função entre os homens. O objetivo do livro, desde sua apresentação, é guiar o leitor por um caminho que, se não conduz por si mesmo à união perfeita com o princípio último, pelo menos demonstra suas etapas preliminares e necessárias.

O recurso ao jovem isolado em uma ilha tem a função clara de tornar o valor daquilo que se dirá dali por diante independente de toda e qualquer circunstância e limitação. Algo como uma tentativa de mostrar como, em si mesma, a verdade não tem origem.

Ibn Tufayl indica duas origens para Hayy Ibn Yaqzan (O Vivo, filho do Desperto). Em uma delas, ele é abandonado por sua mãe em uma arca e o mar o carrega até uma ilha da Índia situada abaixo do Equador. Na outra ele nasce nessa mesma ilha, só que por geração espontânea. Este segundo relato parece ter, além daquela acima assinalada, uma segunda função: fazer intervir na história o reino dos seres inanimados, já que Hayy nasce de elementos não-vivos, como a argila. Se há uma gradação ascendente no relato, ele ficaria incompleto sem referência ao mundo material inanimado.

Essa interpretação parece se confirmar na medida em que, no segundo relato, encontra-se um discurso sobre a capacidade dos entes de refletirem Deus. Como o Sol, Deus não cessa de emanar sua luz, mas cada ser só a recebe dentro de sua própria medida. Esse é um tema recorrente no neoplatonismo antigo e medieval. As coisas participam do Uno segundo sua natureza.

Há corpos transparentes, como o ar, que não refletem a luz do Sol. Outros corpos, opacos, refletem-no parcialmente, revelando suas cores. Os corpos opacos polidos refletem-no melhor e, dentre estes, os espelhos adquirem sua forma completamente. Os primeiros são os seres inanimados, as plantas são os corpos opacos não-polidos, os animais são os corpos polidos e os homens são os espelhos, pois além de refletir os raios do Sol, adquirem sua imagem.

A partir daí a narrativa se unifica e começa o desenvolvimento do menino. Sendo um humano em um local onde não existiam outros humanos, Hayy é adotado por uma gazela, símbolo claro das características mais básicas da vida: nutrição e crescimento. A mãe gazela o alimenta e o protege contra todos os perigos. 

Nos primeiros sete anos - a história inteira é contada em septênios* - Hayy aprende aos poucos que não é igual à sua mãe adotiva e que não dispõe das proteções naturais dos outros animais. Percebe também que pode fabricar esses elementos, fazendo para si uma nova proteção para seu corpo com a pele de animais mortos e uma lança para defender-se dos predadores.

No segundo septênio, Hayy vê sua mãe morrer e empreende uma investigação meticulosa sobre a vida e encontra, por meio de uma autópsia, o espírito animal que dava a vida à sua mãe e aos animais que estudava. Volta-se à técnica, fabricando roupas melhores, construindo habitação adequada e domesticando os animais. Estando suas necessidades corporais imediatas satisfeitas e garantidas pela técnica - pela produção de utensílios e instrumentos - Hayy está livre para iniciar suas pesquisas no campo teórico-científico.

Ora, entrando no terceiro septênio, Hayy se encontra confuso diante da multiplicidade dos animais e dos órgãos de cada animal. Considerando, porém, que em si mesmo, havia diversos órgãos sem que com isso se desfizesse sua unidade e que os seres que via tinham aspectos comuns e aspectos diferentes, descobriu que poderia compreendê-los se conseguisse reuni-los sob uma unidade subjacente, da mesma forma que a água permanece a mesma em não importa quantas jarras.

Assim, viu que os animais e plantas têm em comum a nutrição e o crescimento, mas que os animais, além dessas características, têm sensibilidade, locomoção e inteligência. Contudo, todos os entes vivos têm em comum com os seres inanimados a extensão, o comprimento, a largura, a profundidade, o quente e o frio, daí que todos são uma só coisa sob o aspecto corporal.

Viu então que os seres do mundo têm em comum a corporeidade, mas que, além disso, os seres vivos são animados. O que diferencia estes seres dos meros corpos é a nutrição e o crescimento e, dentro desse grupo, o que diferencia as plantas dos animais é que estes têm sensibilidade, locomoção e inteligência. Mas a que se devem essas diferenças? Ao fato de que cada tipo de ser tem um tipo diverso de forma.

O tema que se apresenta aqui é caro ao Islã: a unidade. Allah é único e o caminho que a Ele conduz é caracterizado pela unidade. O conhecimento teórico acontece quando se consegue, após a observação da multiplicidade dos entes do mundo, encontrar enfim a unidade dentro da multiplicidade. E esse processo abrirá as portas, ao fim,  para a união perfeita com o Supremo na qual toda distinção é obliterada.

Nesse momento, Hayy percebe que todos os seres desse mundo são corruptíveis e que vêm a ser e depois deixam de ser. E cada ser é produzido por uma causa eficiente. Apresentou-se-lhe aos poucos a ideia de um criador das coisas. Por esse motivo, voltou-se aos entes permanentes - os corpos celestes - em busca dessa causa eficiente última. Era o fim do quarto septênio.

Estudando os astros, convenceu-se de seu caráter finito, uma vez que a idéia de um corpo infinito é contraditória. Convenceu-se também que tudo está contido sob a esfera celeste e que o Cosmos é como uma grande unidade, um corpo como o de um animal, no qual seus sentidos são os corpos celestes, as esferas nas quais estão fixos tais entes são os seus membros e os seus órgãos, e o mundo sublunar, da geração e da corrupção, é como o seu ventre. O macrocosmo é refletido no microcosmo e vice-versa. De novo, o tema da unidade.

Mas esse Cosmos teve início? Se teve, veio do nada. Ora, não poderia vir do nada por si mesmo, logo é necessário um produtor que o anteceda e o faça vir a ser. Contudo, se esse autor fosse corporal, ele faria parte do mundo, seria limitado e teria sido produzido. E se foi produzido por outro corpo, o problema se renovaria. O autor do mundo não pode então ser um corpo e, por conseguinte, ele deve ser imaterial e não perceptível pelos sentidos.

E se o Cosmos for eterno? Se for assim, o movimento é eterno. Mas se é assim e se todo movimento se deve a um motor, como podem corpos limitados moverem infinitamente? Daí que um movimento eterno depende de um motor eterno. Assim ambas as teses apontam para o Autor Infinito do Cosmos.

Tudo o que há, enquanto ente limitado e contingente, só pode ser graças à essa Causa Eficiente, o único incausado e necessário. Daí que o Mundo é posterior ontologicamente a Deus - posto que d'Ele depende para ser -, mas não cronologicamente. A criação se dá fora do tempo.


Nos capítulos seguintes, Hayy se aprofunda no conhecimento do Ser Necessário e, em uma união íntima com o Eterno, ultrapassa o conhecimento meramente racional e adentra no terreno daquilo que não pode ser expresso ou explicado nos termos dos homens comuns.


...

* "(Foi Allah) quem criou sete céus um sobre o outro". (Qur'an, Surah Al-Mulk verso 3)