quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Popper: essencialismo, instrumentalismo e a "Tradição de Galileu"


"Penso que essa 'terceira posição' não é muito assustadora ou mesmo surpreendente. Ela preserva a doutrina galileana de que o cientista busca uma descrição verdadeira do mundo, ou de alguns de seus aspectos, e uma explicação verdadeira dos fatos observados; e ela combina essa doutrina com a visão não-galileana que - não obstante isso permaneça o objetivo do cientista - ele não pode jamais saber com certeza se suas descobertas  são verdadeiras, embora ele possa algumas vezes estabelecer com razoável certeza que uma teoria é falsa. Pode-se formular brevemente essa 'terceira visão' das teorias científicas dizendo que elas são genuínas conjecturas - palpites altamente informativos sobre o mundo que, embora não verificáveis  (isto é, capazes de serem provados verdadeiros) podem ser submetidos a severos testes.  Eles são tentativas sérias de descobrir a verdade." (Tradução minha do original em inglês. Itálicos no  original).

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p. 154


No texto intitulado Three Views Concerning Human Knowledge, o filósofo da ciência austríaco Karl Popper argumenta a favor de um retorno à "tradição de Galileu" que, segundo sua visão, havia fundado a ciência moderna. Essa tradição tinha sua origem na audaciosa recusa de Galileu em considerar o copernicanismo como uma mera hipótese matemática cujo valor se ligava precipuamente à sua simplicidade e a seus efeitos preditivos e práticos.

A tese de Popper sobre a atitude de Galileu frente às teorias copernicanas repete - conscientemente ou não - a análise do físico, historiador e filósofo da ciência Pierre Duhem, segundo a qual, a querela em torno do heliocentrismo deveu-se ao realismo de Galileu. Ou seja, ao invés de seguir a tradição da astronomia clássica que considerava as teorias matemáticas como engenhos que - embora concordantes com o comportamento observável dos astros - não eram capazes de fornecer uma explicação real dos fenômenos celestes, Galileu insistiu não somente na adequação empírica e preditiva do sistema heliocêntrico, como também afirmou sua verdade como explicação do que realmente se dava nos céus.

Entretanto, a concordância entre Popper e Duhem na análise do caso Galileu termina aí. Se Duhem reprova a idéia de Galileu e diz que o cientista pisano não compreendeu a natureza da teoria física, uma classificação matemática das leis observacionais sem pretensões explicativas, Popper, ao contrário, dirá que Galileu estava rigorosamente certo e que seu ideal é o ideal de todo cientista.

Popper, então, volta suas armas contra o que ele chama de "instrumentalismo", no qual ele aloca  Ossiander, Roberto Bellarmino, Berkeley, Duhem, Mach e Poincaré. O instrumentalismo seria a doutrina segundo a qual as teorias científicas seriam não mais do que instrumentos, nem falsos e nem verdadeiros, mas mais adequados ou menos adequados, mais úteis ou menos úteis. 

Popper afirma que os cientistas que são adeptos desse instrumentalismo só se interessam pelo domínio do formalismo matemático e por suas aplicações. Em outros termos, os cientistas estariam comprometidos somente com a construção de um conjunto manejável de descrições matemáticas dos fenômenos que seja útil para a predição, sem pretensões à verdade sobre a constituição última do mundo.

É certo que Popper oblitera as diferenças que existem entre os pensadores que ele chama de instrumentalistas, como as críticas de Duhem a Poincaré facilmente mostram. Mas o ponto central é claro: teorias científicas não podem ser somente um aparato matemático-preditivo sem pretensão de verdade.

Popper então afirma que a 'Tradição de Galileu" é caracterizada por três teses básicas:

1) "O cientista almeja encontrar  uma teoria verdadeira ou descrição do mundo, a qual deve também ser uma explicação  dos fatos observados."

2) "O cientista é capaz de estabelecer com sucesso a verdade de tais teorias além de qualquer dúvida."

3) "As verdadeiras teorias científicas, descrevem as 'essências' ou as 'naturezas essenciais' das coisas. - as realidades que residem por trás das aparências."

Popper aceitará somente a tese (1) e rejeitará a (2) e a (3).

Contra a tese (3), Popper une forças com os instrumentalistas Mach, Poincaré e Duhem e argumenta, com eles, que a teoria física não é capaz de descobrir essências, afinal ela só conhece o que é observável. Ele acrescenta, contudo, que sua crítica se dirige somente à doutrina segundo a qual o objetivo da ciência é encontrar uma explicação última, uma que não pode ser explicada por nenhuma outra. 

Com isso Popper não está dizendo que não haja essências, mas que o cientista não tem porque assumir que elas existem. Do contrário, a crença em essências pode ser um obstáculo para a busca de explicações ulteriores, pois a curiosidade do cientista irá parar no momento em que identificar nos fenômenos estudados aquelas propriedades que ele considera como essenciais às coisas.

Contra a tese (2) Popper afirma que jamais uma teoria científica pode ser conclusivamente verificada ou provada. Por maior que seja o número de verificações empíricas que a teoria acumule, nada impede que no futuro ela encontre instâncias que não se adequam às suas predições e que, por conseguinte, a refutem.

Depurado do essencialismo através das refutações oferecidas, a "Tradição de Galileu" é representada somente pela tese (1): "O cientista almeja encontrar  uma teoria verdadeira ou descrição ou descrição do mundo, a qual deve também ser uma explicação dos fatos observados."

A "Tradição de Galileu" se afirmava precipuamente por seu realismo e por suas consequente rejeição do instrumentalismo. Este é refutado por Popper, por seu turno, pelo fato de que é tão obscurantista quanto o essencialismo. 

Para o instrumentalista, segundo Popper, as teorias científicas são meros instrumentos, mais ou menos adequados e convenientes, e jamais explicações verdadeiras do mundo. Ora, conceber as teorias científicas dessa forma seria criar obstáculos para o progresso do conhecimento, pois se elas são instrumentos, elas permanecem úteis dentro de dterminados âmbitos, mesmo que suas predições já não se apliquem a fatos fora de seu domínio.

Na medida em que  a teoria é aplicada a campos mais vastos do que aqueles para os quais ela foi  originalmente concebida, podem acontecer duas coisas: a teoria pode ter sucesso ou pode fracassar. Se tiver sucesso, ótimo!, permanece-se com ela. Se fracassar, conheceremos seus limites de aplicação. De certa forma, isso fomenta mais a acomodação do que a inovação. Esta só se impõe na medida em que o que se tem é considerado falso e se tem a urgência de uma nova solução. 

A questão que se impõe é então: qual a posição de Popper? Ele rejeita a idéia de teorias científicas como meros instrumentos úteis e se alinha com o realismo de Galileu. Ao mesmo tempo, contudo, nele rejeita o essencialismo e a idéia de verificação definitiva das teorias.  O que sobra?

Popper responde que a sua posição é uma alternativa tanto ao essencialismo quanto ao instrumentalismo. É uma "terceira posição" na qual as teorias científicas são tentativas ousadas cujo objetivo é descobrir a verdade, mas que nunca podem ser provadas definitivamente, só refutadas. Teoria científica é aquela de cujo conjunto de afirmações é possível derivar predições testáveis empiricamente.

As teorias científicas não são epistemé, conhecimento indubitável,e nem techné, técnica. elas são doxai, opiniões, conjecturas, controladas por testes empíricos. Não importa o quanto uma teoria seja confirmada, ela jamais será uma certeza. Todavia, quando suas predições são refutadas, sabemos algo do mundo. O mundo disse "não". O real foi tocado nesse ponto.

E se uma teoria é refutada, uma outra deve ser pensada para substituí-la. Ela deve, por sua vez, explicar o que a anterior explicava e, ao mesmo tempo, resolver os problemas nos quais a outra fracassou. A nova teoria será apenas uma conjectura, como sua predecessora foi, e jamais será provada conclusivamente. Mas ela estará, como as outras, sendo constantemente testada.

A concepção de ciência de Popper é um realismo não-essencialista no qual o real é tocado somente na negação empírica das expectativas oriundas das teorias. O cientista pode manter seu ideal de conhecer o real, mas ao preço de só conhecê-lo no momento mesmo em que erra.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Pierre Duhem, Física e Metafísica


"Ora, essas duas questões: 'existe uma realidade material distinta das aparências sensíveis?' e 'de qual natureza é tal realidade?' não pertencem de forma alguma ao método experimental. Este só conhece as aparências sensíveis e não pode descobrir nada que as ultrapasse. A natureza dessas questões transcende os métodos de observação empregados pela Física. Ela é objeto da Metafísica. Então, se as teorias físicas têm por objetivo explicar as leis experimentais, a Física teórica não é uma disciplina autônoma. Ela está subordinanda à Metafísica." (tradução minha do original em francês)

PIERRE DUHEM, La Théorie Physique: son objet, sa structure, p. 31 (itálicos no original)

Segundo o físico, matemático, filósofo e historiador da ciência francês Pierre Duhem,  as teorias físicas não são explicações do real, ou seja, elas não revelam uma suposta natureza última por trás das leis experimentais. Estas, por sua vez, não são mais do que o comportamento manifesto das magnitudes físicas. A Física, então, trata somente de descrever essas leis experimentais em uma estrutura rigidamente matemática, na qual as leis mais periféricas e particulares são deduzidas de um conjunto limitado de leis mais gerais.

No trecho acima citado, Duhem mostra que a tentativa de fazer da teoria física uma explicação esbarra em duas perguntas cruciais. A primeira delas é a divisão entre aparência e realidade. Toda a filosofia, desde seus primórdios, discutiu o problema da aparência e da realidade. Por trás daquilo que percebemos usualmente há algo que constitui realmente aquilo que existe. Em outros termos, para alcançar a verdade dever-se-ia ultrapassar os dados imediatos da sensibilidade. Alguns filósofos vão mesmo negar que haja tal distinção entre aparência e realidade. 

O importante, contudo, é notar que essa diferença (ou sua negação) é algo a ser determinado de forma anterior à pesquisa física. Esta somente lida com o que aparece empiricamente, com aquilo que é manifesto aos sentidos ou aos aparelhos de medição. Se há uma estrutura última do real distinta do que aparece aos sentidos, essa realidade está fora do alcance da física.

A segunda pergunta é, logicamente, acerca da natureza dessa realidade última. Novamente, a teoria física não tem nada a dizer sobre isso, pois, como foi visto acima, ela parte das aparências, do comportamento manifesto dos corpos. 

A natureza última das coisas é determinada não pelos meios empregados no método de observação da teoria física, mas pelas discussões e teses da metafísica. Se a Física quiser ser uma explicação do real, ela terá de submeter-se à uma metafísica. Seus princípios deverão ser os postulados fundamentais dessa metafísica e  todas as leis particulares deverão ser rigidamente deduzidas deles.

Descartes, por exemplo, sumarizava no Discours de la Méthode sua posição sobre a construção de uma física dizendo que, em primeiro lugar, buscava em geral "os princípios, ou causas primeiras, de tudo aquilo que há, ou que pode haver, no mundo". Em segundo lugar, examinava quais eram "os primeiros e mais ordinários efeitos que se podiam deduzir dessas causas". E, por fim, na consideração dos efeitos mais particulares, a única dificuldade era saber de quais princípios gerais e simples se deveriam deduzí-los, pois, em geral, eles poderiam sê-lo de diversos deles.

A estrutura cartesiana dá o exemplo perfeito da fundamentação da Física na Metafísica. Esta determina as causas últimas do que existe, ou seja, distingue a aparência da realidade e dá a conhecer a natureza dessa realidade que reside além das aparências. Desses postulados fundamentais deduzem-se leis gerais que, por sua vez, servirão como base para a dedução das leis particulares, as leis experimentais do comportamento ordinário dos corpos.

Ocorre que se a Física estiver subordinada à Metafísica, então surgirão dois problemas. O primeiro deles é que o critério de avaliação de teorias não será só o sucesso preditivo e a adequação empírica, mas também, e precipuamente, a sua concordância com os postulados metafísicos de sua base teórica.

Ora, o sucesso preditivo não pode ser suficiente para a determinação da verdade de uma teoria pelo simples fato lógico de que de premissas falsas podem ser deduzidas conclusões absolutamente verdadeiras. A mera adequação não será suficiente pelo mesmo motivo, isto é, o fato de que as equações  concordam com o que se observa logicamente não garante a verdade da teoria.

O único modo de garantir a verdade da teoria que explica um determinado conjunto de fenômenos físicos é mostrar que ela pode ser deduzida dos princípios fundamentais da metafísica geral esposada pelo cientista. Não é suficiente que a teoria física não esteja em contradição com tais princípios, mas que ela seja rigorosamente deduzida deles.

Com isso, uma teoria física que descreve matematicamente um conjunto determinado de fenômenos de forma adequada e que permite predições acuradas pode ser rejeitada por não se deduzir dos princípios metafísicos ou por contrariá-los frontalmente.

O segundo problema decorrente da subordinação da Física à Metafísica é a escolha entre as escolas metafísicas. Qual delas escolher? Nenhum dado empírico ou experimental pode ajudar aqui porque, afinal,  a teoria física depende de antemão de uma metafísica.

O único jeito é discutir e argumentar. Em outros termos, é necessário filosofar. Isso significa que a física deverá ser acompanhada sempre da discussão de seus pressupostos metafísicos mais gerais e que o mero sucesso preditivo ou tecnológico não representará vantagem nessa discussão racional.

Para o físico/filósofo cartesiano, por exemplo, as leis de Newton serão absurdas, pois fazem uso de forças atrativas e repulsivas, o que não se pode admitir dentro de uma teoria mecânica que deve fazer uso somente da extensão e de suas propriedades, como largura, comprimento, profundidade e movimento por choque ou tração. Para os atomistas, ambos, cartesianos e newtonianos, estão errados, uma vez que tudo o que há são átomos dotados de massa, figura e dureza movimentando-se no vácuo. 

Atrelada à Metafísica, a Física deverá lidar com essas discussões e querelas. Duhem, contudo, não aceita essa subordinação e pretende mostrar que a Física pode ser uma ciência autônoma e o caminho para isso é limitar-se ao âmbito permitido por seus métodos próprios, isto é, ser uma classificação natural das leis experimentais regida pela mera adequação empírica e sem qualquer pretensão à explicação da natureza última dos fenômenos físicos.

...

Leia também os outros posts marcados com a tag "Pierre Duhem"