sexta-feira, 10 de maio de 2013

Anselmo, platonismo medieval e o argumento ontológico.



"Então comecei a pensar comigo mesmo se não seria  possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que Ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons." 

ANSELMO DE CANTERBURY, Proslogion


Anselmo pretende, no capítulo II de seu Proslogion fornecer um argumento tal que demonstre racionalmente a existência de Deus sem auxílio da Revelação bíblica. Como um seguidor de Agostinho, o bispo de Canterbury concebe que o valor da filosofia é o de auxílio para a compreensão do dado da fé.

Os intelectuais do século XI tinham em suas mãos somente algumas obras do Órganon de Aristóteles e, por isso, concebiam, em sua maioria, a filosofia a partir de categorias eminentemente lógico-formais. É a época dos grandes lógicos, como Roscellin e Pedro Abelardo. Não é à toa que Anselmo irá construir um argumento totalmente a priori, ou seja, independente de qualquer apoio ou referência à experiência.

De fato, no argumento ontológico, é pela consideração do significado do conceito que se chegará, segundo Anselmo, a conhecer a necessidade da existência do conceituado. 

Anselmo escreve no Proêmio que, instado por seus irmãos monges, escreve seu tratado com o fim de demonstrar ser possível, por meio de um argumento puramente racional, provar a existência de Deus.  Ele afirma haver redigido seu tratado para aquele que se esforça para compreender aquilo em que acredita. Fides quaerens intellectum. A fé em busca de compreensão.

Não se trata, decerto, de fundar a fé na razão, ou seja, buscar bases estritamente racionais para aquilo em que se crê, mas, antes, tentar compreender com a razão, tanto quanto é possível ao homem, os mistérios da Revelação.

"Com efeito,  não busco compreender para crer, mas crer para compreender.", assevera o bispo de Canterbury ao final do primeiro capítulo. Compreender para crer seria o caminho natural próprio das coisas às quais o homem tem acesso por vias naturais. Mas nas coisas divinas, é preciso antes crer, receber a Revelação e, só então, buscar compreender seu sentido  na medida do possível.

Assim, no capítulo II, Anselmo enuncia a crença comum de que Deus é o ser do qual não se pode pensar nada maior. Ora, é fato que há quem não creia na Sua existência. A Bíblia mesmo o afirma, no salmo 13, que diz: "o insensato diz em seu coração: não há Deus."

É possível , pois, não crer na existência de Deus. Mas, será mesmo assim? Afirmar que Deus não existe é afirmar que Deus só existe como mera idéia ou conceito na mente de quem o afirma ou o nega. É possível, por exemplo, compreender, ter na inteligência, diversos conceitos sem que isso implique que os entes que por eles são significados existam realmente.

É possível, inclusive, compreender um conceito sem saber se aquilo ao qual ele se refere existe de fato extra mentis, fora da mente de quem o concebe. Compreendo o conceito de "unicórnio", mas posso não saber se ele existe ou não.

Todo o argumento de Anselmo está centrado em uma só questão:  o ser do qual não se pode pensar nada maior pode existir somente na mente de quem o afirma ou nega?

Só existem duas respostas possíveis. Ou bem o ser do qual não se pode pensar nada maior existe somente na mente ou bem o ser do qual não se pode pensar nada maior existe também fora da mente. Silogismo disjuntivo simples. A ou B/ não-B/ logo, A. Tertium non datur.

Anselmo pretende mostrar que a primeira opção está errada.  E o faz mostrando que ela é contraditória, logo, absurda. O "ser do qual não se pode pensar nada de maior" não pode existir somente na inteligência de um sujeito qualquer, pois assim ele não seria o ser do qual não se pode pensar nada de maior.

Ora, o que distingue dois seres, quaisquer que eles sejam, é justamente o fato de que um deles tem uma propriedade que falta ao outro. É essa falta que traça a fronteira entre um e outro. Se o ser do qual não se pode pensar nada de maior tiver alguma limitação, algo lhe faltará e, se algo lhe falta, há outro maior que ele e, portanto, ele não é o ser do qual não se pode pensar nada maior.

Não havendo nada maior do que ele, nada - absolutamente nada - o restringe, limita, delimita, contém ou ultrapassa. Nada pode lhe faltar, pois se algo lhe faltasse, pertenceria a outro que seria maior que ele.

Se nada lhe falta, não pode lhe faltar a existência. Não existir é estar privado de existência. O unicórnio não existe porque é privado de existência. Falta-lhe a atualidade de ser real extra mentis.

Se o "ser do qual não se pode pensar nada maior" estiver na mente humana da forma como o unicórnio está, então falta-lhe a existência. Ele está privado de algo. Estando privado, o "ser do qual não se pode pensar nada maior" será limitado. Mas como pode o ser do qual não se pode pensar nada maior ser limitado? Isso seria contraditório.

Não se pode pensar o "ser do qual não se pode pensar nada maior" e, ao mesmo tempo, negar-lhe uma existência extra mentis. Seria tão contraditório quanto definir o homem como "animal racional" e negar, em seguida, que os homens são racionais.

Resta evidente, afirma Anselmo, que o "ser do qual não se pode pensar nada maior" existe verdadeiramente fora da mente de quem o pensa. Logo, a opção que afirmava o contrário disso, é absurda e contraditória.

Em suma, se se compreende o que significa o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior", compreende-se também que, por necessidade lógica, ele deve existir realmente, já que o oposto disso seria contraditório.

Assim sendo, segundo Anselmo, quem nega a existência de Deus, o faz por não haver compreendido em toda a sua extensão o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior."

Mas nem todos se convenceram com a argumentação puramente lógica de Anselmo. Um certo monge chamado Gaunillon, embora de forma um tanto confusa, recusou ao argumento anselmiano o caráter  de apoditicidade que seu autor pretendia ter alcançado.

Afirmava ele que se alguém contasse a ele sobre uma ilha perdida a qual está "repleta de todas as riquezas e delícias e que, apesar de não haver lá nem proprietários nem habitantes supera, em fartura de produtos, todas as terras habitadas pelos homens", ele compreenderia facilmente seu conceito, mas acharia desarrazoado quem afirmasse que não se podia duvidar de sua existência, já que se não existisse, haveria necessariamente uma outra ilha maior do que aquela.

Gaunillon fala de uma ilha perdida cuja riqueza ultrapassa a de todas as terras, mas isso não equivale, como Anselmo aponta, a afirmar o "ser do qual não se pode pensar nada maior". O "ser maior que todas as coisas" - ou a riqueza que ultrapassa a de todas as terras -  não é a mesma coisa que o "ser do qual não se pode pensar nada maior". Este enuncia a impossibilidade de um ser maior, aquele apenas afirma que, factualmente, ele é maior que todas as coisas.

Por conseguinte, se não são enunciados equivalentes, aquilo que é "maior que todas as coisas" não tem a mesma evidência apodítica que tem o "ser do qual não se pode pensar nada maior". Mas quem compreende a apoditicidade do "ser do qual não se pode pensar nada maior", afirma Anselmo, compreende também que esse ser só pode ser entendido como "o único maior entre todas as coisas."

Tomás de Aquino não aceitará o argumento anselmiano e apontará para uma falha que considera crucial: da mera consideração lógica do conceito, não se segue que que o conceituado exista na realidade. Haveria, assim, um salto do lógico ao ontológico.

Ademais, Anselmo é um platônico-agostiniano e concebe o conhecimento a partir da iluminação divina do intelecto que, dessa forma, conhece os inteligíveis. Tal como Agostinho afirmava, por exemplo, no De Magistro. Portanto, o conhecimento se dá na alma, no contato desta com a luz do Mestre Interior. Do conceito à coisa.

Tomás, ao contrário, é um aristotélico. Para ele, o conhecimento se dá a partir dos dados dos sentidos. O conhecimento é um processo empírico-abstrativo, no qual a observação de entes singulares faz nascer a unidade da experiência, pela lembrança e imaginação, sobre a qual, por fim, o intelecto age abstraindo todos os aspectos particulares e toma somente aquilo que é geral, a essência das coisas observadas. Da coisa ao conceito.

Resta evidente, então, que, para Tomás, qualquer prova da existência de Deus deverá ser a posteriori, ou seja, a partir da experiência. É impossível deduzir a existência de algo a partir de seu mero conceito, já que este, na verdade, só se torna inteligível depois de um longo processo abstrativo que inicia nos exemplares concretos dados aos sentidos na observação.

Na apreensão do significado e da validade do argumento ontológico opõem-se se claramente duas teorias sobre o conhecimento humano, duas correntes que, de certa forma, repetem e atualizam a oposição entre platônicos e aristotélicos.

Cumpre lembrar que esse platonismo medieval, de Agostinho e de Anselmo, sobreviverá aos conflitos intelectuais da Idade Média e se renovará, por exemplo, na obra de um dos fundadores da filosofia moderna, René Descartes. Este, nas suas Meditações Metafísicas, fará uso de uma versão do argumento ontológico anselmiano para provar a existência de Deus, pilar de sua metafísica e de sua física.

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