sábado, 25 de maio de 2013

Agostinho, a alma e o preceito "conhece-te a ti mesmo".



"Não se pode dizer, com lógica, que se tenha conhecimento de alguma coisa da qual se desconhece a substância. Se ela se conhece é porque ela conhece a sua substância. Se ela se conhece com certeza, é porque ela conhece com certeza a sua substância."

SANTO AGOSTINHO, A Trindade, livro X, 16 (trad. de Frei Agostino Belmonte, O.A. R.)

No livro X de sua obra De Trinitate Agostinho reflete sobre o significado para a alma da famosa ordem "conhece-te a ti mesmo".

A alma parece ignorar-se, não saber de si. Mas isso não é verdadeiro. Quando a alma conhece outras coisas, por esse mesmo ato, sabe que conhece. Ora, o ato de saber que se conhece não advém do exterior, mas se dá de forma totalmente imediata no próprio ato de conhecer que se conhece.

Ao conhecer o que quer que seja, a alma sabe, de uma maneira insofismável, que conhece e, portanto, sabe de si mesma. Conhece a si mesma. No ato mesmo de conhecer, conhece que conhece e, assim, conhece a si mesma como o conhecedor.

E ao buscar conhecer a si mesma, a alma não se ignora a si mesma totalmente. Sujeito e objeto são o mesmo. O que busca conhecer é aquele que é conhecido no próprio ato da busca.

Mas, então, qual o sentido do preceito délfico?

Agostinho responde que ele foi dado para que a alma pense em si mesma e, dessa forma, viva de acordo com sua natureza. Pois coisa diferente é conhecer algo e pensar sobre algo. Um homem conhecedor de todas as ciências não poderá ser dito ignorante da gramática quando nela não pensa, ou por se concentrar precipuamente na medicina.

O mesmo com a alma. Ela não se ignora, mas frequentemente não pensa em si mesma. A alma deixa se governar por aquilo que deveria sujeitar e age como se esquecida de si mesma justamente porque não toma a si própria como objeto de pensamento.

E qual a razão desse não pensar sobre si mesma? A alma se apega às imagens que guarda dentro de si dos corpos do mundo externo. Coloca nelas todo o seu amor e como ela as forma (essas imagens) de sua própria substância, apossa-se delas e nelas se enreda. Acaba por assimilar-se a elas, tomando como sua natureza aquela dos objetos aos quais as imagens representam. Daí que muitos filósofos afirmaram ser a alma corpórea, já que as imagens são de corpos do mundo externo.

Afirma o bispo de Hipona:

"O que existe de mais presente à alma do que a própria alma? Mas como se habituou a colocar amor nas coisas em que pensa com amor, ou seja, nas coisas sensíveis ou corporais, não consegue pensar em si mesma sem essas imagens corporais. Daí nasce o vergonhoso erro de ver-se impotente para afastar de si as imagens das coisas sensíveis, a fim de contemplar-se a si mesma em sua pureza."

As imagens são obstáculos ao autoconhecimento completo da alma. O único meio de cumprir o preceito délfico é justamente desapegar-se de tudo aquilo que a ela foi acrescentado, a saber, as imagens. A alma não deixa de se conhecer, mas, ao apegar-se às imagens, confunde-se com elas e com os objetos que elas representam. 

Na sua imediatidade mais profunda, a alma é anterior a tais imagens e aos objetos externos. De certa forma, ao confundir-se com elas, a alma desce ao nível  daquilo que é compartilhado até com os animais irracionais.

Que se deixe de lado tudo aquilo que a alma imagina sobre si e se concentre somente sobre o que sabe com certeza sobre si mesma. O que ela sabe, então?

Sabe que existe e vive. Como poderia saber se não existisse? Como poderia saber se não estivesse viva? O animal vive, mas não entende. O cadáver existe, mas não vive. A alma existe, vive e entende. Sabe ainda que quer, que tem vontade. Sabe que recorda, que tem memória.

Tudo isso a alma sabe de si de forma certa e imediata. É possível duvidar dessas coisas?

"(...) se duvida, vive; se duvida, lembra-se do motivo da dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir temerariamente."

Ora, se a alma sabe com certeza tudo isso sobre si mesma, ela conhece sua substância, já que conhecer é conhecer a substância. Se ela sabe com certeza que é X, X é sua substância e tudo o que não for conhecido com a mesma evidência, não é a substância da alma.

Dizer que a alma talvez seja fogo não é dizer que, com certeza, ela é fogo. Um filósofo pode imaginá-la como fogo, mas a certeza absoluta e imediata que a alma tem de si não é igual à mera imaginação do que ela pode ser. A alma sabe que existe, vive, entende, quer e recorda. Tudo o mais que não tenha a mesma certeza, é mera imaginação.

Ora, não foram poucos que viram nessa argumentação a origem do famoso cogito cartesiano. O próprio Descartes teve que se haver com acusações de plágio advindas de seus contemporâneos.

Embora não seja possível aqui analisar todas as coincidências e diferenças, uma pequena observação se impõe. A despeito de suas semelhanças, o argumento agostiniano e o argumento cartesiano partem de pontos diferentes. Descartes toma a dúvida metódica como o solvente universal de onde só as verdades indubitáveis poderiam emergir incólumes. São cenários céticos cada vez mais poderosos e abrangentes que separam aquilo que é claro e distinto daquilo que é dubitável. 

É certo que Agostinho defende uma purgação ou purificação das imagens com as quais a alma se confunde. É certo também que só aparece à alma o que ela é depois desse processo de separação. Mas isso não se dá sob a égide da dúvida. 

É a certeza e imediatidade daquilo que a alma sabe sobre si quando pensa em si mesma que garantem a indubitabilidade e não o inverso. O mundo externo não precisa ser colocado em dúvida para se chegar ao que a alma é. Basta que as imagens sejam postas de lado, como quem retira as camadas de poeira que recobrem um objeto valioso.

Por isso a dúvida só aparece no texto agostiniano parágrafos depois do estabelecimento das verdades sobre a alma.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Anselmo, platonismo medieval e o argumento ontológico.



"Então comecei a pensar comigo mesmo se não seria  possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que Ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons." 

ANSELMO DE CANTERBURY, Proslogion


Anselmo pretende, no capítulo II de seu Proslogion fornecer um argumento tal que demonstre racionalmente a existência de Deus sem auxílio da Revelação bíblica. Como um seguidor de Agostinho, o bispo de Canterbury concebe que o valor da filosofia é o de auxílio para a compreensão do dado da fé.

Os intelectuais do século XI tinham em suas mãos somente algumas obras do Órganon de Aristóteles e, por isso, concebiam, em sua maioria, a filosofia a partir de categorias eminentemente lógico-formais. É a época dos grandes lógicos, como Roscellin e Pedro Abelardo. Não é à toa que Anselmo irá construir um argumento totalmente a priori, ou seja, independente de qualquer apoio ou referência à experiência.

De fato, no argumento ontológico, é pela consideração do significado do conceito que se chegará, segundo Anselmo, a conhecer a necessidade da existência do conceituado. 

Anselmo escreve no Proêmio que, instado por seus irmãos monges, escreve seu tratado com o fim de demonstrar ser possível, por meio de um argumento puramente racional, provar a existência de Deus.  Ele afirma haver redigido seu tratado para aquele que se esforça para compreender aquilo em que acredita. Fides quaerens intellectum. A fé em busca de compreensão.

Não se trata, decerto, de fundar a fé na razão, ou seja, buscar bases estritamente racionais para aquilo em que se crê, mas, antes, tentar compreender com a razão, tanto quanto é possível ao homem, os mistérios da Revelação.

"Com efeito,  não busco compreender para crer, mas crer para compreender.", assevera o bispo de Canterbury ao final do primeiro capítulo. Compreender para crer seria o caminho natural próprio das coisas às quais o homem tem acesso por vias naturais. Mas nas coisas divinas, é preciso antes crer, receber a Revelação e, só então, buscar compreender seu sentido  na medida do possível.

Assim, no capítulo II, Anselmo enuncia a crença comum de que Deus é o ser do qual não se pode pensar nada maior. Ora, é fato que há quem não creia na Sua existência. A Bíblia mesmo o afirma, no salmo 13, que diz: "o insensato diz em seu coração: não há Deus."

É possível , pois, não crer na existência de Deus. Mas, será mesmo assim? Afirmar que Deus não existe é afirmar que Deus só existe como mera idéia ou conceito na mente de quem o afirma ou o nega. É possível, por exemplo, compreender, ter na inteligência, diversos conceitos sem que isso implique que os entes que por eles são significados existam realmente.

É possível, inclusive, compreender um conceito sem saber se aquilo ao qual ele se refere existe de fato extra mentis, fora da mente de quem o concebe. Compreendo o conceito de "unicórnio", mas posso não saber se ele existe ou não.

Todo o argumento de Anselmo está centrado em uma só questão:  o ser do qual não se pode pensar nada maior pode existir somente na mente de quem o afirma ou nega?

Só existem duas respostas possíveis. Ou bem o ser do qual não se pode pensar nada maior existe somente na mente ou bem o ser do qual não se pode pensar nada maior existe também fora da mente. Silogismo disjuntivo simples. A ou B/ não-B/ logo, A. Tertium non datur.

Anselmo pretende mostrar que a primeira opção está errada.  E o faz mostrando que ela é contraditória, logo, absurda. O "ser do qual não se pode pensar nada de maior" não pode existir somente na inteligência de um sujeito qualquer, pois assim ele não seria o ser do qual não se pode pensar nada de maior.

Ora, o que distingue dois seres, quaisquer que eles sejam, é justamente o fato de que um deles tem uma propriedade que falta ao outro. É essa falta que traça a fronteira entre um e outro. Se o ser do qual não se pode pensar nada de maior tiver alguma limitação, algo lhe faltará e, se algo lhe falta, há outro maior que ele e, portanto, ele não é o ser do qual não se pode pensar nada maior.

Não havendo nada maior do que ele, nada - absolutamente nada - o restringe, limita, delimita, contém ou ultrapassa. Nada pode lhe faltar, pois se algo lhe faltasse, pertenceria a outro que seria maior que ele.

Se nada lhe falta, não pode lhe faltar a existência. Não existir é estar privado de existência. O unicórnio não existe porque é privado de existência. Falta-lhe a atualidade de ser real extra mentis.

Se o "ser do qual não se pode pensar nada maior" estiver na mente humana da forma como o unicórnio está, então falta-lhe a existência. Ele está privado de algo. Estando privado, o "ser do qual não se pode pensar nada maior" será limitado. Mas como pode o ser do qual não se pode pensar nada maior ser limitado? Isso seria contraditório.

Não se pode pensar o "ser do qual não se pode pensar nada maior" e, ao mesmo tempo, negar-lhe uma existência extra mentis. Seria tão contraditório quanto definir o homem como "animal racional" e negar, em seguida, que os homens são racionais.

Resta evidente, afirma Anselmo, que o "ser do qual não se pode pensar nada maior" existe verdadeiramente fora da mente de quem o pensa. Logo, a opção que afirmava o contrário disso, é absurda e contraditória.

Em suma, se se compreende o que significa o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior", compreende-se também que, por necessidade lógica, ele deve existir realmente, já que o oposto disso seria contraditório.

Assim sendo, segundo Anselmo, quem nega a existência de Deus, o faz por não haver compreendido em toda a sua extensão o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior."

Mas nem todos se convenceram com a argumentação puramente lógica de Anselmo. Um certo monge chamado Gaunillon, embora de forma um tanto confusa, recusou ao argumento anselmiano o caráter  de apoditicidade que seu autor pretendia ter alcançado.

Afirmava ele que se alguém contasse a ele sobre uma ilha perdida a qual está "repleta de todas as riquezas e delícias e que, apesar de não haver lá nem proprietários nem habitantes supera, em fartura de produtos, todas as terras habitadas pelos homens", ele compreenderia facilmente seu conceito, mas acharia desarrazoado quem afirmasse que não se podia duvidar de sua existência, já que se não existisse, haveria necessariamente uma outra ilha maior do que aquela.

Gaunillon fala de uma ilha perdida cuja riqueza ultrapassa a de todas as terras, mas isso não equivale, como Anselmo aponta, a afirmar o "ser do qual não se pode pensar nada maior". O "ser maior que todas as coisas" - ou a riqueza que ultrapassa a de todas as terras -  não é a mesma coisa que o "ser do qual não se pode pensar nada maior". Este enuncia a impossibilidade de um ser maior, aquele apenas afirma que, factualmente, ele é maior que todas as coisas.

Por conseguinte, se não são enunciados equivalentes, aquilo que é "maior que todas as coisas" não tem a mesma evidência apodítica que tem o "ser do qual não se pode pensar nada maior". Mas quem compreende a apoditicidade do "ser do qual não se pode pensar nada maior", afirma Anselmo, compreende também que esse ser só pode ser entendido como "o único maior entre todas as coisas."

Tomás de Aquino não aceitará o argumento anselmiano e apontará para uma falha que considera crucial: da mera consideração lógica do conceito, não se segue que que o conceituado exista na realidade. Haveria, assim, um salto do lógico ao ontológico.

Ademais, Anselmo é um platônico-agostiniano e concebe o conhecimento a partir da iluminação divina do intelecto que, dessa forma, conhece os inteligíveis. Tal como Agostinho afirmava, por exemplo, no De Magistro. Portanto, o conhecimento se dá na alma, no contato desta com a luz do Mestre Interior. Do conceito à coisa.

Tomás, ao contrário, é um aristotélico. Para ele, o conhecimento se dá a partir dos dados dos sentidos. O conhecimento é um processo empírico-abstrativo, no qual a observação de entes singulares faz nascer a unidade da experiência, pela lembrança e imaginação, sobre a qual, por fim, o intelecto age abstraindo todos os aspectos particulares e toma somente aquilo que é geral, a essência das coisas observadas. Da coisa ao conceito.

Resta evidente, então, que, para Tomás, qualquer prova da existência de Deus deverá ser a posteriori, ou seja, a partir da experiência. É impossível deduzir a existência de algo a partir de seu mero conceito, já que este, na verdade, só se torna inteligível depois de um longo processo abstrativo que inicia nos exemplares concretos dados aos sentidos na observação.

Na apreensão do significado e da validade do argumento ontológico opõem-se se claramente duas teorias sobre o conhecimento humano, duas correntes que, de certa forma, repetem e atualizam a oposição entre platônicos e aristotélicos.

Cumpre lembrar que esse platonismo medieval, de Agostinho e de Anselmo, sobreviverá aos conflitos intelectuais da Idade Média e se renovará, por exemplo, na obra de um dos fundadores da filosofia moderna, René Descartes. Este, nas suas Meditações Metafísicas, fará uso de uma versão do argumento ontológico anselmiano para provar a existência de Deus, pilar de sua metafísica e de sua física.

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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Agostinho, Plotino, tempo e eternidade



"Não houve portanto um tempo em que nada fizeste, porque o próprio tempo foi feito por ti. E se não há um tempo eterno contigo, porque tu és estável, e se o tempo fosse estável não seria tempo."

SANTO AGOSTINHO, Confissões, XI, 13


O livro XI de Confissões pertence ao grupo dos três últimos capítulos da famosa obra de Agostinho que  são dedicados a uma reflexão que é mais característicamente filosófica do que os capítulos que os antecedem. Neles, o bispo de Hipona pretende meditar sobre os versos iniciais do Gênesis e, dentro de sua concepção do âmbito próprio da filosofia, utilizar a razão para compreender, até onde é possível, o sentido das Escrituras Sagradas.

A primeira pergunta que se impõe a Agostinho deriva-se diretamente do primeiro verso do Gênesis: "No princípio, Deus criou o céu e a terra."

Ora, se Deus criou o céu e a terra, que antes não existiam, então houve um tempo em que o mundo não existia? Ou, em outros termos, se Deus criou o mundo, que antes da criação não existia, então que fazia Deus antes de criar o mundo?

Mas, se Deus nada fazia e, de repente, em um determinado ponto, inicia a criação, então Ele claramente passa por mudança e se passa por mudança, só pode fazê-lo no tempo. A sucessão de dois momentos distintos, um no qual o mundo não existia e outro no qual passa a existir, constitui necessariamente tempo,

Deus estaria no tempo? Se Ele está no tempo, então é limitado, já que aquilo que está no tempo sofre mudança e mudança significa que algo que não era efetivo efetivou-se, passou a ser.

A resposta de Agostinho é que Deus não está no tempo, logo não sofre as vicissitudes dos entes temporais. A eternidade não é um mero recuo potencialmente infinito no passado ou um avanço potencialmente infinito no futuro, como é a eternidade do mundo em Aristóteles.

Dizer que algo é eterno não é dizer que esse algo sempre existiu, que não se pode encontrar nenhum ponto no passado antes do qual ele não existisse. O mundo bem pode ter sempre existido, como queria Aristóteles, mas, ainda assim, sempre existiu porque não há um ponto no passado que não seja antecedido por um ponto anterior.

Para Agostinho, a eternidade não é existir para sempre e desde sempre no tempo, mas algo radicalmente diferente disso. Longe de ser um gênero de permanência  no tempo, a eternidade é a negação do tempo. Aquilo que é eterno não tem parte no tempo, não é tempo e não pode ser pensado em categorias temporais.

O que é, então, a eternidade? "Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente."

O eterno é aquilo que não passa, que tem a si mesmo inteiro todo presente de uma só vez e no qual nada jamais pode se atualizar. O ente temporal sempre está mudando, sempre está se tornando algo que, de certa forma, não era antes. Ele atualiza-se, para usar a terminologia aristotélica, atualiza potencialidades, passa constantemente do que não era para o que é agora.

O ser temporal realiza o que ele é no processo constante e ordenado de efetivação daquilo que ainda não é e pode ser. O ser eterno simplesmente é, sem nada para tornar-se. 

Estudiosos apontam que a resposta de Agostinho pode provir de Plotino, já que o bispo de Hipona leu o sábio de Alexandria com admiração e respeito. Com efeito, na terceira Enéada, Plotino opõe o tempo à eternidade e define esta última nos seguintes termos:

"(...) uma vida que nunca varia, jamais se tornando o que anteriormente não era, a coisa imutavelmente ela mesma, não seccionada por nenhum intervalo. (...) Aquilo que nunca foi e nem vai ser, mas que simplesmente possui ser. Aquilo o qual possui existência estável, sem nunca estar em processo de mudança e sem ter jamais mudado - eis a Eternidade. Chegamos assim a um definição: a Vida - instantaneamente inteira, completa, em nenhum ponto seccionada  em período ou parte - a qual pertence ao Autêntico Existente por sua própria existência, isso é o que procuramos - isso é Eternidade." Enéadas III, VII, 3

Ora, se Deus é eterno e, portanto, não muda, então a única resposta para a pergunta "o que fazia Deus antes de criar o mundo?" é a seguinte: Ele nada fazia. Por outro lado, uma vez que, no caso de Deus, fazer implica fazer uma criatura, que sentido poderá ter a afirmação de que Deus fazia algo antes de fazer algo?

No capítulo XI, capítulo 6, da Cidade de Deus, Agostinho afirma:

"Pois se eternidade e tempo são corretamente distinguidos pelo seguinte, que o tempo não existe sem algum movimento e transição, enquanto que na eternidade não há mudança, quem não vê que não poderia ter havido tempo não tivesse alguma criatura sido feita, a qual por algum movimento teria dado nascimento à mudança - as várias partes do qual movimento e mudança, não podendo ser simultâneos, sucedem um ao outro - e assim, nesses curtos e longos intervalos de duração, o tempo teria nascido?"

Mundo e tempo são intrinsecamente ligados, pois o mundo não é nada mais do que o conjunto total dos entes que mudam. Há tempo porque há seres que mudam. Por conseguinte, Deus não podia fazer nada antes de criar o mundo, já que ainda não havia criado o mundo. Mas, na verdade, nem sequer faz qualquer sentido dizer "antes da criação do mundo", já que só há tempo no mundo e o mundo implica tempo. 

Portanto, a pergunta sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo é, rigorosamente, sem sentido. Mundo implica tempo e tempo implica mundo. O que está fora do mundo não está no tempo e, obviamente, não pode ser pensado em termos de antes e depois.

Se não há nenhuma criatura cujo movimento possa ser medido, como falar de tempo? Não há um antes do mundo justamente porque não há um antes do tempo. Há Deus eterno, sem mudança ou passagem. Há o mundo, cuja existência implica tempo, dado que os entes mundanos mudam e passam.

Do mesmo modo, não faz sentido perguntar quando Deus criou o mundo.  Perguntar quando Deus criou o mundo é supor um tempo anterior ao mundo e, por conseguinte, um tempo anterior ao tempo.

Nós, entes temporais, mundanos, só podemos intuir, de forma sempre parcial, fugidia e obscura, a natureza da eternidade na contemplação do instante, do átimo inextenso  que logo se perde e torna-se tempo. Como indaga Agostinho, "quem  poderá deter esse pensamento e fixá-lo um instante, a fim de que colha por um momento o esplendor da Tua sempre imutável eternidade?"

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