quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"Morte de Deus" e o sagrado

O que acontece a uma sociedade que não é mais capaz de reconhecer que há diferença, que há algo que eleva-se acima do comum, algo sagrado? Quando Nietzsche proclamou que Deus estava morto, ele apenas fizera um constatação. Mas ela vai muito além da mera negação de Deus, do mero ceticismo raso ou da revolta adolescente.
Deus está morto significa o fim do norte de uma cultura. Significa que uma cultura chegou ao esgotamento de seus valores. Aqueles valores que dão a direção, que constrangem como a gramática e suas regras constrangem o poeta, mas que, por outro lado o adestram, o disciplinam e o tornam capaz de suas realizações. Que se siga regras ( sempre "arbitrárias") por um tempo e que através dela se realize algo de valor, algo pelo qual se queira viver!
A busca ocidental por um fundamento último a ser alcançado por vias argumentativas, criou as condições para a crítica ( um tanto insolente ) de tudo o que se considerava sagrado. Então o sagrado, justificativa de todas as coisas, é chamado ao tribunal da razão dedutivo-argumentativa para justificar-se. Se o sagrado não tem bons argumentos, então é ilegítimo, deve ser derrubado. Acontece que o otimismo racionalista chega ao século XXI com a desagradável impressão ( eu diria certeza ) de que nada foi encontrado que sirva de fundamento. A racionalidade não é capaz de dar fundamentos últimos, somente hipotéticos. "Não era lá que devíamos procurar...erramos o caminho."
Então derrubamos os deuses, os nobres, o Antigo Regime, em nome de uma faculdade que, ao fim e ao cabo, é incapaz de fornecer novos valores sem devorá-los pelo ceticismo e insolência que estão na sua raíz. Estamos, nós ocidentais, desorientados, sem rumo, fracos demais para resistir a quem quer que seja que ainda tenha convicções fortes.
Como dizia Cioran, nossa tolerância vem da dúvida, vem da incapacidade. E a mesma dúvida que nos faz tolerantes impedirá que nos posicionemos decididamente contra o que evidentemente nos ameaça. A morte de Deus, antes de ser uma vitória, pode ser somente um prenúncio da nossa queda.
Um discurso comum uniu e une revolucionários burgueses e comunistas, anarquistas e socialistas: todos se apóiam na idéia racionalista da submissão do sagrado ao crivo argumentativo que, no fim, leva ao esvaziamento de todo fundamento e todo valor. Ou em outras palavras, não há nada que seja realmente diferente, nada que se eleve acima do comum, nada que seja sagrado.

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