domingo, 3 de junho de 2012

Étienne Gilson: sobre as consequências das teorias filosóficas



"Com efeito, é certo que que toda doutrina filosófica comporta uma certa proporção de elementos contingentes, cuja origem se encontra no tempo, no lugar e nas diversas circunstâncias nas quais foi elaborada essa doutrina. Tais elementos podem formar uma massa quantitativamente mais importante que o resto, e seu estudo é parte integrante da história das filosofias. Por outro lado, cada doutrina filosófica é regida pela necessidade intrínseca de sua própria posição e pelas consequências que dela decorrem em virtude das leis universais da razão. Acontece frequentemente que o filósofo que define pela primeira vez uma de suas posições não consiga, ele mesmo, discernir todas as consequências que dela advém. Contudo, essas consequências estão contidas virtualmente ali e é sempre possível que um outro as descubra. A função própria das escolas filosóficas é revelar as consequências dos princípios que aqueles mesmos que os postularam não haviam percebido, ou que, tendo percebido,haviam acreditado poder se furtar a aceitar." (Tradução minha do original em francês)

ÉTIENNE GILSON, Réalisme Thomiste et Critique de la Connaissance, p. 157


O filósofo e historiador da filosofia francês Étienne Gilson, na obra da qual a citação acima é retirada, as tentativas levadas a cabo por diversos pensadores neotomistas de buscar nos pais da filosofia moderna novas bases para o realismo aristotélico-tomista. Ao longo do livro, Gilson expõe ciosamente as doutrinas  desses filósofos e aponta para aquilo que ele crê como a principal falha dessas tentativas, a saber, a pretensão de alcançar o realismo partindo de premissas que são absolutamente contrárias a tal empreendimento.

Esses pensadores, cujos nomes praticamente já se perderam no esquecimento, tinham por objetivo realizar uma "crítica" do conhecimento e, por meio disso, fundamentar de forma indubitável o realismo próprio do pensamento tomista. Em outros termos, o projeto era afastar o tomismo de um "realismo ingênuo" ou pré-filosófico e fundá-lo em dados incontestáveis e inabaláveis a fim de fazer frente ao ceticismo moderno.

Ora, para tanto, os pontos de partida escolhidos foram Descartes e Kant, ou seja, o idealismo inatista e o idealismo transcendental. Gilson, na análise dessas tentativas, mostra como esses projetos não só não chegaram ao fim pretendido, como também que não poderiam alcançá-lo de forma alguma, dadas as premissas de onde partem.

Com efeito, como permanecer aristotélico-tomista - cuja teoria do conhecimento afirma a apreensão do ser como o dado primário - e, ao mesmo tempo, afirmar o cogito como a certeza  primeira e fundante de todo conhecimento ou, ainda, afirmar  que nenhum objeto é alcançado em sua natureza própria, em si, mas somente a partir de formas puras e categorias a priori que o constituem como objeto de conhecimento?

O empreendimento é falho e fadado ao fracasso simplesmente porque é contraditório. 

Mas, como Gilson sempre faz questão de sublinhar, a história da filosofia é também fonte de conhecimento filosófico, pois nos apresenta as tentativas falhadas e as razões para suas falhas. E a lição a ser aprendida é o fato de que - embora pareça trivial - com frequência esquece-se que, dadas certas suposições, premissas, axiomas ou posições, certas consequências se seguirão, saiba-se quais sejam elas ou não, queira-se ou não.

Dado isto, então aquilo. Assim, em filosofia, não é o caso de simplesmente escolher as premissas e esperar que as conclusões sejam aquelas desejadas. As primeiras suposições ou afirmações trazem em si os germes de seu desenvolvimento e tudo o que vem depois é o desenrolar de uma meada que talvez o seu proponente  jamais tenha conseguido discernir o alcance.

Se alguém inicia uma epistemologia com a afirmação do cogito cartesiano, faz opção por uma abordagem que tem em si suas próprias exigências. Entre elas, está a de fundar uma epistemologia idealista, ou seja, uma teoria segundo a qual o início e o fundamento do conhecimento está na idéia e não nas coisas.

Ao mesmo tempo, o cogito implica uma desconfiança radical das faculdades de conhecimento sensível e, por conseguinte, o questionamento do próprio mundo externo e a admissão de um critério de conhecimento que só vai ser satisfeito por idéias que sejam tão ou mais claras e distintas quanto o próprio cogito

Quem diz que o primeiro dado indubitável do conhecimento é o eu sou, eu existo cartesiano, está dizendo, ao mesmo tempo, que nada que seja menos claro e distinto do que essa idéia pode servir como conhecimento e, por conseguinte, qualquer apelo ao mundo sensível - posto em dúvida como parte essencial do cogito - torna-se, por consequência lógica, absolutamente impossível e injustificável.

Para sair de tal situação, somente pela idéia clara e distinta de um Deus perfeito que, por ser uma instância externa às faculdades sensíveis, pode garantir a sua confiabilidade. Mas o quão distante está uma doutrina assim da afirmação realista aristotélico-tomista da confiabilidade dos sentidos e da evidência do mundo externo!

Dificilmente seria possível imaginar algo mais desarrazoado do que tentar fundar um realismo a partir de uma perspectiva que, de antemão, põe sob suspeita a própria existência do mundo externo e que concebe que tudo o que percebemos sobre o mundo pode ser mero sonho ou engano de um gênio maligno. Como aponta Gilson, o que se funda na idéia, permanece encarcerado na idéia.

Em outros termos, as teorias filosóficas têm uma coerência interna que não se curva aos desejos de seus próprios proponentes e que nenhum filósofo ou pensador pode esperar retirar de seus princípios outra coisa que não aquilo que já está contido virtualmente neles.