domingo, 23 de janeiro de 2011

Considerações curtas sobre o simbolismo do deserto


Profeta Elias no deserto


Todo símbolo se presta a interpretações diversas de acordo com o ângulo sob o qual é encarado. O símbolo é sempre imperfeito, mais ou menos adequado ao simbolizado, também de acordo com o caso. E, em muitas circunstâncias, um mesmo símbolo pode referir-se a realidades diametralmente opostas.

Por outro lado, o símbolo jamais é arbitrário. Se o fosse, seria mero sinal, convenção, como ensina Mário Ferreira dos Santos.

O deserto, por exemplo, é tradicionalmente visto como um símbolo do vazio, ou em outros termos, da indistinção radical. Obviamente o deserto atual e existente no mundo não é um vazio total e nem mesmo apresenta absoluta ausência de seres distintos, limitados.

O deserto real não é idêntico àquilo que simboliza. Mas ele é uma das experiências sensíveis e temporais mais próximas da indistinção e do vazio.

O vazio pode ser símbolo tanto de ausência quanto de plenitude. Como ausência, é o símbolo do afastamento absoluto do Ser, da negação de todo e qualquer ente, possível ou efetivo. É o símbolo do mal, pois o mal é ausência de bem, que é sempre Ser.

A posse do órgão da visão e da sua respectiva faculdade são atualizações de potencialidades. São bens, são o Ser sendo. A cegueira é um mal porque é uma privação, a ausência do ser efetivo da visão.

Sob essa ótica, o deserto é o lugar próprio da privação e da ausência. É o lugar da negação pura e simboliza o negativo absoluto, a privação total e completa que jamais pode se manifestar enquanto tal, pois tudo que se manifesta é Ser, é ente.

O deserto é a morada do negador par excellence: o demônio. Para o espírito maligno que habita o deserto era enviado o bode expiatório que carregava os pecados, as transgressões e as negações do povo hebreu. Para o êrmo eram impelidos os endemoniados do Evangelho que de todos se afastavam, como exemplos da negação radical da convivência com o outro.

É no deserto que o Senhor é tentado logo após seu batismo no Jordão. Mas é nesse mesmo lugar que o Cristo repele decididamente as ofertas do tentador.

Neste ponto o simbolismo se reverte.

Jesus recusa o demônio, a negação personalizada, porque ele está no deserto que é plenitude. Está no vazio que é a suprema indistinção da divindade, que jamais pode ser classificada em nenhuma categoria humana. Deus não é isso ou aquilo. Está além de qualquer palavra ou pensamento, excede infinitamente toda expressão ou discurso humanos.

Em Deus nenhum limite há; portanto, aí nenhuma determinação, nenhuma classificação pode haver. Ele é Deus absconditus.

O deserto transmuta-se em símbolo do divino.

Moisés, após subir o monte Sinai, símbolo da ascensão espiritual, de Deus só vê trevas. Como ensina São Gregório de Nissa, comentando o texto mosaico, o conhecimento espiritual é cada vez mais perfeito quanto mais se reconhece a incompreensibilidade divina.

O deserto se torna então símbolo não da ausência radical dos seres, mas da realidade inapreensível que os ultrapassa e os funda primordial e absolutamente. De nenhum valor serão os reinos deste mundo oferecidos pelo demônio ao Cristo, pois Ele vive no vazio divino que está além de qualquer limite e determinação.

No Antigo Testamento, é para tal deserto que foge o santo profeta Elias, sofrendo "as perseguições movidas pelos poderes deste mundo", como expressa a Divina Liturgia Ortodoxa. O último profeta e precursor João Batista vem do deserto para anunciar a vinda do Senhor, que é a divinização do Cosmos.

É para esse deserto que a Igreja deve fugir toda vez que for tentada pelo poder temporal. É nesse deserto que se enraíza a autoridade espiritual. Quando a Igreja se tornou mundana, beneficiária dos privilégios concedidos pelos imperadores romanos, a verdadeira autoridade espiritual se destacou de seus representantes oficiais e se encarnou naqueles monges e anacoretas que partiam do saeculum para o deserto em busca somente daquilo que é mais importante.

O deserto dá testemunho tanto de plenitude espiritual quanto de perigos e tentações. Pode ser o vazio todo-excludente da negação pura ou a plenitude todo-abarcante do inabarcável ser divino. O monge ou anacoreta que partia para o deserto físico da privação material dos confortos deste mundo tinha como objetivo passar espiritualmente do vazio da negação e da ausência para o da união íntima com a supra-essência divina que ultrapassa infinitamente todo e qualquer conceito ou limitação.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Aristóteles, física, movimento e a natureza da luz


"A luz não é fogo nem qualquer tipo de corpo e nem mesmo algum tipo de fluído de um corpo (se fosse isso, seria algum tipo de corpo também). (Luz) é a presença do fogo ou algo aparentado com o fogo naquilo que é transparente. Não é certamente um corpo, pois dois corpos não podem estar presentes no mesmo lugar. O oposto da luz é a escuridão; e escuridão é a ausência naquilo que é transparente do estado positivo correspondente acima caracterizado."

ARISTÓTELES, De Anima, II, 7, 15

A física de Aristóteles é uma física do movimento. E movimento é uma atualização de potencialidades, ou seja, é a passagem do potencial ao efetivo.

O mármore tem a potencialidade de ser moldado numa estátua. Há movimento enquanto as marteladas e cinzeladas transformam o mármore numa escultura. Quando, após todo aquele trabalho com o cinzel, finalmente surge um Apolo, aquela potencialidade é realizada plenamente. Agora há uma estátua em ato.

Note-se, entretanto, que a passagem da potência para o ato acima descrita é realizada por um agente externo, o escultor. O mármore não tem em si mesmo o princípio de seu movimento. Os seres naturais, ao contrário dos artificiais, têm em si mesmos o princípio, sua natureza, que os faz atualizar suas potencialidades específicas.

Ora, se a física trata do movente, então a luz será tratada sob o mesmo paradigma. A luz não será fogo, corpo ou fluído que se desprende de algum corpo, mas tão somente a atualização daquilo que é transparente.

Para Aristóteles toda percepção se dá entre um órgão sensitivo, um meio e um objeto sensível. Se este é colocado próximo demais do órgão sensitivo, não há percepção. O exemplo mais claro disso é quando algo é colocado perto demais dos olhos e, por isso, não se consegue enxergá-lo distintamente. Quando o objeto é afastado do órgão e um espaço se interpõe entre eles, acontece a percepção. A distância necessária para que isso aconteça varia de acordo com o sentido.

O ar, a água e alguns corpos sólidos são transparentes, ou seja, devem sua visibilidade à cor de alguma outra coisa. O ar serve usualmente como meio entre o olho e a coisa enxergada. Quando sob a ação do fogo ou qualquer substância ígnea, o ar atualiza sua potencialidade específica de transparência e assim permite que a cor, objeto primário da visão, seja enxergada.

A escuridão é então o meio transparente não atualizado, ou seja, em potência. O fogo é o agente externo que torna a transparência potencial do ar efetiva. E a luz é a atualização da potência do meio transparente.