sábado, 5 de março de 2011

Um frade poeta contra Sócrates e Platão


"Platão e Sócrates podem se dedicar a contendas
E gastar todo o fôlego de seus corpos
Discutindo sem fim -
O que é isso tudo para mim?

Somente um coração puro e uma mente simples
Seu caminho direto para o céu podem encontrar;
Louva o Rei - enquanto deixa para trás
O mundo da filosofia."

BEATO JACOPONE DA TODI (1236-1306)



No post anterior tratamos da corrente medieval - representada pelo personagem Venerável Jorge de Burgos do romance O Nome da Rosa - que não via com bons olhos a relação entre a Revelação e a filosofia grega estabelecida pelo pensamento tomista.

Essa reação contrária ao saber dos filósofos não era nova. Ela nasceu já no século II, o momento em que o cristianismo nascente começou a atrair para seu redil pagãos de sólida formação filosófica.

A disputa ocasionada pela questão acerca dos direitos da filosofia não se limitou aos primórdios do cristianismo, mas se estendeu pelos séculos seguintes da chamada Idade Média.

Aqueles que negavam qualquer utilidade da filosofia para o cristão, vendo em suas elucubrações sofisticadas não mais do que uma indulgência aos pecados da vaidade e da curiosidade vã, o faziam respaldados por uma tradição que remontava às invectivas de Tertuliano contra a sabedoria pagã.

Dessa corrente "tertuliana", como a designou o medievalista francês Étienne Gilson, pertenceram místicos, monges, clérigos e poetas da estatura de São Bernardo de Clairvaux, de São Pedro Damião e do beato Jacopone da Todi, cujo poema acima traduzimos.

Jacopone era membro do grupo dos "espirituais", um segmento dentro da ordem franciscana que pregava um retorno à simplicidade e à pobreza que marcaram a vida do seu fundador São Francisco de Assis.

Os "espirituais" não encaravam com simpatia os estudos filosóficos e teológicos a que se dedicavam cada vez mais seus confrades desde a morte do poverello em 1226.

Os versos resumem os traços básicos dessa corrente: o caráter vão das discussões filosóficas, os fundamentos da salvação e a consequente rejeição da filosofia.

Platão e Sócrates representam o conjunto da sabedoria pagã que se resume a uma história de contendas infindas que duram até a morte de seus participantes. Eles gastam até seu último fôlego, morrem discutindo porque não chegam a nenhum resultado positivo. Nenhum conhecimento é alcançado por essa via.

Ao utilizar dois grandes mestres como personagens de seu poema, Jacopone parece querer insinuar que se os mais dotados contradizem-se mutuamente sem chegar a qualquer solução, o mesmo fardo está destinado a todos aqueles que, sem os mesmos dotes, vierem porventura a se aventurar pelas elucubrações filosóficas.

Mas o que é isso para ele, o cristão? Não recebeu ele a graça da fé e do entendimento da vontade de Deus por meio das Escrituras? Então que significado pode ter para ele esse espetáculo triste apresentado pelos sábios pagãos?

O prêmio da salvação, o único bem absoluto, só pode ser alcançado por um coração puro e uma mente simples. O caminho já está revelado, basta ao homem trilhá-lo. E ao fazê-lo, louvando o criador e sustentáculo do universo, ele necessariamente deixa para trás o mundo confuso em que habitam aqueles seres infelizes e amantes da contenda, os filósofos.

Os "tertulianos" não são a única força dentro do cristianismo medieval. Na verdade, representam uma posição extremada que tende a minimizar o conteúdo especulativo da própria tradição cristã e a ignorar as claras afirmações dos direitos da razão contidas nas próprias Escrituras.

Em geral, o pensador da Idade Média busca uma compatibilidade de alguma ordem entre sua fé, mantida como o porto seguro de sua vida, e suas necessidades de entendimento racional. E é nessa perspectiva que o pensamento medieval apresenta suas mais instigantes realizações teóricas.

Nenhum comentário: