segunda-feira, 23 de maio de 2011

Adelard de Bath: filosofia natural e teologia nos séculos XI e XII


"Eu não retiro nada de Deus, pois tudo o que existe vem de Deus e por causa Dele. Mas a ordem natural não existe confusamente e sem um arranjo racional e a razão humana deveria ser ouvida no que concerne àquelas coisas que ela trata. Quando, contudo, ela falha completamente, a questão deve ser referida a Deus. Assim, uma vez que não perdemos ainda o uso de nossas mentes, deixe-nos retornar à razão."

ADELARD de BATH (1080-1142), Quaestiones Naturales


Os séculos XI e XII são o palco de transformações profundas no mundo medieval. As catedrais tornam-se centros de ensino das disciplinas liberais reunidas no trivium e no quadrivium. O primeiro compreendia o estudo da poética, da retórica e da dialética e o segundo compreendia o estudo da aritmética, da geometria, da astronomia e da música.

Nessas escolas de catedral desenvolveu-se rapidamente um interesse fecundo pela lógica, representada principalmente pelas poucas obras do Órganon aristotélico disponíveis em traduções para o latim. Como os romanos tiveram pouco interesse em traduzir as obras clássicas da filosofia grega para o latim, aquelas poucas que sobreviveram à hecatombe do fim do Império e ao caos que se seguiu e que, por fim, chegaram às mãos dos intelectuais dos séculos XI e XII, foram tratadas como a expressão mais perfeita da razão helênica.

Por esse motivo, a teologia que se desenvolve nesse período é fortemente marcada pela busca de demonstrações rigorosamente lógicas. Ainda dentro do ideal agostiniano do credo ut intelligam, ou seja, crer para compreender, os teólogos dessa época se destacam pela busca de um esclarecimento racional, até onde a potência humana permite, do conteúdo da Revelação.

Certamente não era um projeto de fundamentação racional, ou em outros termos, uma tentativa de fundar a fé em premissas racionais, mas sim de tornar a teologia uma ciência rigorosa que apela para o raciocínio e para demonstrações rigorosamente deduzidas dos dados da fé.

Esse gênero de teologia, que teve como seus maiores expoentes Berengário de Tours, Anselmo de Aosta, Pedro Abelardo e o famoso Pedro Lombardo, teve também adversários igualmente importantes que tomavam os novos teólogos como cultores de sofisticações ilegítimas e perigosas e defendiam o que se poderia chamar de "teologia monástica".

Mística e experiência direta de Deus eram as principais características dessa teologia que tinha nos mosteiros suas fortalezas. São Bernardo de Clairvaux e São Pedro Damião estão entre seus maiores expoentes. Este último atacava animosamente os filósofos: "Platão escruta os segredos da misteriosa natureza, fixa limites às orbes dos planetas e calcula o curso dos astros: eu o rejeito com desdém!" Para os "teólogos monásticos" o que importa é a salvação da alma e não os estudos filosóficos.

Ao lado dessas reações fideístas, encontram-se também posições marcadamente favoráveis não só ao estudo da lógica, mas da própria natureza. Adelard de Bath, por exemplo, propugna um estudo detido dos eventos naturais numa disciplina independente de recursos à autoridade da Revelação.

A natureza foi criada por Deus e a Ele está incontestavelmente submetida. Contudo, ela exibe uma ordenação racional capaz de ser captada pela mente humana. Por esse motivo, o homem deve buscar explicações naturais para os fenômenos que ele testemunha neste mundo, só permitindo referências ao poder sobrenatural do Criador onde as potências racionais se encontrem incapazes de fornecer uma explicação satisfatória.

Guillaume de Conches, outro pensador da época, testemunhava o mesmo senso de independência dos estudos de filosofia natural com relação à autoridade da Tradição e da Revelação. Como Adelard, Guillaume crê firmemente em Deus e na dependência ontológica do mundo com relação ao Criador, mas assevera que os fenômenos naturais têm uma racionalidade própria dada por Deus e que, por isso, eles devem ser estudados em suas causas intrínsecas.

Quanto aos ataques dos teólogos fideístas ao seus empreendimentos de filosofia natural, Gullaume assinala que "quando os padres modernos ouvem isso [suas teses naturais], eles as ridicularizam porque não as encontram na Bíblia. Eles não percebem que os autores da verdade silenciaram nas questões de filosofia natural não porque estas são contra a fé, mas porque essas coisas têm pouco a ver com o fortalecimento dessa mesma fé, aquilo com o qual esses autores estavam preocupados. Mas os padres modernos nãos nos querem inquirindo sobre nada que não esteja nas Escrituras, querendo somente que creiamos simplesmente, como camponeses."

Revela-se assim que os séculos XI e XII preparavam uma grande mudança na mentalidade medieval que se ia completar com a tradução, iniciada ainda no século XII, das obras de Aristóteles. Libertados do cadre limitador da tradição platônica e apresentados a um sistema completo de filosofia natural, como era aquele do Estagirita, os filósofos naturais dos séculos seguintes encontraram um ambiente propício para suas especulações.

A mesma atitude de Adelard de Bath e Guillaume de Cronches vai permear doravante o estudo do mundo natural, apresentando-o como disciplina autônoma e independente de considerações bíblicas ou teológicas e atribuindo às coisas um comportamento racional fundado nas naturezas criadas por Deus. Dessa forma, o mundo seria regido pelas causas intrínsecas das coisas e não pela intervenção direta e constante do Criador.

Não se pode esquecer, contudo, que esses pressupostos sofrerão contínuo ataque dos mestres de teologia que, à guisa de defender a onipotência e ação divinas, condenarão as pretensões de verdade da física aristotélica e tornarão teologicamente impossível um conhecimento certo do mundo físico.

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