sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Homenagem pessoal a Dom Odilão (continuação)

Sua didática no curso era admirável, sucinta e clara. As aulas eram permeadas pelo sabor da busca inteligente do conhecimento e da verdade, bem como por um clima de amizade respeitosa.

Antes das aulas, num banco de granito do lado da porta direita de entrada do mosteiro, Dom Odilão sentava-se, apoiado com as duas mãos em sua bengala, e recebia os alunos mais chegados para conversas livres sobre filosofia e espiritualidade.

Num desses dias, sentado ao seu lado, Dom Odilão fez-me um elogio que me marcou profundamente. Ele me disse que eu deveria sim me dedicar à filosofia e que um dia eu seria um grande filósofo. Não sei se sua profecia se realizará, se estou à altura dela, mas certamente suas palavras e sua generosidade foram decisivas para mim naquele momento de desorientação e cansaço.

Aquelas aulas renovaram em mim o ardor filosófico e marcaram indelevelmente minha vida intelectual posterior. Posso dizer, com orgulho e amor, que Dom Odilão foi meu mestre em filosofia e, se alguma virtude intelectual eu tenho, seja qual for, ela foi plantada naqueles cursos tanto pela sabedoria de Santo Tomás quanto pelo exemplo de Dom Odilão Moura.

Homenagem pessoal a Dom Odilão Moura OSB

Era o ano de 1998 e eu, recém saído da vida religiosa consagrada, achava-me num estado de tristeza e desorientação. Naquele ano difícil alguém me falou sobre um monge beneditino filósofo que dava cursos sobre Santo Tomás de Aquino.
Embora desde o meu ensino médio eu já houvesse tido os primeiros contatos com a filosofia e a teologia e tivesse estudado com afinco, por iniciativa própria, a Patrística e a Suma tomista nos meus anos de convento (reiteradas vezes desencorajado por meus superiores), ainda não havia estudado sob a orientação de um professor.
Então me deixei conduzir ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro para conhecer esse monge filósofo. Lembro-me de suas mãos perfumadas quando as beijei em sinal de respeito e de sua vivacidade.
Via-se nele uma força intelectual ímpar, um ardor pela verdade que se manifestava como rigor conceitual e espiritual. Mas acima de tudo, via-se a bondade enquanto vontade de compartilhar amorosamente, como um dom, as belezas e as verdades metafísicas mais profundas. Em suma, o desejo e o empenho em fazer o Criador conhecido e amado em sua admirável obra permeada de ordem e harmonia.
E ele, Dom Odilão Moura, ao saber de minhas predileções pela Sofia, imediatamente convidou-me para seu curso sobre As 24 Teses Fundamentais da Filosofia de Santo Tomás de Aquino, livro do dominicano Pe. Hugon que ele havia traduzido. Deu-me um exemplar do livro (o primeiro dos muitos livros com os quais me presenteou) e eu passei a freqüentar o curso.

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sábado, 23 de fevereiro de 2008

Um homem sem Weltanschaunng



"Se no homem não vive o que é mais elevado e mais forte do que todas as circunstâncias externas, então naturalmente lhe basta uma constipação para que perca o equilíbrio, e todo o seu pessimismo ou otimismo, incluindo seus grandes e pequenos pensamentos, têm apenas o significado de sintomas - nada além. "

ANTON TCHEKHOV

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Amor e iluminação

O amor é a expressão de nosso desterro, de nosso exílio do Éden, de nossa separação (ao menos aparente) do absoluto. Pode-se amar alguém e algo sem desviar-se da busca essencial ? Não é à toa que Platão fala de uma pedagogia ascendente no Banquete, onde do amor aos jovens belos e de um jovem belo, se sobe para a beleza dos belos corpos, das belas almas e por fim se chega gradativamente à Beleza em si, pura e imutável.

O que Platão quer apontar com isso? Não será que o amor a algo ou alguém em particular pode se tornar um obstáculo para a realização e conhecimento plenos ? Pode, mas não necessariamente. Talvez a resposta esteja precisamente numa hierarquização justa de nosso amor. Algo que faz com que o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas se revista de um tom novo revelando toda sua sabedoria. Buscar o absoluto sobre todas as coisas não é excluir-se de todas as coisas. É saber seu justo lugar, sua constituição, na hierarquia dos entes.

Tenho a impressão que essa justa hierarquização não seja um método, nem algo que se impõe a si como dever. Creio que seja, ela mesma, fruto de um contato, ainda que incompleto e imperfeito, com o transcendente. Algo como a astúcia que Platão identifica como uma das origens do amante e do filósofo. É algo que já somos. E a hierarquização justa vai nascendo como fruto dessas experiências.

Chamo isso de “ética iluminativa”, para indicar que ela não é uma normatização das ações, mas uma expressão da iluminação gradativa. A hierarquização justa é seu fruto e pode ser exemplificada pelo episódio da iluminação de Arjuna no Baghavad Gita. Antes da batalha contra seus parentes próximos, Arjuna questiona a validade daquela luta fratricida. A revelação de Krishnah, o condutor dos cavalos de seu carro, como a manifestação do absoluto, mostra a Arjuna a verdade suprema e, assim, o lugar de cada coisa no universo. Ele então não deixará de lutar ou de viver neste mundo entre as coisas deste mundo, mas ele estará entre elas iluminado, com uma justa hierarquização.

Não será que o amor não possa ser vivido também assim? Não será que o amor a alguém em particular não possa ser incluído numa justa hierarquia, na iluminação, sem que se torne obstáculo para o conhecimento de nossa verdadeira natureza?

Do amor

O amor aparece em Platão como falta, ausência e incompletude. Só ama aquele que sente-se incompleto. O filósofo ama a sabedoria justamente porque esta lhe é alheia. Se fosse sábio, não buscaria a sabedoria por já possuí-la. Entretanto, o filósofo não é o ignorante que não busca a sabedoria justamente porque a ignora. O filósofo, como Eros, é filho da penúria e da astúcia. Se não tem o que lhe faz falta, sabe no entanto o que lhe faz falta. Oscila sempre entre a pobreza e a opulência.

Em Aristóteles o cosmos tende à extaticidade do Motor Imóvel divino. Ele em nada interfere ou toma conhecimento. Ele é a causa final, o telos, o objetivo e a perfeição. E Aristóteles diz que o motor Imóvel move as coisas na qualidade de amado, ou seja, todas as coisas se movem por amor a ele, para alcançá-lo.

Se o amor é falta, como pode o completo, o sem-falta, amar? Como pode ele se compadecer? Bernardo de Clairvaux dizia que Deus não pode padecer, mas pode compadecer-se. Como, se compadecer-se é padecer junto?

O amor é uma das marcas distintivas do homem, pois é a expressão mesma de sua finitude e de sua incompletude. Só ama aquele que sente falta. Mas o amor a alguém em particular não é trair a busca principal do homem que é aquela pelo absoluto? O amor por alguém ou por algo neste mundo finito não é um sucedânio imperfeito, passageiro e ilusório daquilo que realmente sentimos falta: a completude absoluta, Deus?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mahakaruna


Alguns posts atrás tratei da relação entre deus e os homens inaugurada pelo cristianismo. Como Voegelin bem assinala, as descobertas dos filósofos gregos apontavam para um relacionamento unilateral entre o homem e o transcendente. São os homens que buscam o transcendente na condição de amantes, ou seja, daqueles que sentem a falta, que têm necessidade, enquanto o divino é perfeito e impassível na sua condição de amado. Isso pode ser dito com segurança tanto de Platão quanto de Aristóteles.

Com o cristianismo vêm a noção do divino que se inclina para o homem por pura gratuidade e amor. Entretanto, ao ler o livro Filosofia e Consciência do filósofo brasileiro Sérgio L. de C. Fernandes, deparei-me com a história budista do iluminado Vipassi que, questionando-se se deveria ensinar seu Dhamma (doutrina), a princípio nega-se a fazê-lo mas que depois de considerar a massa da humanidade e seus sofrimentos volta atrás e passa a ensinar.

Escreve Fernandes: "Como aconteceu séculos mais tarde entre os cristãos, estamos aqui na origem da filosofia oriental, no século VI AC, não como 'amizade' à Sabedoria, mas como Sabedoria perturbada pela Compaixão. Sendo a Sabedoria, por definição, imperturbável, sua perturbação pela compaixão - como, no cristianismo, pelo Amor - é um misterium tremendum."
A isto os budistas chamam Mahakaruna, a grande compaixão. Eis um ponto de contato interessante para ser estudado e explorado. Como pode o Imperturbável perturbar-se por compaixão dos sofrimentos dos homens?




A herança grega e o cientista

No ocidente, as coisas particulares e passageiras só importam enquanto instâncias, exemplares, daquilo que é geral e imutável, objeto próprio da mente humana.

Mesmo o cientista moderno somente se interessa pelo que é observado na medida em que isto pode lhe fornecer conhecimento do que é pra sempre inobservável: uma lei universal. Uma gota d`água particular só é interessante porque seu comportamento é uma instância (um exemplo, uma amostra) de um comportamento universal de todas as gotas do passado do presente e do futuro.

O que está à disposição da observação é a gota d`água aqui e agora que me diz de um comportamento que creio ser universal (de todas as gotas), pois jamais poderei vê-lo realizar-se em todas as suas instâncias particulares que são numericamente indefinidas, quiçá infinitas. Ao fim, o cientista se sente justificado para falar de “a gota d`água” e dizer que toda e qualquer gota d`água apresentará o mesmo comportamento em condições determinadas.

É claro que no caso do cientista o universal é encontrado graças à idéia de que a mera observação de instâncias passadas de um fenômeno permite a inferência de um comportamento universal e necessário. Como bem apontaram Al Ghazali, David Hume e Karl Popper isso é logicamente injustificado, pois da conexão constante na experiência não se infere o universal e necessário.

Mas o que interessa aqui é o traço fundamental que essa tentativa revela, ou seja, a busca pela Necessidade, pelo imutável, já apontada por Shestov.