quinta-feira, 22 de março de 2012

Newton e a Alquimia II: o contexto alquímico do século XVII

                                                       Fama Fraternitatis

                                                     Confessio Fraternitatis


                                                                  Christianopolis


                                                                  Valentin Andreae

                                                                 Jan Comenius

                                                                 Marin Mersenne

                                                             Robert Boyle

                                                            Isaac Barrow

                                                        Henry More


"A comunidade científico-acadêmica na qual Newton viveu e trabalhou em Cambridge era, sob alguns aspectos importantes a herdeira direita daqueles que viam na química e na alquimia a chave para o universo. E desde o início Newton esteve sujeito a um certo conjunto de considerações filosóficas concernentes à alquimia graças a Barrow e More. Alquimia pode ser usada  para modificar Descartes, cujo sistema mecânico tem muito a seu favor, mas que exige diversas correções em vários aspectos cruciais.  (...)  Talvez tenha sido com Barrow que Newton aprendeu  a aproximar-se experimentalmente da alquimia, assim como de More ele aprendeu a sujeitá-la ao escrutínio racional."

B.J.T. DOBBS, The Foundations of Newton's Alchemy, p.125

Em seu livro já clássico sobre os fundamentos da alquimia de Newton, a historiadora da ciência Betty Dobbs traça um interessante quadro dos diveros grupos e dos diversos pensadores, cientistas e alquimistas que formaram o contexto acadêmico e não-acadêmico no qual Isaac Newton estava imerso e que podem ajudar a entender o lugar da alquimia em seu pensamento.

O hermetismo e a alquimia tiveram um papel de grande influência na consciência européia desde antes Renascença, mas Dobbs se restringe em seu estudo ao século XVII, aquele no qual Newton realizará seus estudos e, posteriormente, suas pesquisas e descobertas.

Em 1614, 1615 e 1616, respectivamente, surgem na Europa os panfletos Fama Fraternitatis, Confessio Fraternitatis e  Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz (Bodas Químicas de Christian Rosencreutz).

Neles se anunciava a chamada Fraternidade Rosacruz, formada por homens de grande sabedoria cujo objetivo era reformar em todos os níveis a sociedade, os costumes e as ciências: "Deus fez surgir homens  imbuídos  de grande sabedoria que podem renovar parcialmente  todas as artes de tal forma que, finalmente, o homem possa por meio dela entender sua própria grandeza e valor." (Fama)

Junto a essa promessa de reforma geral vinha o desejo de construção de uma utopia na figura de Christianópolis, uma ilha para a qual Christian Rosencreutz parte ao final das Bodas Químicas. Nela, os habitantes são devotos cristãos, mas também cientistas dedicados a todos os ramos do conhecimento e também à educação dos jovens. Anatomia, dissecação, matemática, ciência natural, mecânica,tecnologia, medicina são algumas dessas atividades.

No centro dessa ilha está o Colégio, onde há imensa biblioteca e farmácia e cujos princípios matemáticos vão do prático ao místico sem conflitos.

Ora, certamente essa utopia vinha ao encontro dos anseios europeus por paz e segurança numa época em que católicos e protestantes viviam em conflitos e hostilidades mútuas. A fraternidade rosacruciana  prometia reformar a educação, a religião e o estudo da natureza e propagar valores humanitários.

O provável autor dos panfletos rosacrucianos anônimos (ao menos do Bodas) foi o alemão Johann Valentim Andreae (1586-1654), que pertencia a um grupo de pensadores ciosos da liberdade que usufruíam na Europa protestante. As idéias de Andreae, segundo Dobbs, influenciaram Francis Bacon (1561-1626) e duas figuras capitais dos círculos alquímico-herméticos: Jan Comenius (1592-1670) e Samuel Hartlib (1600-1662).

O tcheco Jan Comenius escreveu extensamente sobre educação e suas idéias combinavam alquimia e filosofia natural. Segundo ele, ordinariamente o homem não tem acesso à essência do real, tal como Platão defendeu em seu mito da caverna. Entretanto, essa essência poderia ser atingida, revelando assim o conhecimento completo do microcosmo e do macrocosmo (pansofia). 

A natureza do mundo externo pode ser ensinada por meio da educação, mesmo à mais humilde das inteligências, se se puder reduzir tudo a um princípio básico, à uma chave simplificadora. A realidade interior seria revelada via devoção religiosa e exercícios alquímico-espirituais.

Assim diz Comenius: "O mundo em si mesmo (essa admirável obra de Deus) é composto de alguns poucos elementos e alguns tipos de formas; e todas as artes, quaisquer que tenham sido inventadas, podem facilmente ser reduzidas em um sumário e num método geral."

Samuel Hartlib estava interessado também numa reforma educacional e religiosa e usou seus recursos como patrono  de projetos de educação e de pesquisa científica, buscando mesmo no Parlamento apoio para tais projetos. Hartlib reuniu em torno de si um grupo de pensadores que propugnava a comunicação pública do conhecimento alquímico, o experimentalismo empírico e ideais humanitaristas. Ao mesmo tempo, o grupo se tornou um centro de correspondências entre pensadores e cientistas de toda a Europa, incluindo entre seus contatos René Descartes , Marin Mersenne, Pierre Gassendi, Isaac Barrow, Henry More e Robert Boyle.

Boyle e o grupo de Hartlib exigiam que os conhecimentos alquímicos fossem publicamente divulgados e, como consequência, essa medida exigia a fixação do vocabulário da alquimia e o gradual abandono de seu complexo e intrincado simbolismo tradicional.

Simultaneamente, Marin Mersenne, um frade e cientista católico, via na alquimia uma espécie de seita que prometia a salvação sem a fé e que pretendia se constituir numa contra-Igreja. Por causa disso, usou sua influência sobre os diversos intelectuais da Europa com os quais se correspondia para criticar duramente os alquimistas e promover como alternativa a filosofia mecanicista de Descartes.

Como resultado, a segunda metade do século XVII assistiu a dois desenvolvimentos paralelos no que tange às pretensões da alquimia. No primeiro deles, o objetivo era traduzir a teoria alquímica em termos mecanicistas, como nas obras de John Webster. No segundo, experimentadores passaram a relatar as falhas dos experimentos  alquímicos com o objetivo de demonstrar a inverificabilidade das teorias da alquimia (George Wilson, Hermann Boerhaave).

Dobbs sugere que os desenvolvimentos acima citados chegaram a Newton via Robert Boyle, Isaac Barrow e Henry More e que boa parte dos livros e manuscritos alquímicos da biblioteca de Newton provinham desses pensadores que tinham contato com o grupo de Hartlib.

Isaac Barrow, predecessor de Newton como professor lucasiano de Matemática em Cambridge e membro da Royal Society, fazia discursos públicos onde citava a sabedoria dos filósofos herméticos e propugnava o estudo empírico das teorias alquímicas. O experimentalismo de Barrow sabidamente influenciou seu pupilo mais famoso.

Henry More, por sua vez, membro do movimento conhecido como "Platonismo de Cambridge" opunha-se frreamente ao mecanicismo cartesiano no que tange às ações do espírito sobre a matéria. Ao contrário de Descartes, cujo sistema reservava a ação da alma sobre a matéria somente no caso do homem, More afirmava que o espírito, embora imaterial, estava em contato com a matéria em todos os seus pontos e que era a causa última de fenômenos como o magnetismo e a coesão dos corpos.

Entretanto, apesar de seu perfil neoplatônico, More considerava que a alquimia deveria ser julgada por critérios racionais e, apesar de não negar a possibilidade da transmutação dos metais, criticava o temperamento exaltado dos alquimistas, o qual comparava com o dos visionários religiosos exaltados que em nada submetem-se à razão, "The candle of the Lord."

More também criticava a pretensão "arquitetônica" dos alquimistas, sua tendência a ergir modelos  ou sistemas de mundo a partir de seus resultados particulares. Dizia More dos alquimistas:

"É isso que usualmente faz o alquimista um filósofo tão digno de pena: aquele que da limitada inspeção  de alguns brinquedos de sua própria arte, concebe a si mesmo como apto a fornecer a razão de todas as coisas na Natureza e na Divindade."

Segundo Dobbs, de Henry More - leitor assíduo de Marcílio Ficino, Plotino, Hermes Trismegistus e dos "místicos divinos" - Newton também recebeu a crença na prisca sapientia, a idéia de que os antigos velaram deliberadamente sua sabedoria em fábulas, mitos e linguagem obscura . Newton a ela foi fiel toda sua vida e ela levou-o ao estudo da alquimia e da teologia.

Ainda de acordo com Dobbs, Newton realiza seus estudos iniciais em alquimia no período que vai de 1668 até 1675. A metodologia rigorosa empregada pelo sábio inglês em seus estudos alquímicos demonstra a influência recebida do experimentalismo de Barrow e do racionalismo de More.

Dobbs sugere que esse estudo tem como objetivo elucidar as ações dos corpúsculos e, assim, obter uma teoria integral do mundo físico. A questão que resta é, então, saber como se deu essa tentativa de integração da alquimia com o mecanicismo científico.

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