domingo, 6 de fevereiro de 2011

O Nome da Rosa: Jorge de Burgos contra Aristóteles


"Cada livro daquele homem destruiu uma parte da sabedoria que a cristandade acumulara no crescer dos séculos. Os padres disseram aquilo que era preciso saber sobre a potência do Verbo, e bastou que Boécio comentasse o Filósofo para que o mistério divino do Verbo se transformasse na paródia humana das categorias e do silogismo. O livro do Gênese diz o que é preciso saber sobre a formação do cosmos, e bastou que se descobrissem os livros físicos do Filósofo, para que o universo fosse repensado em termos de matéria surda e viscosa, e para que o árabe Averróes quase convencesse a todos da eternidade do mundo. Sabíamos tudo sobre os nomes divinos, e o dominicano sepultado por Abbone - seduzido pelo Filósofo - os nomeou de novo seguindo as sendas orgulhosas da razão natural. Desse modo, o cosmos , que para o Areopagita se manifestava a quem soubesse olhar para cima a cascata luminosa da causa primeira exemplar, tornou-se uma reserva de indícios terrestres dos quais se remonta para nomear uma abstrata eficiência. Primeiro olhávamos para o céu, dignando de um olhar agastado a lama da matéria, agora olhamos para a terra, e acreditamos no céu pelo testemunho da terra. Cada uma das palavras do Filósofo, sobre as quais já agora juram também os santos e os pontífices, viraram de cabeça para baixo a imagem de Deus."

VENERÁVEL JORGE DE BURGOS, O Nome da Rosa *


A fala do monge ancião venerável Jorge de Burgos, personagem fictício do famoso romance O Nome da Rosa de Umberto Eco faz alusão a um dos grandes debates da Idade Média: o lugar da filosofia no seio do Cristianismo.

A trama do livro se passa na primeira metade do século XIV, numa época onde os estudos filosóficos já eram uma atividade mais do que consolidada na vida da Igreja ocidental. Na verdade, desde seus inícios, o cristianismo travou contato com a herança filosófica grega, chegando mesmo a utilizar-se de seus termos para melhor transmitir o conteúdo da fé.

Qual o papel que o saber pagão deveria ter na vida cristã permaneceu, porém, uma questão em aberto por toda a Idade Média. Havia os que, seguindo o exemplo de Tertuliano, rejeitavam toda e qualquer especulação filosófica como desnecessária e, por vezes, prejudicial àqueles que já tinham aceitado a revelação divina na pessoa de Cristo.

Outros havia que a utilizavam para melhor transmitir os conteúdos complexos dos dogmas, restringindo desse modo o erro no entendimento dos mesmos sem, contudo, comprometerem-se com a defesa de um sistema filosófico qualquer. Outros ainda defendiam a submissão da filosofia à Revelação, da qual deveriam ser retiradas todas as premissas das investigações dignas desse nome.

Como asseverava Étienne Gilson, é o frade mendicante italiano Tomás de Aquino que concede ao empreendimento filosófico bases independentes da Revelação e sustenta que as conclusões deduzidas logicamente de premissas evidentes, hauridas da experiência sensível comum, jamais podem realmente estar em contradição com aquilo que é revelado por Deus. Em outras palavras, duas verdades jamais se contradizem.

Por esse motivo, qualquer conclusão que seja fruto dos poderes naturais da razão humana e que contradiga direta ou indiretamente os conteúdos revelados deve estar errada. O erro, porém, não é corrigido pelas Escrituras, a partir da adoção de suas afirmações sobrenaturais como premissas. Ele deve ser corrigido por meios racionais e naturais, em um reexame das premissas de onde foram deduzidas as conclusões errôneas.

O conflito com a Revelação indica uma falha cognitiva humana, mas não aponta em que ponto está a falha e nem provê as premissas corretas para corrigí-la.

A atitude tomista recebeu duras críticas de seus contemporâneos, principalmente dos agostinianos, que usavam acusá-la de introduzir o paganismo no cristianismo. Tomás, entretanto, jamais deixou de enfatizar a diferença entre aquilo que se pode saber por meio da razão natural e aquilo que só se pode saber por meio da revelação divina. Esta será sempre superior àquela.

Contudo, nem todos se convenceram dessa doutrina cautelosa do Aquinate. O século XIII foi a época da absorção do corpus filosófico e científico aristotélico traduzido ainda no século XII pelo esforço admirável de monges e frades como Wilhelm de Moerbeke. Nesses tempos, não foram poucos que se convenceram do perigo de uma contaminação da fé pelos silogismos do Estagirita.

É de 1277 a condenação de diversas teses da física de Aristóteles pelos mestres teólogos da Universidade de Paris em comunhão com o bispo Étienne Tempier. Essa condenação, já comentada aqui em post anterior, teve como motivação a defesa da liberdade divina frente às pretensões de certeza dos filósofos naturais.

O que Jorge de Burgos bem percebe é que a filosofia aristotélica, cujas bases são buscadas sempre na observação sensível cotidiana, opera uma curiosa inversão no caminho do pensamento. Pela consideração dos seres e de suas essências se chega ao motor imóvel eterno e imutável para o qual todas as coisas tendem como o amante busca o amado.

Ora, se a teologia apofática do mestre São Dionísio Areopagita resguardava o cristão do erro na concepção de Deus negando a possibilidade de afirmação de qualquer atributo ou nome à divindade, cuja supra-essência está além de toda essência e de todo o conceito, como poder-se-ia confiar num caminho que atraía a inteligência às realidades sensíveis?

E mais, Aristóteles considerava as coisas a partir de suas essências, suas formas substanciais, de onde provinham todas as suas potencialidades e onde, por conseguinte, se enraizavam causalmente todas as suas ações. Um modo como esse de considerar o mundo não afastava a ação divina? Se não a afastava completamente, não a limitava ao menos?

Muitos apontaram para a ausência nessa filosofia pagã da radical dependência ontológica das coisas com relação ao Criador. Para o cristão tudo o que há foi tirado do nada pela vontade livre e soberana de Deus. Por isso mesmo, as coisas não apresentam uma subsistência ontológica a não ser por meio da ação contínua de Deus.

No século XII o místico sufi Al Ghazali já havia defendido o absoluto ocasionalismo divino. Em outras palavras, nada há de subsistente nas coisas e quando se observa um corpo agindo sobre outro se observa na verdade a ação divina que une causa e efeito por sua livre e soberana intervenção e não pela suposta presença de essências ou naturezas intrínsecas nesses corpos.

Contra ele se levantaram tanto Averróes quanto o dominicano de Aquino, argumentando que se não houvesse naturezas intrínsecas nas coisas pelas quais elas agem, não haveria também nenhuma possibilidade de conhecimento real do mundo. Deus age no mundo diretamente através da excepcionalidade dos milagres nos quais capacita as coisas a apresentarem efeitos que vão além de suas capacidades naturais e ordinárias.

Jorge de Burgos via a inversão gnosiológica empreendida por Tomás e seus seguidores como uma perigosa inversão também na ordem ontológica e que esta teria como consequência o esquecimento da dependência dos seres criados com relação a Seu Criador.

Se os temores do venerável monge eram fundados ou não, é assunto para uma investigação robusta da filosofia e da teologia do Aquinate, o que não vai ser feito aqui neste momento. O que é certo, contudo, é que eles encontram eco em várias polêmicas e disputas da fascinante aventura intelectual que caracterizou a Idade Média.


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Leia também:




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* O "Filósofo": Aristóteles; o "dominicano sepultado por Abbone": Tomás de Aquino.
A edição utilizada é da editora record e foi traduzida por Aurora F. Bernardini e Homero Freitas de Andrade.

Voegelin, o abismo moral e a ordem transcendente


"A world that allows itself to be shaken by an irrational man is contemptible."

ERIC VOEGELIN



A frase acima do grande filósofo e cientista político alemão radicado nos Estados Unidos Eric Voegelin foi proferida em uma das onze palestras proferidas na Alemanha na década de 60 e que foram reunidas em livro sob o título Hitler and the Germans.

Pode-se dizer que ela aponta para a questão central das palestras de Voegelin sobre as relações de Hitler com a sociedade alemã de sua época. Uma nação que permite que um homem desprezível moralmente alcance o poder máximo sobre tudo e sobre todos só pode estar num estado tão desprezível moralmente quanto seu líder.

Ou seja, que estado de degradação cultural, intelectual, social, ética e moral uma sociedade tem que atingir para que certos tipos possam galgar com sucesso as escadarias do poder? Voegelin aponta para o fato doloroso de que Hitler não foi um acidente imprevisível num percurso de resto retilíneo e constante, mas o sintoma incontornável de uma doença espiritual que não foi reconhecida a tempo como tal.

Contudo, o abismo que tornou possível a ascenção de Hitler ao poder não é uma idiossincrasia da alma germânica. E a questão para a qual Voegelin aponta vai além da situação histórica determinada estudada por ele naquelas palestras.

Como o próprio Voegelin declara, o importante não é mergulhar no conhecimento milimétrico de cada uma das atrocidades nazistas. É bom que elas sejam denunciadas como tais, como atrocidades absolutamente execráveis. Mas essa denúncia deixa intocada a questão central sobre o estado de uma sociedade que permite a tais homens deploráveis chegar ao poder.

Que doença é essa que faz com que toda uma sociedade - sua elite intelectual aí incluída - torne-se praticamente insensível à baixeza moral manifestada por determinados elementos que pleiteiam o ingresso nos corredores do poder?

Tal pergunta é cabível ainda hoje, em nossa realidade. Que tipo de depravação é essa que faz com que aceitemos homens da mais baixa extração moral e intelectual como nossos governantes? Eles não são fruto do acaso ou da imposição externa, eles são o sintoma do grau de decomposição espiritual em que nos encontramos.

Para Voegelin, a razão última do fenômeno descrito até aqui está em uma insensibilidade à ordem transcendente das coisas. O cosmos interno do homem depende da ordem descoberta nas duas grandes experiências do divino na civilização ocidental: a revelação monoteísta israelita e a filosofia grega.

Em ambos os casos, na dignidade humana está implicada uma participação no divino, uma dependência do proton aition, da causa primeira. O solo é o Ser e a perda da realidade é sempre uma perda da ordem do Ser. A desdivinização tem como contrapartida necessária a desumanização.

A ordenação da realidade interna, não estando mais ancorada na ordem transcendente do Ser, mas no caudal caótico dos desejos, gera uma progressiva desumanização e uma hybris cuja máxima poderia ser a frase do poeta romântico alemão Novalis: "O mundo deve ser como eu quero!"

Aleksandr Solzhenitsyn já dizia que é nos corações humanos, e não nas classes ou partidos políticos, que encontra-se a linha separando o bem do mal. É o homem, cada homem, na medida em que opta pelo bem, pelo Ser, submetendo-se à ordenação "vinda do alto", que subverte a marcha da desumanização em si mesmo.

Outro nome para isso não há senão metanóia.