sábado, 17 de dezembro de 2011

Hume e os gênios malignos



"Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções do espírito, quando a pessoa sente a dor do calor  excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua imaginação. Estas faculdades  podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, porém nuncxa podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. (...) Todas as cores da poesia, apesar de explêndidas,  nunca podem pintar  os objetos naturais de tal modo que se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo  é sempre inferior à sensação mais embaçada."

DAVID HUME, Investigação Acerca do Entendimento Humano, p. 69, Os Pensadores, Abril Cultural, Trad. Anoar Aiex


As linhas acima reproduzidas são o preâmbulo da apresentação da tese central da teoria do conhecimento de Hume, a saber, a "teoria da cópia". Nela, o escocês tenta mostrar que todo conhecimento legítimo parte da experiência - e nela tem sua base - e que toda idéia não é mais do que um reflexo pálido de uma percepção sensível.

Toda lembrança e toda antecipação imaginativa se ancoram em experiências sensíveis. Sentir o dente doer é algo vívidamente doloroso, mas lembrar que se sentiu tal dor é algo indolor e pálido. Essa é uma experiência comum e que todo e qualquer homem testemunha. Dessa verdade evidente, Hume pretende inferir que toda idéia ou lembrança nada mais é que uma cópia de uma experiência sensível.

"Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou idéias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria  dos outros, (...) Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las impressões. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos." (p. 70)

A fauna que habita nosso espírito é formada por duas categorias: as "impressões" e as "idéias". Estas são somente cópias daquelas e a diferença entre elas é de vivacidade e não de natureza. Contudo, ao utilizar o termo "impressão", deliberadamente ou não, Hume faz o leitor associar as percepções sensíveis à idéia de uma impressão, como a que acontece quando pressionamos um carimbo sobre a cêra ou um tipo com tinta sobre uma folha de papel.

Ora, numa impressão há um objeto que imprime sobre outro a sua marca. Os sentidos então, ao receberem a marca, a impressão, dos objetos externos, acusam vividamente a presença daqueles. Diga-se de passagem que essa imagem foi frequentemente usada na filosofia tradicional para descrever a relação entre os objetos externos e os sentidos.

Como justificar esse princípio? De duas formas. A primeira delas é verificar que todas as nossas idéias, mesmo as mais mirabolantes, podem ser reduzidas à combinação de idéias com origem em impressões. Um unicórnio é a junção da idéia de um cavalo com a adição de um chifre, uma parte constituinte de outros animais.

A segunda justificativa vem do fato de que pessoas com órgãos de sentido defeituosos ou inexistentes não podem fazer idéia dos objetos que normalmente corresponderiam a esses órgãos. O cego não pode saber o que é o amarelo, por mais que queiramos descrevê-lo para ele.

De posse de seu princípio, Hume pretende utilizá-la como critério de significado para as proposições filosóficas: "Portanto, quando suspeitamos que um termo filoófico está sendo empregado sem nenhum significado ou idéia - o que é muito frequente - devemos apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta idéia?, se for impossível designar uma, isso servirá para confirmar nossa suspeita." 

Sendo assim,  à distinção "idéia"/impressão" corresponde uma divisão natural entre os objetos da razão e da investigação humanas: de um lado existem as relações entre idéias e, de outro, existem as relações entre fatos.

As relações entre idéias são aquelas cuja descoberta não necessita de algo existente no mundo e são alcançadas pela simples operação do pensamento (matemática, álgebra e aritmética). Suas relações são a priori e são regidas pela necessidade que torna contraditória a negação de uma consequência logicamente deduzida de suas proposições. Ex: negar que 2+2 = 4 é cair numa contradição, pois 4 é o resultado necessário dessa operação.

As relações de fato são aquelas cujo fundamento é a experiência e que, sendo a posteriori, a negação de suas consequências jamais gera uma contradição. Do fato de que o Sol nasceu até hoje não se segue necessariamente que ele vai nascer amanhã. Ou seja, não há contradição em se negar um consequente de uma relação de fato, pois nada implica que o futuro se conformará ao passado.

A crítica à indução de Hume está diretamente ligada à distinção entre "relações entre idéias" e "relações entre fatos" e esta está ligada à distinção entre "idéia" e "impressão".

Ocorre que, páginas à frente, ao considerar as objeções dos céticos extremos, Hume se vê obrigado a afirmar que a existência do mundo externo não pode ser provada.  Ele examina a questão em três momentos.

No primeiro ele se pergunta por qual argumento se provaria que as percepções do espírito devem ser causadas por objetos externos e não serem produzidas pela "energia do próprio espírito ou pela sugestão de algum espírito invisível e desconhecido ou de alguma causa ainda desconhecida de nós? Em verdade, tem-se admitido que algumas dessas percepções , motivadas pelos sonhos, loucuras e outras doenças não derivam de algo exterior. Nada é mais inexplicável do que o modo pelo qual  um corpo agiria sobre o espírito - a fim de transmitir-lhe sua própria imagem."

Ora, se é assim, então que sentido faz a distinção "idéia"/impressão"? Se as impressões não podem ser provadas como causadas por objetos externos, então qual a diferença do empirismo de Hume de um mero idealismo?

É certo que Hume não afirma que as impressões são causadas pelo próprio espírito ou por um malin génie,  mas se ele admite que há a possibilidade que isso seja verdade, então a distinção do princípio da cópia se oblitera. A vivacidade pode continuar a distinguí-las, mas essa será um distinção que não implicará numa maior certeza das idéias ou das impressões. Por qual motivo o conhecimento não poderá iniciar e se fundar nas idéias e não nas impressões? A vivacidade destas não é suficiente para justificar essa escolha epistemológica.

O caso é que, como vimos, o termo "impressão" traz em si a sugestão da existência de um objeto concreto e externo que causa a impressão. Uma vez admitido que não se pode provar que tal objeto exista, então "impressão" torna-se um termo equivocado. Não há nada para imprimir sua marca nos sentidos. 

Sub-reticialmente, Hume introduz a idéia de um objeto externo com o uso de "impressão". Páginas depois, no entanto, essa impressão é desfeita pela admitida impossibilidade de determinar a existência de objetos externos. O efeito retórico, entretanto, é poderoso. O leitor mantém em mente, mesmo que não consciente disso, a ligação entre "impressão" e o mundo externo e não percebe que é levado, páginas depois, a admitir  a impossibilidade de justificação da distinção implicada no princípio da cópia.

Voltando ao texto, prosseguindo a discussão, no segundo momento Hume se pergunta como se poderia confirmar a relação de causalidade entre os objetos externos e as percepções dos sentidos. Para a surpresa do leitor, o escocês afirma que isso é uma questão de fato e que somente a experiência poderia verificar essa causalidade. Como o espírito só tem diante de si suas percepções, então ele jamais pode averiguar a conexão entre objetos e sentidos.

Mas como essa questão poderia ser uma "questão de fato" se aquilo que está em jogo é justamente se há "fatos" e não meras produções internas do espírito? A própria sugestão de que há aí uma "questão de fato" é absurda e conduz ao infinito. Teríamos que, então, observar "de fora" a relação que existe entre o objeto externo e os sentidos. Mas isso nada garantiria, pois estaríamos submetidos à mesma condição de jamais poder afirmar que nossa "observação" é verdadeira e não simples criação de nosso espírito, e assim por diante ad infinitum.

Desse jeito, é inevitável afirmar, como Hume o faz, que o espírito não poderia jamais afirmar a experiência de sua conexão com os objetos. "Portanto, a suposição de tal conexão é desprovida de qualquer base racional". (p.139)

O terceiro momento seria tentar apelar para a veracidade divina. É claro, contudo, que se o mundo externo está em jogo, pouco se poderia fazer para provar a existência do Ser Supremo.

O que resta então? Resta que Hume ainda é prisioneiro do "gênio maligno" que atormentava Descartes. Quem pode garantir que há objetos externos, que as impressões sejam mais confiáveis que as idéias, mesmo sendo mais vívidas?  Ou ainda, poder-se-ia dizer que a relação de cópia não é aquela que Hume queria, ou seja, a idéia copiando a impressão, mas o contrário disso. Alguém poderia afirmar que não há cópia e sim correspondência. 

Se Hume não é capaz de provar a derivação das idéias das impressões sensíveis, então por que deveríamos, como ele queria, lançar ao fogo os volumes que não contivessem "raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência"?

Se nenhuma distinção de natureza pode ser feita entre "impressão" e "idéia" - a não ser uma distinção de vivacidade, ou seja, de grau -, então não nos livramos dos pesadelos habitados por demônios cartesianos e o empirismo é incapaz de se afirmar como alternativa ao idealismo. A oposição, por conseguinte, não é entre empirismo e idealismo, mas entre este e o realismo.

Como asseverava Aristóteles na Metafísica, há os que intrigam-se com a questão se nós agora estamos dormindo ou acordados.

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