quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Cisão galileana


"Fazendo do que é matemático o fundo da realidade física, Galileu é necessariamente levado a abandonar o mundo qualitativo e a relegar a uma esfera subjetiva, ou relativa ao ser vivo, todas as qualidades sensíveis de que são feitas o mundo aristotélico. A cisão é, portanto, extremamente profunda. Anteriormente ao advento da ciência galileana, certamente com mais ou menos dose de acomodação e de interpretação, aceitávamos o mundo que se oferecia a nossos sentidos como o mundo real. Com Galileu, e depois de Galileu, presenciamos uma ruptura entre o mundo percebido pelos sentidos e o mundo real, ou seja, o mundo da ciência. Esse mundo real é a própria geometria materializada, a geometria realizada"

ALEXANDRE KOYRÉ

Segundo o grande Alexandre Koyré, o que caracterizou a revolução científica do século XVII foram a dissolução da idéia de cosmos e a geometrização do real.

A geometrização levada à cabo por Galileu e seus sucessores, por sua vez, tinha como base a idéia de que o real não era formado por qualidades como odor, cor, sabor e sim por formas geométricas. Estas, para um aristotélico, nunca passariam de abstrações. Para os galileanos, elas eram a verdadeira natureza do real.

Inaugura-se uma física cujos princípios têm sua base em um mundo geométrico, abstraído de todas as características do real captado diretamente pelos sentidos. Para que o princípio de inércia possa afirmar que o movimento sem obstáculos, resistências e atrito seria eterno, é necessário um modelo geométrico totalmente abstraído das condições normais do cotidiano que todos presenciamos.

Um mundo cuja natureza é geométrica, quantitativa, não tem lugar para a idéia de um cosmos limitado, organizado hierarquicamente com lugares naturais, do mais nobre ao menos nobre, etc... O geométrico nivela tudo. As leis do supralunar, por exemplo, não diferem mais daquelas do sublunar.

Na nova física, os sentidos não captam mais o real. Este deve ser alcançado ultrapassando as brumas enganadoras dos odores, sabores e cores até a pura esfera do geométrico.

Do Ressuscitado



Ícone ortodoxo russo do Senhor ressuscitado resgatando Adão e Eva.



A religião é, fundamentalmente, uma doutrina do lugar. Seu cerne se encontra na determinação do lugar do homem e de cada aspecto de sua vida numa estrutura hierárquica que tem como fundamento o divino.

O lugar do homem é determinado por nada mais que sua natureza, sua essência. A religião é a tentativa de tradução em termos simbólicos, ritualísticos e morais de uma experiência mística que escapa a toda linguagem, mas que revela a verdade do Ser.

Do ponto de vista simbólico, o Cristo ressuscitado é a expressão e a resposta definitiva do Cristianismo sobre o lugar do homem no universo. Cristo ressuscitado é a imagem do homem revestido pela imortalidade.

É a pessoalidade plasmada indissoluvelmente pelo Absoluto. É o homem cuja materialidade e individualidade não são mais obstáculos à compreensão de sua verdadeira natureza. É o símbolo da superação da ignorância da Queda.


O ressuscitado é o caminho aplainado que vai do Absoluto ao relativo e deste para Aquele sem solavancos ou obstáculos. É a escada de Jacó onde os anjos descem do céu para a terra e sobem da terra para o céu graciosamente.


Esse é o lugar do homem.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O falseabilismo pode ser falseado?


"Now if we look upon a theory as a proposed solution to a set of problems, then the theory immediately lends itself to critical discussion- even if it is non-empirical and irrefutable. For we can now ask questions such as 'Does it solve the problem? Does it solve it better than other theories? Has it perhaps merely shifted the problem? Is the solution simple? Is it fruitful? Does it perhaps contradict other philosophical theories needed for solving other problems?' "

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p.269


Com alguma frequência eu ouço pessoas tentando refutar o falseabilismo popperiano questionando se o falseabilismo é refutável. Se não for, deverá ser rejeitado. Há algumas confusões nessa tentativa que gostaria de esclarecer.


Primeiro, o falseabilismo popperiano, enquanto uma teoria de demarcação entre ciência e não-ciência, afima somente que teorias científicas apresentam o caráter disposicional de refutabilidade empírica, ou seja, do corpo da teoria deduzem-se predições testáveis empiricamente.


Ora, o falseabilismo nunca pretendeu ser científico, ou seja, nunca pretendeu ser uma teoria da qual se pudesse extrair predições testáveis. Ele é uma teoria filosófica, irrefutável empiricamente. É uma metodologia que tenta resolver os problemas deixados por outras teorias metodológicas.


Segundo, do fato de o falseabilismo não ser empiricamente falseável não se infere que ele não possa ser discutido criticamente e até rejeitado. Popper já havia deixado claro na sua obra inicial, Logic of Scientific Discovery, que o falseabilismo deveria ser avaliado por suas consequências lógicas e pela sua capacidade de resolver os problemas da metodologia indutiva sem criar novas dificuldades.


No Conjectures, como fica claro no trecho acima citado, Popper afirma com ainda mais veemência que teorias filosóficas têm possibilidade de serem discutidas criticamente e rejeitadas mesmo que não sejam empiricamente refutáveis e fornece os critérios básicos para esse empreendimento.


Terceiro, essa tentativa tão comum de refutação do falseabilismo, acredito, se inspira no argumento contra a verificabilidade como critério de sentido de proposições defendido pelo Círculo de Viena. O argumento, um tanto resumido, seria que se o sentido de uma proposição é sua possibilidade de verificação, então o princípio de verificabilidade (que não é analítico) carece ele mesmo de sentido.


O truque seria então voltar contra o princípio aquilo que o princípio afirma sobre todas as coisas. No caso do falseabilismo essa manobra não funciona, pois não se trata aqui de um critério de sentido de proposições e sim uma teoria filosófica sobre a demarcação entre ciência e não-ciência. O que o falseabilismo afirma sobre teorias científicas não se aplica a ele mesmo.


Assim, o falseabilismo pode sim ser rejeitado. Contudo, não pelo fato de não ser refutável empiricamente.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Friedrich Waismann e a "Textura Aberta" da Linguagem



O físico, matemático e filósofo austríaco Friedrich Waismann, professor titular de filosofia da ciência de Oxford até sua morte em 1953, foi um dos mais representativos pensadores do grupo conhecido no pré-guerra como o Círculo de Viena. Os membros desse grupo, liderados por Moritz Schlick e Rudolf Carnap, ficaram conhecidos na história da filosofia contemporânea como positivistas lógicos. Suas propostas estavam ancoradas numa crítica lógica severa e num empirismo restrito que culminava numa condenação da metafísica até então praticada pela filosofia tradicional.

Após a guerra, Waismann tornou-se, em parte graças à indicação de Karl Popper, titular de filosofia da ciência em Oxford. Em sua trajetória filosófica acompanhou de perto as mudanças no pensamento de Ludwig Wittgenstein, o principal inspirador, malgré lui, das teses do Círculo e depois das idéias do Grupo de Oxford e da chamada filosofia analítica.

O texto Verifiability de Waismann toma como tema uma questão central para o antigo Círculo de Viena. Segundo o princípio de verificabilidade, somente sentenças que tivessem o caráter disposicional de serem passíveis de verificação poderiam ser consideradas sentenças com sentido. Sentenças que não pudessem ser verificadas eram consideradas sem sentido. Para o positivismo lógico, o sentido de uma proposição é sua forma de verificação.

Proposições científicas podem, a princípio, ser verificadas e seriam, par excellence, proposições com sentido. Todavia, as proposições da ética, da religião, da estética e, por fim, da metafísica, eram rotuladas como proposições sem sentido e, no máximo, expressões das convicções pessoais inverificáveis daquele que as profere.

O princípio de verificabilidade recebeu fortes críticas de filósofos como Karl Popper, o qual gabava-se de haver destruído o Círculo de Viena. Se o princípio de verificabilidade fosse levado a sério, tornaria as leis naturais, base do conhecimento científico, proposições sem sentido, uma vez que nenhum enunciado universal pode ser jamais verificado. Por outro lado, qual o estatuto do princípio? Se ele não é analítico (cuja “verdade”, a priori, deduz-se da mera observação dos signos empregados), nem é sintético (cuja verdade ou falsidade se constata empiricamente), então o que é ele? Certamente, não é uma proposição com sentido. Alguns críticos afirmam que o princípio foi vítima de seu próprio veneno.

Waismann retoma o tema da verificabilidade para enunciar sua tese acerca da textura aberta da linguagem. O filósofo reinterpreta a regra “o sentido de uma sentença é seu método de verificação” esclarecendo o que se quer dizer com a expressão método de verificação. Quando queremos verificar se uma bola de metal está carregada com eletricidade nós a ligamos a um eletroscópio e vemos se ela registra alteração. Em caso de resposta afirmativa, verificamos a sentença que dizia estar a bola de metal carregada eletricamente.

O que fizemos foi inferir que a sentença observacional acerca da alteração registrada pelo eletroscópio segue-se da sentença que afirmava estar a bola de metal carregada de eletricidade. Ou seja, formulamos uma regra de inferência ou determinamos algo de sua gramática, das regras de seu uso:

"Fazendo isso eu conecto uma sentença à outra, a torno parte de um sistema de operações, a incorporo numa linguagem, em suma, determino a forma em que ela é usada. Neste sentido, verificar uma sentença é uma importante parte de dar seu uso, ou posto de outro modo, explicar sua verificação é dar uma contribuição à sua gramática." (WAISMANN, p. 117)

Entretanto, a tese central de Waismann é justamente a afirmação de que é impossível verificar definitivamente uma sentença. Isto se deve ao que o filósofo chama de textura aberta da linguagem. Se queremos verificar, por exemplo, se há um gato na outra sala, podemos ir até lá e ver com nossos próprios olhos. Mas será suficiente? Não devemos também, porventura, tocar nele, afagá-lo e ver se ele mia? E se depois dessa verificação o gato tiver algum comportamento bizarro, como crescer enormemente ou morrer e ressuscitar diversas vezes? Direi que se trata de um outro ser qualquer ou de um gato, ainda que extraordinário ?

Tais casos mostrariam que, ainda que jamais essas coisas acima elencadas aconteçam empiricamente, de um ponto de vista lógico não é possível chegar a uma verificação completa e definitiva de uma sentença. E isso pelo simples fato de que jamais podemos prever todas as circunstâncias em que um conceito deve ser usado. Podemos determinar o uso de um conceito em suas formas mais comuns ou paradigmáticas, mas jamais podemos fazê-lo em todas as direções possíveis.

A textura aberta é, em poucas palavras, a possibilidade de vagueza. Ou seja, os conceitos são potencialmente vagos, pois não se pode determinar de antemão todas as regras para seu uso. De fato podemos solucionar a vagueza de um determinado conceito estreitando seu sentido, dando regras mais estritas para seu emprego. No entanto, qualquer afinação de conceitos jamais dará conta de todas as possibilidades. Sempre haverá a possibilidade de que um dia surja um contexto em que a aplicação de um conceito torne-se problemática, por mais definido que seu uso seja.

Segundo Waismann, isso impede uma verificação completa de toda e qualquer sentença. No caso de sentenças que descrevem eventos empíricos, a situação tem um outro agravante. Qualquer descrição é sempre incompleta, pois jamais se pode dar conta de todos os aspectos de um objeto empírico. Por mais aspectos a que nos atenhamos em uma descrição (cor, tamanho, textura, composição química, etc...) sempre será possível incluir algo mais. Nenhuma descrição pode ser exaustiva. Há uma inerente incompletude quando se trata de descrições.

Ambos os fatores acima assinalados, a textura aberta e a incompletude de toda discrição, contribuem para o inevitável fracasso de qualquer tentativa de uma verificação definitiva das sentenças. Contudo, embora aliados, estes fatores desempenham papéis diferentes no problema da verificação. No caso da incompletude, o que temos é a impossibilidade de dar conta de todos os aspectos de um objeto qualquer. No outro caso, o da textura aberta, não se pode sequer prever quais situações novas poderiam surgir para a aplicação do conceito.

A segunda característica torna-se o sinal distintivo das sentenças que compõem nosso conhecimento fatual. A diferença entre sistemas formais (lógica e matemática) e nosso conhecimento fatual residiria justamente no fato de que nos sistemas formais há uma textura fechada, ou seja, as regras para os usos dos conceitos em jogo já estão dadas de antemão. Como no jogo de xadrez, a função e o comportamento das peças está determinado desde o início. Não há surpresas. Entretanto, nosso conhecimento fatual não tem esse privilégio. Ele é marcado pela textura aberta. Há sempre a possibilidade de algo não previsto ocorrer.

O filósofo H. L. A. Hart, professor of jurisprudence, foi contemporâneo de Waismann na universidade de Oxford quando este era professor de filosofia da ciência. Sua obra principal, The Concept of Law, tem um capítulo dedicado ao que ele chamou, numa referência a Waismann, a textura aberta das leis. Sua tese é que toda lei jurídica tem um componente de vagueza. Em algum momento, toda lei apresentará casos em que sua aplicação suscitará dívidas e dificuldades. Isto se deve ao fato de que a própria linguagem na qual as leis são formuladas sofre dessa textura aberta.

Podemos regular e transmitir padrões de comportamento através de exemplos e de legislação. No primeiro caso, aquele que deve ser educado nas regras e costumes de um determinado grupo humano, observa o comportamento dos demais ou de alguém que para ele represente uma autoridade no que tange aos parâmetros socialmente aceitos de conduta. Assim fazendo, ele aprende como se portar. Ao ver, por exemplo, o pai (uma autoridade) tirando o chapéu ao entrar na igreja, o menino imita o comportamento paterno e toma-o como algo a ser repetido cada vez que entrar na igreja.

Tal aprendizado não é livre de dúvidas e de algum caráter de vagueza. Perguntas podem surgir na mente do aprendiz, tais como: "Devo imitar meu pai até que ponto? Devo recolocar o chapéu após entrar na Igreja? Devo tirá-lo com a mão esquerda ou com a direita?" Pareceria a muitos que uma comunicação de padrões gerais de conduta através formas gerais explícitas de linguagem resolveria essas questões duvidosas.

Segundo Hart, essa idéia não se sustenta, pois regras gerais e explícitas podem suscitar e, eventualmente suscitam, dúvidas quanto a sua aplicação. Há a textura aberta da lei. Analogamente à textura aberta dos conceitos, onde não se podia de antemão dar todas as regras de uso de conceitos pois não se pode prever todas as possíveis situações de sua aplicação, a textura aberta das leis mostra que não é possível prever todos os casos onde a regra deve ser aplicada. Há regiões nebulosas, imprevistas, que tornam duvidosa a aplicação das leis.

Uma lei explícita que dissesse: "É proibido a entrada de veículos no parque" poderia enfrentar problemas na eventualidade de definir o são "veículos". No parque não entram veículos. Mas e quanto a patins? Skates? Carrinhos elétricos infantis? Que decisão se deve tomar? Pode-se explicitar o sentido de "veículos" a fim de incluir todos ou excluir alguns ou excluir todos os casos acima apresentados? 

Segundo Hart:

"Diante da questão se a regra proibindo veículos no parque é aplicável a alguma combinação de circunstâncias a qual pareça indeterminada, tudo o que a pessoa chamada a responder pode fazer é considerar (como faz quem considera um precedente) se o presente caso se assemelha o 'suficiente' ao caso-padrão em aspectos 'relevantes'. A liberdade de ação dada pela linguagem à ela pode ser muito grande; tal que, se ela aplica a regra, a conclusão será, embora possa não ser irracional ou arbitrária, com efeito, uma escolha. (HART, p. 124)

Qualquer que seja a escolha feita ela será uma decisão não estrita e logicamente inferida da regra geral. Ao contrário, a idéia de uma jurisprudência mecânica onde a aplicação da lei é uma clara e necessária inferência lógica da regra universal deve ser abandonada. Há sempre a possibilidade, não importa o quanto refinemos os termos lingüísticos, de que surjam casos onde as regras para aplicação dos termos não tenham sido previstas. No caso das regras jurídicas, as decisões e as escolhas, terão seus critérios que dependem de muitos e complexos fatores do sistema legal e sobre os propósitos e objetivos atribuídos à regra.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Paul Feyerabend e a ciência como forma de vida


"Galileu progrediu mudando as ligações familiares entre palavras e palavras (introduzindo novos conceitos), entre palavras e sensações (introduzindo novas interpretações naturais), recorrendo a princípios novos , desconhecidos (como sua lei de inércia e seu princípio da relatividade universal) e alterando o núcleo sensorial dos enunciados de observação. Ele foi estimulado pelo desejo de adaptar o ponto de vista copernicano. O copernicanismo se choca claramente com certos fatos evidentes, é incompatível com princípios bem estabelecidos e não é ajustado à “gramática“ da linguagem ordinária falada. Enfim, não é ajustado às “formas de vida” que contêm esses fatos e princípios e essas regras de gramática. Mas nem as regras nem os princípios são sacrossantos. (...) Podemos então mudar, criar novos fatos e novas regras gramaticais." PAUL FEYERABEND



No trecho acima citado do capítulo 13 do Against Method, Paul Feyerabend interpreta a atividade científica como um jogo de linguagem e o copernicanismo como uma forma de vida.


Ora, Galileu estava em franca oposição à gramática do jogo aristotélico. O que ele faz é mostrar aos aristotélicos que diversos termos usados usualmente em seu jogo de linguagem podem ser reinterpretados (no caso, com o intuito de salvar a teoria de Copérnico).

Ou seja, Galileu mostra novas situações (ainda que muitas vezes somente em experimentos mentais), totalmente imprevistas pelos aristotélicos, onde as regras usuais de uso dos termos encontram dificuldades em sua aplicação. Galileu apresenta a textura aberta dos conceitos usados pelos aristotélicos.

No caso do conceito de movimento, que em Aristóteles tem implicações físicas e metafísicas, Galileu o reinterpreta reduzindo-o à locomoção espaço-temporal. Não mais o movimento como passagem de potência para ato, a queda como “tendência para ocupar seu lugar natural”, e sim o movimento como simples locomoção de um ponto geometricamente determinado à outro.

A observação, Galileu a reinterpreta não mais como uma evidência imediata, mas como uma evidência a ser julgada pelo raciocínio (a observação pode ser reinterpretada por meio do raciocínio especulativo).

Como no caso do movimento terrestre, cuja negação parece clara pela evidência empírica imediata de que o Sol se movimenta no horizonte. Ao contrário, Galileu afirma que a evidência empírica, ainda que constante e duradoura, pode estar errada e, no fim, ser somente uma ilusão. O raciocínio pode evidenciar seu erro.

Galileu toma um fato conhecido dos aristotélicos e o reinterpreta como o paradigma de seu novo jogo (semelhanças de família?). A queda retilínea aos pés da torre de uma pedra lançada de seu topo parece refutar o movimento terrestre.

No entanto, são conhecidos os casos onde dois ou mais movimentos de um determinado objeto ocorrem ao mesmo tempo, como o caso do desenhista que usa sua pena para desenhar dentro de um barco que descreve uma curva em sua navegação. Qual o movimento real da pena, aquele que ela compartilha com o barco, o arco descrito no mar ou o movimento imposto pelo desenhista em seu desenho?

Não pode ser que o mesmo ocorra com o caso da torre? Que a pedra compartilhe do movimento da terra e, ao mesmo tempo, se movimente em queda para os pés da torre? No caso, qual seu movimento real? O movimento que se observa imediatamente pode não ser absoluto, mas relativo. Galileu usa contra os aristotélicos esses casos (generalizando-os) em que seus termos encontram situações não previstas.

Assim, Galileu dá algumas regras para um novo jogo de linguagem. Esse jogo se desenvolverá aos poucos, com o tempo. Como Feyerabend defende, qualquer idéia necessita de tempo para que se desenvolva e encontre ciências auxiliares que lhes dê a evidência necessária.

Este é o sentido do anything goes de Feyerabend. Qualquer teoria, por mais absurda e sem apoio empírico que seja, pode se tornar relevante, pois pode, quem sabe, romper com hábitos metodológicos e mentais e com o engessamento de certas regras de um jogo determinado.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Koyré, racionalidade e história da ciência



O grande Alexandre Koyré dizia que a história do historiador é o resultado de uma escolha. E até de uma dupla escolha. Em primeiro lugar, a escolha dos contemporâneos que preservaram em anais, manuscritos e livros determinados acontecimentos que lhes pareceram de importância.

Em segundo lugar, o historiador escolhe o material que herdou segundo suas avaliações acerca da importância dos fatos relatados pelos antigos. Ele projeta no passado seus interesses e sua escala de valores empreendendo uma reconstrução a partir de suas próprias idéias.

Isso é inevitável, como bem assevera Koyré. Na história das idéias e, em particular, naquela da ciência, a reconstrução do passado se concentra também na avaliação racional das escolhas dos agentes históricos num determinado tempo e espaço.

Para determinar se o cientista ou pensador X foi racional em aceitar ou rejeitar determinada teoria T devemos ter, antes de tudo, uma boa e consistente teoria da racionalidade. O que fazer, por exemplo, se aparentemente o que foi racional para um aristotélico não se coaduna absolutamente, em seus fundamentos, com o que Galileu propunha?

Não se trata aqui de teorias divergentes sobre determinado fenômeno natural. Trata-se de ontologias, metodologias e teorias de racionalidade que não se podem conciliar. E nossas normas racionais, podem elas tratar determinar para o passado o que é racional?

O problema é: o histórico deve se dobrar ao normativo ou o normativo ao histórico?

Thomas Kuhn, diante da discordância entre nossas normas racionais e a história da ciência, relativizou aquelas para adaptar-se à esta. "Se sob o prisma de nossa racionalidade parte significante da história da ciência se mostraria irracional, então talvez nossa teoria da racionalidade é que seja por demais restritiva", pensou ele.

Feyerabend levou ao extremo esse conflito e defendeu que nenhuma teoria da racionalidade e nenhuma metodologia poderia descrever a história da ciência e que qualquer forma de imposição normativa à atividade científica seria deletéria para qualquer idéia de progresso que se tenha.

Larry Laudan assume esse desafio defendendo, espantosamente, a comparação de nossas teorias da racionalidade com casos históricos intuitivamente considerados como racionais. Ou seja, há casos na história em que a maioria das pessoas cientificamente educadas considera intuitivamente como racionais e são tais casos que devem ser usados como "touchstones" para avaliar qualquer teoria da racionalidade.

Não sei bem como solucionar esse problema, mas com certeza ele é um dos mais importantes da epistemologia contemporânea e tem sido, para mim, ocasião de estimulantes e frutíferas pesquisas.