quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Al Ghazali e o ocasionalismo divino


"...our opponent claims that the agent of the burning is the fire exclusively;’ this is a natural, not a voluntary agent, and cannot abstain from what is in its nature when it is brought into contact with a receptive substratum. This we deny, saying: The agent of the burning is God, through His creating the black in the cotton and the disconnexion of its parts, and it is God who made the cotton burn and made it ashes either through the intermediation of angels or without intermediation. For fire is a dead body which has no action, and what is the proof that it is the agent? Indeed, the philosophers have no other proof than the observation of the occurrence of the burning, when there is contact with fire, but observation proves only a simultaneity, not a causation, and, in reality, there is no other cause but God. "

Al Ghazali (1058-1111), filósofo, jurista, médico e místico sufi persa.


O trecho citado é um dos mais famosos do Tahafut Al-Falasifa (A Incoerência dos Filósofos), livro onde Al Ghazali refuta as teses da filosofia grega mostrando sua incoerência. Segundo alguns, o Tahafut marca uma virada na filosofia islâmica na qual o ceticismo sobre o alcance da razão humana e o ocasionalismo divino solapam a possibilidade de um conhecimento científico.

Se as relações de causa e efeito não se dão por força da natureza das coisas envolvidas e sim por um ato de vontade livre de Deus, que poderia fazer exatamente o contrário do que Ele tem feito, então a possibilidade de um conhecimento veraz da natureza sob o prisma humano fica permanentemente afastada.

Assim sendo, ao homem resta a submissão de sua vontade e inteligência a Deus (o significado etimológico de Islam), a obediência aos Seus preceitos e às devoções de sua tarica.

Ao que parece, a obra de Al Ghazali não teve muito impacto no ocidente cristão influenciado pela obra de um outro islâmico, Ibn Rushid (Averróis). Este, por sinal, escreveu o Tahafut al Tahafut (A Incoerência da Incoerência) tentando refutar Al Ghazali.

No ocidente medieval, a especulação filosófica e a defesa da capacidade da razão humana para um conhecimento veraz da natureza foram levadas à frente por São Tomás de Aquino, um admirador confesso de Ibn Rushid, que rejeitou firmemente o ocasionalismo e enfatizou a racionalidade da ação e da obra de Deus sem descuidar de seu aspecto transcendente.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Thomas Kuhn e as ambigüidades da refutabilidade


"O que é exato no que concerne à posição de Sir Karl (...) é a idéia da testabilidade em princípio. (...) O que é vago, no entanto, com respéito à minha posição são os critérios reais (se é isto que se requer) que devem ser aplicados quando se decide que determinada incapacidade de resolução de enigmas (puzzles) há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, tornando-se assim uma ocasião de grande preocupação. Essa decisão, contudo, é idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão vago quanto eu."

Thomas Kuhn em Reflexões sobre meus críticos, pag.306

Lendo essa passagem de Kuhn, veio-me a vontade de escrever um artigo sobre a problemática do falseamento em Popper, artigo publicado na Alter que transcrevo abaixo em três partes. É interessante notar como os pós-popperianos se mantém, de alguma forma, fiéis à questão da refutabilidade e do falseamento e, aprofundando-se nela, tornam claro suas diversas dificuldades e revelam aspectos da atividade científica não compreendidos por Popper.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Pascal et les pyrrhoniens



"Que fera donc l' homme dans cet état? Doutera-t-il de tout? Doutera-t-il s'il veille, si on le pince, si on le brûle? Doutera-t-il s'il doute? Doutera-t-il s'il est? On n'en peut venir là, et je mets en fait qu'il n'y a jamais eu de pyrrhonien effectif parfait. La nature soutient la raison impuissante et l'empêche d'extravaguer jusqu'à ce point."

BLAISE PASCAL, Pensées, fragment 122

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O divino é lótus florescendo



Se há uma dicotomia na filosofia indiana, não é certamente entre corpo e alma ou matéria e espírito como no ocidente. O corte, como testemunham os Upanishads, está situado entre determinado e indeterminado. De um lado estão entrelaçados determinação, limite, substancialidade, forma, multiplicidade, mudança, ego, vida-morte-e-renascimento. Do outro, está o indeterminado, " o que não tem nome ou forma", o infinito e o eterno.

No Budismo a doutrina do Anatma, da não-substancialidade do EU tem seu desenvolvimento na negação de Nagarjuna Acarya da substancialidade de todos os fenômenos. Para ele as coisas são dependentemente originadas. Se elas dependem de outras, não têm natureza intrínseca e não são subsistentes por si mesmas. Elas são SUNYA, vazio, ausência de natureza intrínseca e independente. Em outras palavras, as coisas não são coisas.

Sankara Acarya, o filósofo Vedantino ortodoxo, que sofreu influência de Nagarjuna por meio de seu mestre Gaudapada Acarya, também nega a realidade última dos fenômenos determinados em favor de Brahman Nirguna, o indeterminado. Brahman é a verdadeira natureza, a "substância" por trás das coisas passageiras. Mas dessa substância nada se pode dizer, pois é sem limites, "sem outro", infinita. É o indeterminado que possibilita o determinado.

Sankara e Nagarjuna parecem agarrar o mesmo elefante por partes diferentes. Se é verdade que as coisas dependentemente originadas não têm natureza intrínseca e independente como quer Nagarjuna, é também verdade que as coisas não vêm do nada. Algum solo imutável é necessário. Sankara afirmaria ser esse solo Brahman Nirguna. Mas Brahman não é algo, uma coisa, nada de determinado. O que dizer de "algo" sem determinações a não ser que ele é nada?

Essa disputa pode ser harmonizada somente na idéia de que o solo imutável é a infinita possibilidade de determinações. Possibilidade não é nada determinado, mas dá azo à determinações. Tampouco é nada, embora não sendo algo. É aí que está o divino, na perpétua possibilidade de ser, de seres.

O divino é a infinita possibilidade de determinação. O divino é lótus florescendo.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Émil Cioran e Deus



"Eu não sou ateu, ainda que não creia em Deus e não reze. Mas há em mim uma dimensão religiosa indefinível, para além de toda fé. O crente se identifica com Deus, o que pode compreender, mas eu mesmo me sinto distante de tudo isso. Eu me movo na linha divisória. A grande idéia do pecado original do ser humano é compartilhada por mim, mas não no modo como se pensa oficialmente sobre o assunto. Tanto a História como também o homem são, queiramos ou não, produtos de uma catástrofe. A idéia do desvio do ser humano é imprescindível para se entender o desenvolvimento da História. Segundo essa idéia, o ser humano é culpado, não no sentido moral, mas por ter se envolvido nessa aventura."


Émil Cioran, em entrevista em 1995 pouco antes de seu falecimento.

A última pergunta do rei Milinda




Certa vez o grande Milinda, ou Menadro, rei dos Yonakas, passeava à beira de um lago imóvel coberto de flores de lótus. Refletia ele nos ensinamentos do Buddha Gautama.


Uma dúvida invadiu-lhe a mente e ele ordenou aos Yonakas que lhe trouxessem o monge Nagasena.


Quando este chegou, o grande Milinda lhe perguntou:


-Nagasena, o que resta quando o eu desvanece?


O monge, sorrindo gentilmente, em silêncio apontou para o lago coberto de lótus.


Então o rei Milinda iluminou-se.

domingo, 26 de outubro de 2008

Bayt Al-Hikmah




Bayt al-Hikmah ou "casa da Sabedoria" foi criada pelo califa abássida de Bagdá, Harun Al-Rashid e levada adiante por seu filho, o califa Al-Mamum, no século 9 DC com o objetivo de traduzir para o árabe obras de filósofos, médicos e poetas da antiguidade grega clássica, persa e indiana disponibilizando-as livremente para consulta e estudo. Graças a tal esforço, as obras gregas esquecidas no Ocidente após a queda de Roma e a formação dos reinos bárbaros foram preservadas no Oriente e posteriormente redescobertas pelos europeus na Idade Média.

sábado, 18 de outubro de 2008

Plato



" (He) is a lover of wisdom all his life (...) He is neither mortal nor immortal; but on one and the same day he will live and flourish, and also meet his death; and then come to life again (...) What he wins he always loses, and is neither rich nor poor, neither wise nor ignorant."

PLATO, Symposium

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Marcel Proust



Marcel Proust é meu autor preferido e após ler o ciclo de Em Busca do Tempo Perdido, resolvi escrever um artigo sobre um episódio dessa obra. O artigo foi selecionado e publicado na Revista Eletrônica Arte e Existência e disponibilizo aqui o link:http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/existenciaearte/Edicoes/3_Edicao/Rogerio%20Oleniski%20LITERATURA%20E%20FILOSOFIA.pdf

quarta-feira, 25 de junho de 2008

DEAD CAN DANCE



"We made medicine for ourselves and hopefully make medicine for other people. A way out. A way to the familiar..."
LISA GERRARD, 1993



Todas as épocas têm seus clássicos. Obras que combinam em si mesmas a expressão exata da sensibilidade de seu tempo e a porção indefinível do que há no mundo de atemporal e universal. Certamente um dos maiores clássicos dos anos 80 (que nem por isso se tornou um fenômeno comercial de vendas), foi o grupo DEAD CAN DANCE formado por Lisa Gerrard e Brendan Perry. Ele, um músico irlandês e ela, uma australiana nascida numa região onde se misturavam as etnias, as línguas e os sons de imigrantes indianos, árabes, persas e africanos.


Dessas influências, acrescidas da música medieval e renascentista do Ocidente europeu, nasce o estilo do DEAD CAN DANCE. Inicialmente ligado ao darkwave britânico e ao cenário post-punk/gótico (influência nítida no primeiro disco que traz algo da sonoridade opressiva do Joy Division), a dupla, aos poucos, vai se libertando das amarras da estética dark e avança para uma sonoridade verdadeiramente inclassificável que pouco fica à vontade na categoria de world music.


Alguém me disse, ao ouvir DCD pela primeira vez, que o som deles era "New Age demais". Decerto, boa parte das Enyas e afins tiveram sua inspiração no DCD e em bandas como This Mortal Coil e Cocteau Twins (todas da gravadora 4AD por sinal), mas definitivamente DCD não faz música no mesmo espírito água-com-açúcar-para-meditação que caracteriza boa parte desse gênero hoje em dia.


DCD é algo mais profundo. Não é simplesmente música "bonita e relaxante". DCD é uma meditação. Uma meditação sobre a condição humana e sobre as relações entre o humano e o divino, entre o temporal e o eterno. Pode se tornar tanto um canto de júbilo glossolálico na voz maviosa de Lisa como também um tortuoso questionamento existencial nas letras de Perry. Em DCD tudo é perfeitamente humano, até mesmo aquilo que trata do divino.


No cômputo final da década de oitenta, entre outras bandas também imortais, DEAD CAN DANCE certamente ocupa um lugar de destaque por sua qualidade musical, seu experimentalismo e fineza de estilo, mas principalmente por sua inigualável profundidade humana.


sábado, 3 de maio de 2008

Berdiaev, Liberdade e Bem Absoluto


Visão de Deus - William Blake


Berdiaeff afirma que o bem não pode ser imposto de fora para o homem, mas sim acolhido num ato de vontade livre que pressupõe inclusive a possibilidade da renúncia ao bem e a escolha destruidora do mal. É por querer ser escolhido livremente e não por imposição que, segundo Berdiaeff, Deus cria o homem livre. E é por isso que Deus não cria um mundo perfeito como gostaria Ivan Karamazov.


Mas Berdiaeff está enganado. Embora esteja certo em negar que o bem deva ser imposto, uma distinção importante lhe escapa. No mundo é difícil distinguir e conhecer o que é bom. Nem aquele que pretende impor o bem nem aquele a quem o bem é imposto podem ter certeza do caráter de bondade daquilo que é oferecido.


Entretanto, Deus não se impõe. Deus é reconhecido. Reconhece-se nele o ente absoluto e a fonte de tudo e, por conseguinte, o bem absoluto. Não há liberdade aqui simplesmente porque ela não é necessária. Não há escolha possível , pois Deus é, como dizia Abelardo, "onde os desejos serão satisfeitos antes mesmo de serem concebidos e a satisfação não será menor que o desejo".


A idéia de Berdiaeff de que Deus não quer se impor ao homem se torna insustentável uma vez que o bem absoluto não se impõe, mas é irresistivelmente reconhecido como tal. Uma vez diante Dele nada há que escolher.

Assim, é perfeitamente claro que Deus poderia criar os homens com plena e completa comunhão com Ele sem absolutamente nenhum prejuízo para a dignidade dos mesmos.

domingo, 13 de abril de 2008

Utopia and violence




" Do not allow your dreams of a beautiful world to lure you away from the claims of men who suffer here and now. Our fellow men have a claim to our help; no generation must be sacrificed for the sake of future generations, for the sake of an ideal of happiness that may never be realized. In brief, it is my thesis that human misery is the most urgent problem of a rational public policy and that happiness is not such a problem. The attainment of happiness should be left to our private endeavours. "

SIR KARL POPPER

sábado, 15 de março de 2008

Céus de Mishima




Com que então pertenço aos céus?
Não fosse assim, por que é que os céus
Me olhariam assim com seu eterno olhar azul,
Me chamando, e à minha mente, mais alto,
Sempre mais alto, sempre mais acima,
Me chamando sempre para o máximo,
Para alturas que homem algum imagina?
Por que, estudado o equilíbrio
E o vôo planejado até a última minúcia,
Até não haver margem para o infortúnio,
Por que, até aí, deve a ânsia de subir
Ser associada à insânia?
Nada nesta terra vai me ver satisfeito;
Novidades do mundo, logo monótonas;
Algo me chama lá em cima, para cima,
Cada vez mais perto da faísca do sol.
Por que me queimam estes raios da razão.
Por que me destroem estes raios?

Trecho do poema "Ícaro" de Yukio Mishima, traduzido por Paulo Leminski

quinta-feira, 6 de março de 2008

Da irresistibilidade divina

Shestov dizia que toda a função e objetivo da filosofia se resumia na busca pela Necessidade e na pregação de uma submissão servil à ela. No fim das contas, a idéia de verdade traz em si a marca do constrangimento.
Frente à verdade, todo e qualquer ser racional sente-se constrangido, obrigado à se curvar. Shestov talvez não tenha percebido, mas nada há de mais constrangedor do que Deus. Que rebeldia, que escolha, que liberdade pode se ter diante do Absoluto? Como Lúcifer pode cair, em favor de que outro pode ele se rebelar, se nada há além de Deus?
É somente na ignorância do Absoluto que se pode pecar, escolher, errar, padecer e, enfim, ter livre-arbítrio... Não se tergiversa diante do Único. Perde-se a si mesmo irresistivelmente Nele.

Da monotonia estéril

O que quero quando argumento? Qual meu objetivo quando, exposta a tese de meu interlocutor, passo a analisá-la, a confrontá-la com teses contrárias, a desfiar o rol de suas conseqüências? Que outra coisa senão o esclarecimento da própria questão e dos requisitos de sua solução? Algo mais se agita na profundidade.

Meu movimento de cerco, aracnídeo, tece com o objetivo de imobilizar. Não há nisso algo de vingativo? “Como pode ele ainda propor teoria? Como pode, despudoradamente expor uma intuição, ter o frescor inocente da confiança?” Então parto para converter o infiel para minha seita de impotência e de cansaço. Conduzo-o, insidiosamente, pelos caminhos da palavra à morte do mutismo.

Faço-o ver que sua confiança inocente é culpada de loucura. É viva demais, indecente. Há que se tornar lúcido, ou seja, morto. Meus argumentos são os instrumentos que uso para proibí-lo de ser outra coisa que não seja eu. No fundo, é o desejo de uma monotonia estéril. É o imperialismo dos impotentes.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Homenagem pessoal a Dom Odilão (continuação)

Sua didática no curso era admirável, sucinta e clara. As aulas eram permeadas pelo sabor da busca inteligente do conhecimento e da verdade, bem como por um clima de amizade respeitosa.

Antes das aulas, num banco de granito do lado da porta direita de entrada do mosteiro, Dom Odilão sentava-se, apoiado com as duas mãos em sua bengala, e recebia os alunos mais chegados para conversas livres sobre filosofia e espiritualidade.

Num desses dias, sentado ao seu lado, Dom Odilão fez-me um elogio que me marcou profundamente. Ele me disse que eu deveria sim me dedicar à filosofia e que um dia eu seria um grande filósofo. Não sei se sua profecia se realizará, se estou à altura dela, mas certamente suas palavras e sua generosidade foram decisivas para mim naquele momento de desorientação e cansaço.

Aquelas aulas renovaram em mim o ardor filosófico e marcaram indelevelmente minha vida intelectual posterior. Posso dizer, com orgulho e amor, que Dom Odilão foi meu mestre em filosofia e, se alguma virtude intelectual eu tenho, seja qual for, ela foi plantada naqueles cursos tanto pela sabedoria de Santo Tomás quanto pelo exemplo de Dom Odilão Moura.

Homenagem pessoal a Dom Odilão Moura OSB

Era o ano de 1998 e eu, recém saído da vida religiosa consagrada, achava-me num estado de tristeza e desorientação. Naquele ano difícil alguém me falou sobre um monge beneditino filósofo que dava cursos sobre Santo Tomás de Aquino.
Embora desde o meu ensino médio eu já houvesse tido os primeiros contatos com a filosofia e a teologia e tivesse estudado com afinco, por iniciativa própria, a Patrística e a Suma tomista nos meus anos de convento (reiteradas vezes desencorajado por meus superiores), ainda não havia estudado sob a orientação de um professor.
Então me deixei conduzir ao Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro para conhecer esse monge filósofo. Lembro-me de suas mãos perfumadas quando as beijei em sinal de respeito e de sua vivacidade.
Via-se nele uma força intelectual ímpar, um ardor pela verdade que se manifestava como rigor conceitual e espiritual. Mas acima de tudo, via-se a bondade enquanto vontade de compartilhar amorosamente, como um dom, as belezas e as verdades metafísicas mais profundas. Em suma, o desejo e o empenho em fazer o Criador conhecido e amado em sua admirável obra permeada de ordem e harmonia.
E ele, Dom Odilão Moura, ao saber de minhas predileções pela Sofia, imediatamente convidou-me para seu curso sobre As 24 Teses Fundamentais da Filosofia de Santo Tomás de Aquino, livro do dominicano Pe. Hugon que ele havia traduzido. Deu-me um exemplar do livro (o primeiro dos muitos livros com os quais me presenteou) e eu passei a freqüentar o curso.

...

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Um homem sem Weltanschaunng



"Se no homem não vive o que é mais elevado e mais forte do que todas as circunstâncias externas, então naturalmente lhe basta uma constipação para que perca o equilíbrio, e todo o seu pessimismo ou otimismo, incluindo seus grandes e pequenos pensamentos, têm apenas o significado de sintomas - nada além. "

ANTON TCHEKHOV

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Amor e iluminação

O amor é a expressão de nosso desterro, de nosso exílio do Éden, de nossa separação (ao menos aparente) do absoluto. Pode-se amar alguém e algo sem desviar-se da busca essencial ? Não é à toa que Platão fala de uma pedagogia ascendente no Banquete, onde do amor aos jovens belos e de um jovem belo, se sobe para a beleza dos belos corpos, das belas almas e por fim se chega gradativamente à Beleza em si, pura e imutável.

O que Platão quer apontar com isso? Não será que o amor a algo ou alguém em particular pode se tornar um obstáculo para a realização e conhecimento plenos ? Pode, mas não necessariamente. Talvez a resposta esteja precisamente numa hierarquização justa de nosso amor. Algo que faz com que o mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas se revista de um tom novo revelando toda sua sabedoria. Buscar o absoluto sobre todas as coisas não é excluir-se de todas as coisas. É saber seu justo lugar, sua constituição, na hierarquia dos entes.

Tenho a impressão que essa justa hierarquização não seja um método, nem algo que se impõe a si como dever. Creio que seja, ela mesma, fruto de um contato, ainda que incompleto e imperfeito, com o transcendente. Algo como a astúcia que Platão identifica como uma das origens do amante e do filósofo. É algo que já somos. E a hierarquização justa vai nascendo como fruto dessas experiências.

Chamo isso de “ética iluminativa”, para indicar que ela não é uma normatização das ações, mas uma expressão da iluminação gradativa. A hierarquização justa é seu fruto e pode ser exemplificada pelo episódio da iluminação de Arjuna no Baghavad Gita. Antes da batalha contra seus parentes próximos, Arjuna questiona a validade daquela luta fratricida. A revelação de Krishnah, o condutor dos cavalos de seu carro, como a manifestação do absoluto, mostra a Arjuna a verdade suprema e, assim, o lugar de cada coisa no universo. Ele então não deixará de lutar ou de viver neste mundo entre as coisas deste mundo, mas ele estará entre elas iluminado, com uma justa hierarquização.

Não será que o amor não possa ser vivido também assim? Não será que o amor a alguém em particular não possa ser incluído numa justa hierarquia, na iluminação, sem que se torne obstáculo para o conhecimento de nossa verdadeira natureza?

Do amor

O amor aparece em Platão como falta, ausência e incompletude. Só ama aquele que sente-se incompleto. O filósofo ama a sabedoria justamente porque esta lhe é alheia. Se fosse sábio, não buscaria a sabedoria por já possuí-la. Entretanto, o filósofo não é o ignorante que não busca a sabedoria justamente porque a ignora. O filósofo, como Eros, é filho da penúria e da astúcia. Se não tem o que lhe faz falta, sabe no entanto o que lhe faz falta. Oscila sempre entre a pobreza e a opulência.

Em Aristóteles o cosmos tende à extaticidade do Motor Imóvel divino. Ele em nada interfere ou toma conhecimento. Ele é a causa final, o telos, o objetivo e a perfeição. E Aristóteles diz que o motor Imóvel move as coisas na qualidade de amado, ou seja, todas as coisas se movem por amor a ele, para alcançá-lo.

Se o amor é falta, como pode o completo, o sem-falta, amar? Como pode ele se compadecer? Bernardo de Clairvaux dizia que Deus não pode padecer, mas pode compadecer-se. Como, se compadecer-se é padecer junto?

O amor é uma das marcas distintivas do homem, pois é a expressão mesma de sua finitude e de sua incompletude. Só ama aquele que sente falta. Mas o amor a alguém em particular não é trair a busca principal do homem que é aquela pelo absoluto? O amor por alguém ou por algo neste mundo finito não é um sucedânio imperfeito, passageiro e ilusório daquilo que realmente sentimos falta: a completude absoluta, Deus?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Mahakaruna


Alguns posts atrás tratei da relação entre deus e os homens inaugurada pelo cristianismo. Como Voegelin bem assinala, as descobertas dos filósofos gregos apontavam para um relacionamento unilateral entre o homem e o transcendente. São os homens que buscam o transcendente na condição de amantes, ou seja, daqueles que sentem a falta, que têm necessidade, enquanto o divino é perfeito e impassível na sua condição de amado. Isso pode ser dito com segurança tanto de Platão quanto de Aristóteles.

Com o cristianismo vêm a noção do divino que se inclina para o homem por pura gratuidade e amor. Entretanto, ao ler o livro Filosofia e Consciência do filósofo brasileiro Sérgio L. de C. Fernandes, deparei-me com a história budista do iluminado Vipassi que, questionando-se se deveria ensinar seu Dhamma (doutrina), a princípio nega-se a fazê-lo mas que depois de considerar a massa da humanidade e seus sofrimentos volta atrás e passa a ensinar.

Escreve Fernandes: "Como aconteceu séculos mais tarde entre os cristãos, estamos aqui na origem da filosofia oriental, no século VI AC, não como 'amizade' à Sabedoria, mas como Sabedoria perturbada pela Compaixão. Sendo a Sabedoria, por definição, imperturbável, sua perturbação pela compaixão - como, no cristianismo, pelo Amor - é um misterium tremendum."
A isto os budistas chamam Mahakaruna, a grande compaixão. Eis um ponto de contato interessante para ser estudado e explorado. Como pode o Imperturbável perturbar-se por compaixão dos sofrimentos dos homens?




A herança grega e o cientista

No ocidente, as coisas particulares e passageiras só importam enquanto instâncias, exemplares, daquilo que é geral e imutável, objeto próprio da mente humana.

Mesmo o cientista moderno somente se interessa pelo que é observado na medida em que isto pode lhe fornecer conhecimento do que é pra sempre inobservável: uma lei universal. Uma gota d`água particular só é interessante porque seu comportamento é uma instância (um exemplo, uma amostra) de um comportamento universal de todas as gotas do passado do presente e do futuro.

O que está à disposição da observação é a gota d`água aqui e agora que me diz de um comportamento que creio ser universal (de todas as gotas), pois jamais poderei vê-lo realizar-se em todas as suas instâncias particulares que são numericamente indefinidas, quiçá infinitas. Ao fim, o cientista se sente justificado para falar de “a gota d`água” e dizer que toda e qualquer gota d`água apresentará o mesmo comportamento em condições determinadas.

É claro que no caso do cientista o universal é encontrado graças à idéia de que a mera observação de instâncias passadas de um fenômeno permite a inferência de um comportamento universal e necessário. Como bem apontaram Al Ghazali, David Hume e Karl Popper isso é logicamente injustificado, pois da conexão constante na experiência não se infere o universal e necessário.

Mas o que interessa aqui é o traço fundamental que essa tentativa revela, ou seja, a busca pela Necessidade, pelo imutável, já apontada por Shestov.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Herança grega

Shestov dizia que o começo e a função máxima da filosofia residia na descoberta da Necessidade e de sua exaltação por meio da resignação à sua inexorabilidade. A Necessidade é aquilo que é e não pode deixar de ser, aquilo que não muda nem pela ação do tempo nem pelos rogos humanos. A Necessidade é aquilo que permanece o mesmo, idêntico a si mesmo, extático.

É um traço essencial do pensamento do ocidente a busca por um conhecimento necessário, ou seja, de um conhecimento que vá além de qualquer dúvida, que constranja qualquer consciência, que não seja afetado pelas vicissitudes do tempo que destrói todas as coisas.

A herança de Parmênides, Heráclito, Platão e Aristóteles é a da busca pelo conhecimento último, extático e imutável. Tudo o que nos aparece aos sentidos passa e muda, enquanto nossa mente busca aquilo que não passa e não muda. Como dizia Jacques Maritain, a inteligência se decepciona com esse mundo de coisas passageiras.

Assim, o ocidente começa com a convicção de que o objeto próprio da mente humana é o extático e o imutável, aquilo que por fim, deve ser encontrado além das fronteiras das manifestações temporais deste mundo, além do comumente percebido, além das vontades, inclinações particulares, dos rogos e das súplicas. Por outras palavras, as desses próprios filósofos, o objeto próprio da mente humana é o divino.

sábado, 26 de janeiro de 2008

As fontes do ocidente

Não se pode entender o que chamamos de ocidente sem antes entender suas duas fontes primordiais: a herança grega e a herança cristã. Em outras palavras, é preciso ouvir Platão e Cristo para entender o que somos. É inescapável que sejamos todos, num sentido ou noutro, gregos e cristãos. Mesmo os que se opõem sentem o peso e reconhecem o valor dessa origem e dessa herança para a formação do ocidente.

Então não se trata mais de uma mera questão de ser contra ou a favor e sim de uma questão de, antes de qualquer julgamento, entender o que somos. Isso não é tarefa fácil, uma vez que existem interpretações, movimentos, escolas e correntes de pensamento que, embora originadas dessa mesma fonte greco-cristã, apresentam uma diversidade quase infinita em suas estruturas internas e em suas idéias básicas.

Talvez seja o trabalho de uma vida inteira e o provável é que fique inacabado. Mas não há, para o filósofo, outro caminho senão esse. E a realização desse trabalho é parte imprescindível do conselho socrático de conhecer-se a si mesmo.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Não concordo, mas...

Quem se propõe a discutir racionalmente um tema qualquer admite de antemão que a contribuição do seu interlocutor é vital para a descoberta da verdade e que é possível que a verdade se revele do lado de seu interlocutor. Ou seja, uma das condições necessárias para a racionalidade de uma discussão é a admissão preliminar de que meu interlocutor pode estar certo e eu errado.

A outra é uma disposição de ordem ética que se manifesta de duas formas. A primeira é uma disposição de alma para a busca da verdade enquanto tal. O que deve reger a discussão é o desejo de atingir a verdade e nada mais além dela. A segunda forma, como uma consequência da primeira, é o compromisso de usar na discussão formas lícitas de argumentação. Em outras palavras, é o compromisso com a honestidade intelectual. Podemos errar usando argumentos inválidos sem o perceber. É a intenção de usar argumentos inválidos para ludibriar que faz de um erro um sofisma.

Ora, se meu interlocutor pode estar certo, então ele pode também discordar de mim. Mas qual será o valor dessa discordância? Se eu proponho uma explicação para resolver uma questão, meu interlocutor pode não aceitá-la por uma gama de motivos bem diversos entre si. Talvez seja porque ele ache que minhas premissas são falsas, ou que minhas inferências são inválidas, ou mesmo ambos os casos.

Mas para que ele possa discordar de mim e para que eu leve em consideração sua discordância ele deve me dizer suas razões e para isso ele deve conhecer o status quaestionis daquilo que estamos discutindo. Ou seja, ele deve conhecer o que já foi dito sobre a matéria em discussão. É claro que não há uma medida clara para o grau de conhecimento do status quaestionis de uma determinada matéria. Não há um ponto ideal que inequivocamente habilite uma pessoa a discutir com propriedade um assunto.

Mas há bons começos. Um deles é, sem dúvida, conhecer o que os pensadores clássicos disseram sobre a matéria, como também verificar o que seus críticos apontaram como seus pontos fracos para avaliar melhor as posições desses autores. Conhecer também o que novos autores (e seus críticos) escreveram.

Isso tudo leva tempo e exige dedicação. Mas até que parte significante desse trabalho seja feito, a concordância ou a discordância não terão nenhum valor. É claro que meu interlocutor tem o direito de discordar de mim. Mas como todo direito tem como contrapartida um dever, os benefícios do direito só podem se efetivar se os deveres também tiverem se efetivado. Se isso não acontecer, a discordância de meu interlocutor é um ato vazio, talvez fruto de disposições psicológicas ou propensões de ordem estética, mas certamente nada que deva ser levado a sério.

Graça e História

Pensando nos temas propostos em meus últimos posts tenho a impressão de que poderíamos interpretar a tentativa de criar na Terra o paraíso por meios meramente humanos como uma das faces da rejeição da graça dentro do cristianismo.

A graça é um movimento de lá para cá, ou seja, de Deus para o homem. Este então não tem nenhum mérito, recebe sem merecer o dom da revelação e da vida eterna. Mas isso deixa o homem um tanto desorientado, uma vez que está acostumado, no paganismo, a negociar seu bem-estar terreno com potências metafísicas volúveis através do cumprimento de votos e de preceitos.

Em Jesus se inicia uma nova relação, de liberdade e de amor mútuo entre Deus e o homem. A salvação é gratuita e o Reino do Céus está dentro daqueles que ouvem a voz do rabi Jesus, a face humana de Deus cujo reino não é deste mundo. Recado claro: se é verdade que aquele que está em Cristo pode provar antecipadamente (embora em parte e como num espelho turvo) a beleza da criação redivinizada, é ainda mais verdade que o reino de Deus virá no fim dos tempos, ou seja, quando a história se consumar. Não haverá paraíso terreno, histórico, mas o revestimento do que é perecível pelo que é imperecível no fim da história

Contudo, os homens preferem negociar, se rebaixar às autoridades que aceitar a liberdade da graça, como apontou Dostoievski. A proibição, a tutoria, a menoridade e as tentativas de construção do mundo perfeito são então consideradas mais palpáveis e seguras do que o desafio de aceitar que o transcendente está para lá da historicidade, que não podemos negociar com ele por meio de barganhas materiais ou morais e nem mesmo alcançá-lo por nossos próprios esforços.

Então um traço comum une o fariseu que se acha justificado pela prática rigorosa da Lei e dos preceitos e os revolucionários materialistas e utópicos que pretendem secularizar e realizar na história o paraíso: ambos tentam comprar sua segurança por seus próprios meios, controlar o incontrolável, manipular os valores e o transcendente.

Com o cristianismo o ocidente aprende que o transcendente só pode ser alcançado por meio da aceitação, por meio do acolhimento de uma iniciativa que parte de lá para cá. E nisso o homem não tem mérito. É graça.