terça-feira, 8 de março de 2011

Tomás de Aquino, Revelação e Filosofia



"Para qualquer crente sincero que é, ao mesmo tempo, um verdadeiro filósofo, a menor oposição entre a sua fé e a sua razão é um sinal seguro de que algo está errado com sua filosofia. Pois, de fato, fé não é um princípio do conhecimento filosófico, mas um guia seguro para a verdade racional e uma advertência infalível contra o erro filosófico. Um homem que não gosta de crer naquilo que ele pode conhecer, que nunca pretende conhecer aquilo que ele somente pode crer e que é ainda um homem cuja fé e conhecimento crescem numa unidade orgânica porque ambas nascem da mesma fonte divina; este é, se não o retrato, no mínimo o modelo do típico membro da família tomista."

ÉTIENNE GILSON, Reason and Revelation in the Middle Ages


Após o longo esforço de tradução das obras de filósofos gregos, principalmente de Aristóteles, levado à cabo no século XII, o século XIII desponta como a época de absorção do saber dos pensadores da Grécia clássica pelos mestres das universidades européias.

É também a era de uma síntese original entre as exigências racionais, representadas pelos tratados peripatécos, e os deveres da fé, apresentados pelas Escrituras e pela Tradição.

A síntese aqui referida é obra da pena de um frade mendicante dominicano da Itália chamado Tomás de Aquino. Inteligência das mais radiantes, o Doctor Angelicus é, sem dúvida alguma, o maior filósofo da Idade Média, seja pela amplidão de sua obra monumental, seja pela profundidade e rigor lógico que testemunha no tratamento das mais espinhosas questões da filosofia e da teologia.

Sobre as relações entre fé e conhecimento, Tomás inicia definindo os termos em disputa. Pela consideração das suas natureza, expostas nas suas definições, será possível dizer, sem erro, o lugar de cada uma na vida humana.

A fé é o assentimento a conteúdos revelados diretamente por Deus. O conhecimento é o assentimento àquilo que se demonstra verdadeiro por meio da luz da razão natural.

Em termos estritos, não sabemos que os conteúdos da fé são verdadeiros. Não chegamos a eles por meio de raciocínios dedutivos a partir de premissas verdadeiras ou evidentes. Nesse sentido, não sabemos e nem conhecemos.

Por outro lado, o crente confia que tais conteúdos sejam verdadeiros por causa da fonte do testemunho, o próprio Deus. O autor do testemunho testemunha a Si mesmo revelando-se ao homem em afirmações que não poderiam ser alcançadas pela luz natural da razão humana.

O crente não sabe, por vias dedutivas naturais, que há a Encarnação do Verbo eterno de Deus e nem que há uma Trindade consubstancial e indivisível. E nem poderia saber, ainda que se esforçasse por milênios em elucubrações filosóficas. O que Deus revela é algo que, por sua própria natureza, não pode ser alcançado pelo homem.

Mas existem algumas coisas sobre Deus que podem ser conhecidas por meios naturais.

O filósofo pode saber que Deus existe, conhecer alguns de seus atributos e afirmar o conhecimento de que há uma alma imortal. Mas nem todos os homens são filósofos, e é por isso que estes conteúdos, ainda que naturalmente alcançáveis pela razão humana, são também objeto da Revelação, a fim de que nenhum homem se perca por não os haver conhecido.

Outros conteúdos há que nem o homem comum, incapaz de empreender investigações filosóficas, e nem o filósofo propriamente dito podem alcançar. Tais são as verdades de fé divinamente reveladas. E verdades, sejam elas quais forem, não podem se contradizer.

Por isso, as verdades da fé e aquelas da filosofia necessariamente concordam. Se há discordância, ela é aparente e se deve a uma falha da filosofia. As Escrituras são a Palvra de Deus e jamais estão enganadas. O erro só pode ser atribuído às falhas da razão humana limitada.

Mas as Escrituras não determinarão as premissas corretas para os argumentos filosóficos. Filosofia não é teologia, ciência que baseia suas cadeias demonstrativas em premissas cujo conteúdo é revelado por Deus diretamente.

A filosofia, enquanto ciência, é independente. Suas demonstrações não partem de conteúdos de fé, mas de premissas evidentes hauridas pela experiência comum. Quando uma discordância se apresenta entre a fé e a filosofia, então isso é sinal de que esta se enganou, que está em erro.

A tarefa, contudo, de apontar o erro e corrigí-lo, pertence à própria filosofia. Nenhum apelo às Escrituras deve ser permitido. Cabe à filosofia reparar seus erros com os meios que lhe são próprios. Ela deve rever seus argumentos e encontrar o erro, substituindo-o pelo acerto. Sozinha, sem ajuda da teologia.

A discordância com a fé revelada aparece então como um sinal claro e inequívoco de que foi cometido um erro filosófico.

Conquistada no século XIII pelo tomismo, a síntese entre fé e razão será duramente criticada por uma onda de reação teológica contra a filosofia inaugurada pelas condenações de 1277, poucos anos após a morte de Tomás, e finalmente perdida nos séculos XIV e XV.

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