sábado, 27 de março de 2010

Hayek e o caminho para a servidão


Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek

"O controle econômico não é apenas o controle de um setor da vida humana, distinto dos demais. É o controle dos meios que contribuirão para a realização de todos os nossos fins. Pois quem detém o controle exclusivo dos meios também determinará a que fins nos dedicaremos, a que que valores atribuiremos maior ou menor importância (...). [O Estado] não só decidiria quais as mercadorias e serviços a serem oferecidos, e em que quantidades; mas estaria em condições de dirigir sua distribuição entre diferentes regiões e grupos e poderia, se assim o desejasse, discriminar entre pessoas como bem entendesse. (...) Numa economia dirigida, em que a autoridade se interessa diretamente pelos objetivos visados, ela usaria seus poderes para auxiliar a consecução de certos fins e impedir a realização de outros."

FRIEDRICH VON HAYEK, O Caminho da Servidão

Este post tem como única função recomendar enfaticamente a leitura do livro O Caminho da Servidão do economista Friedrich von Hayek. Junto com Ludwig von Mises (também de leitura altamente recomendável), Hayek foi membro destacado da chamada Escola Austríaca de Economia.

Em O Caminho da Servidão, escrito na década de 40 do século passado, Hayek mostra como a planificação econômica e o coletivismo levam ao fim das liberdades individuais e por fim à ditadura.

Uma vez que numa economia planificada todos os meios econômicos restam nas mãos dos planejadores estatais, que os utilizarão para realizar fins determinados de antemão, todas as condições para a realização dos objetivos particulares que caracterizam a ação individual estarão sob o controle do Estado.

Este possuirá assim o poder ilimitado de decidir a vida dos indivíduos a partir de um padrão por ele mesmo estipulado, submetendo todas as forças (até mesmo o ordenamento jurídico e a liberdade de imprensa) às exigências pretensamente necessárias à realização de seu plano.

Para todos aqueles que querem conhecer o genuíno pensamento liberal e não as caricaturas que nos empurram nos colégios e na mídia, a leitura de Hayek e Mises é fundamental.

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Link para versão PDF de O Caminho da Servidão:


Link para o site Taking Hayek Seriously (artigos, entrevistas, vídeos):


Link para versão em quadrinhos de O Caminho da Servidão:

sábado, 13 de março de 2010

Ciência medieval e as condenações de 1277

"A condenação [de 1277] enfraqueceu a influência da ciência e da filosofia aristotélicas sobre o mundo letrado. A certeza e a confiança que haviam caracterizado os filósofos naturais aristotélicos no século XIII foram abaladas. A ênfase no poder absoluto de Deus acoplada à críticas legítimas aos fundamentos da certeza filosófica e científica alteraram consideravelmente o caráter e o campo da discussão científica. Alternativas e possibilidades que não eram sonhadas ou discutidas no século XIII foram consideradas e exploradas no século XIV. (...) Entretanto, embora a confiança no sistema físico de Aristóteles tenha certamente decrescido, isso se deu principalmente por uma ampla desconfiança acerca das explicações físicas em geral."

EDWARD GRANT, Physical Science in the Middle Ages, p.84


Há ainda os que, por ignorância ou preguiça, defendem que não havia discussão científica na Idade Média. Através de diversos estudos históricos dos quais Pierre Duhem foi o pioneiro no início do século XX se sabe hoje que nada disso pode ser dito com justiça. Os debates acerca da física aristotélica estiveram na lista dos temas mais importantes daqueles tempos.

Esses debates, realizados nas grandes universidades, não só pretendiam esclarecer o sentido das proposições de Aristóteles, mas também contribuir com novas questões e críticas. É preciso lembrar que o bojo da educação universitária na Idade Média era a Lógica e a filosofia natural.

Nada mais natural então que a Física fosse um dos mais comentados e discutidos livros de Aristóteles naquele período. Contudo, a recepção da obra do Estagirita não aconteceu de forma plácida e sem conflitos. Há um erro em se afirmar, como tão freqüentemente se ouve em nossos dias, que "Tomás 'batizou' Aristóteles e este se tornou a autoridade indiscutível na Idade Média."

A questão é muito mais complexa do que isso e neste espaço não é possível analisá-la em todos os seus aspectos. Mas é possível apontar para alguns fatos importantes da história científica medieval para que se torne mais matizado o caráter das relações entre o pensamento grego e a revelação cristã na Idade Média.

No século XII houve um incremento inédito das traduções das obras dos gregos clássicos. Incentivados pelas traduções árabes, monges e outros eclesiásticos ocidentais se dedicaram à tradução dessas obras para o latim. Poucas vezes na história humana houve um esforço tão grande e concentrado em resgatar e preservar a cultura herdada dos antigos.

O século XIII continuou essa empreitada e nele iniciou-se as grandes discussões acerca da absorção do saber dos antigos dentro da civilização cristã. É o século de Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, os grandes defensores de Aristóteles. Mas porque o grego necessitava de defensores?

Ora, a filosofia aristotélica era um conjunto formidavelmente coeso, coerente e compreensivo de saber que se aplicava às mais diversas áreas do conhecimento*. Isso impressionou vivamente o espírito dos medievais. Contudo, apesar de tanta sabedoria inegável, algumas das teses da Física e de outros escritos estavam em franca contradição com pontos importantes da Revelação.

Aristóteles negava, por exemplo, a imortalidade da alma e afirmava a eternidade do mundo. A tarefa que se seguiu foi a de buscar uma harmonização entre essa ciência antiga e os conteúdos da fé. Sem dúvida, o maior luminar dessa era e desse projeto foi o frade mendicante dominicano Tomás de Aquino.

Mas nem todos estavam convencidos da conveniência e das vantagens desse projeto. Em 1277, três anos após a morte de Tomás, Etienne Tempier, bispo de Paris, reunido com os mestres de teologia da respeitada universidade parisiense condenou 219 proposições defendidas pelos mestres de artes (filósofos sem treino em teologia).

Entre essas proposições haviam diversas que pertenciam ao corpo científico do pensamento aristotélico. A motivação dessas condenações seria a de preservar a liberdade de Deus. Segundo os teólogos daquela época, as teses condenadas restringiriam inapropriadamente a onipotência divina.

Para Aristóteles todas as coisas obedecem a uma necessidade específica dada pela essência (Forma ou Eidos) que, internamente, faz com que cada coisa se torne o que ela deve ser. São essas essências ou naturezas que determinam o comportamento e o lugar de cada coisa no cosmos fechado e hierarquicamente ordenado.

A partir da perspectiva aristotélica, aquilo que é fisicamente impossível é necessariamente impossível. Tempier e os mestres de teologia da Universidade de Paris consideraram que essa filosofia era restritiva demais, pois, ainda que algo fosse impossível no mundo natural pelos meios naturais, não seria Deus capaz de fazê-lo sendo Ele onipotente?

Aristóteles negava a possibilidade do vácuo, do movimento retilíneo do mundo (o que implicaria o vácuo) e a pluralidade dos mundos. Se para o grego era necessariamente impossível que essas coisas se dessem, não seriam elas possíveis Àquele que sustou o curso do Sol para ajudar Josué?

As teses aristotélicas acima citadas estavam entre aquelas condenadas em 1277. Por causa dessa ofensiva teológica de defesa de Deus, o edifício aristotélico foi abalado e desacreditado e o século XIV assistiu a um período de engenhosas e sutis discussões acerca de hipóteses sobre possibilidades antes totalmente proibidas pela filosofia natural do Estagirita.

Grandes pensadores como Jean Buridan e Nicolas Oresme se dedicaram a questionar, modificar e propor alternativas às soluções dadas por Aristóteles. Mas o faziam como simples hipóteses sem valor real. Qual o motivo para tal comportamento?

A resposta é simples: por causa da liberdade divina. Se Deus é livre a ponto de fazer aquilo que a filosofia natural julga ser necessariamente impossível, resta que nenhum conhecimento real do mundo é possível. Tudo o que pensamos, nossas teorias acerca do mundo só têm valor conjectural, pois qualquer que seja nossa hipótese, por mais certa que pareça, não pode constranger Deus na Sua onipotência.

Para qualquer teoria que se apresente, com qualquer grau de certeza que se queira, Deus sempre pode fazer diferente do que se pensa. As teorias então são encaradas como hipóteses que, embora concordantes com os fatos, nunca podem ser consideradas verdadeiras.

Todas as especulações de Buridan e Oresme são consideradas como construções mentais (secundum imaginationem) que somente "salvam os fenômenos" ou seja, são adequadas ao observado, mas nada dizem sobre a real natureza das coisas.

Dessa forma, as condenações de 1277 afrouxaram os laços do aristotelismo e acabaram por incentivar uma atividade teórica rica e diversificada no campo do estudo dos fenômenos naturais onde floresceram inúmeras hipóteses que antecipavam teses importantes da revolução científica do século XVII.

Por outro lado, essas mesmas inovações teóricas não são encaradas como nada além de construções mentais interessantes e adequadas aos fenômenos, mas incapazes de serem afirmadas como verdadeiras.

A despeito do prefácio de tom conciliador e instrumentalista que o luterano Andreas Osiander escreveu para o De Revolutionibus, o polonês Copérnico ciosamente afirmava a verdade de seu sistema heliocêntrico. É somente aí que a revolução começa. E começa porque novamente se ousa falar em verdades acerca de assuntos concernentes ao mundo natural.

A ciência moderna se fundará na rejeição de Aristóteles e na afirmação da verdade de suas teorias. Para que isso seja possível, uma vez abandonada a ontologia essencialista aristotélica, uma nova ontologia do real é construída.

Ela será quantitativa, ideal e geométrica. Expulsará do real as qualidades cotidianamente observadas e se fiará na necessidade que caracteriza a matemática. Doravante, se considerará a ordem somente a partir de seu aspecto quantitativo e mesmo Deus será convertido num matemático.

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*(Em diversos posts anteriores nós tratamos das características e teses principais da ciência aristotélica, principalmente com relação às diferenças que estas apresentam frente à ciência moderna. Pedimos ao leitor que se remeta a esses posts para maiores esclarecimentos.)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Schönborn, ciência e teleologia


"Let us return to the heart of the problem: positivism. Modern science first excludes a priori final and formal causes, then investigates nature under the reductive mode of mechanism (efficient and material causes), and then turns around to claim both final and formal causes are obviously unreal, and also that its mode of knowing the corporeal world takes priority over all other forms of human knowledge. Being mechanistic, modern science is also historicist: It argues that a complete description of the efficient and material causal history of an entity is a complete explanation of the entity itself—in other words, that an understanding of how something came to be is the same as understanding what it is. But Catholic thinking rejects the genetic fallacy applied to the natural world and contains instead a holistic understanding of reality based on all the faculties of reason and all the causes evident in nature—including the “vertical” causation of formality and finality."

CARDEAL CRISTOPH SCHÖNBORN, First Things, jan.2006

O cardeal católico austríaco Cristoph Schönborn envolveu-se no ano de 2005 numa polêmica acerca da evidência de um desígnio inteligente dirigindo a evolução dos seres vivos (na suposição, é claro que tal evolução tenha ocorrido). O prelado apontava em um artigo publicado no The New York Times que a idéia de uma biologia sem a consideração de fatores teleológicos era intrinsecamente incapaz de explicar satisfatoriamente os fenômenos naturais.

No ano de 2006, na edição de janeiro da revista First Things, Schönborn retomou o tema em outro artigo, dessa vez intitulado The Designs of Science. O texto é uma resposta a um crítico e também um desenvolvimento das idéias ventiladas no artigo de 2005.

Não comentaremos o texto, nos limitando a apontar alguns pontos importantes e interessantes da argumentação do cardeal.

Schönborn salienta que:

1) Suas teses não são defendidas a partir do ponto de vista da teologia, nem da ciência moderna e tampouco da "teoria do design inteligente". Seu apoio vem da filosofia e de exigências racionais e de concordância com a experiência empírica cotidiana;

2) O pensamento cristão contemporâneo absorveu o dualismo cartesiano ao ponto de aceitar tacitamente que o mundo divide-se entre os fenômenos naturais mecanisticamente descritos e explicados e as realidades imateriais cuja crença depende somente da fé;

3) A rejeição dos aspectos teleológicos da realidade leva a um conhecimento intrinsecamente parcial e imperfeito;

4) Há um problema epistemológico com relação ao papel da aleatoriedade (randomness) na teoria neodarwiniana.

Segundo Dawkins, a teoria evolutiva neodarwiniana pode ser resumida numa frase: "mutação genética aleatória mais seleção cumulativa não-aleatória". Ou seja, as mutações são aleatórias no sentido de imprevisíveis, mas a seleção ambiental faz o trabalho análogo ao de um designer.

As mutações que concorrem para a maior adaptabilidade do indivíduo ao ambiente aumentam suas chances de sobrevivência e são passadas aos seus descendentes tornando-se parte da herança da espécie. Como aqueles que são portadores de mutações que diminuem sua adaptabilidade têm em geral suas chances de sobrevivência também diminuídas, eles se reproduzem menos e suas características não são passadas adiante pela reprodução sexuada.

Aos poucos, moldada num processo per se não-observável de milhares de anos, a espécie se modifica a ponto de fazer surgir uma nova espécie.

Ora, Schönborn questiona o sentido dessa aleatoriedade e afirma que, não obstante os protestos dos neodarwinistas, o ambiente não é menos randômico que as mutações, uma vez que, segundo a própria teoria, ele está sempre mudando e não é relacionado a nenhuma teleologia.

5) A discussão do neodarwinismo por parte dos comentadores católicos está viciada pelo erro de somente discutir a possível compatibilidade dessa teoria com os conteúdos da fé e não tocar na delicada questão da compatibilidade da mesma com as exigências racionais.

O texto do cardeal Schönborn é interessante não só pelas questões instigantes que levanta, mas principalmente pela coragem de propor uma discussão teórica que vai além da posição defensiva adotada pelos teólogos e cristãos em geral que se limitam a comodamente afirmar a transcendência de sua fé.

A atitude correta é discutir não só as questões teológicas, mas também apontar os limites dos pressupostos e das escolhas filosóficas que estão implicadas em cada teoria. Acastelar-se atrás da transcendência dos dogmas e abandonar o campo das disputas intelectuais aos adversários é admitir de antemão a derrota e, por conseguinte, torná-la realidade.

Em tempo: o Cardeal Schönborn é dominicano e, como era de se esperar, dá mostras de conhecer bem a obra do Doctor Angelicus.

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O artigo de Schönborn no The New York Times:


Artigo no First Things: